Pororoca

Pororoca

Há 10 anos um grupo de artistas, comunicadores, ativistas e cientistas convidou a população a desafinar o coro dos contentes e botar a boca no trombone por causa de Belo Monte. Nascia ali o Movimento Gota D’Água, que daria origem à Uma Gota no Oceano. Nossas vozes se juntaram às dos povos do Xingu, que há décadas lutavam para impedir a construção da usina, e o resultado desse clamor foram 2,5 milhões de assinaturas, arrecadadas em menos de dois meses. Já ouviram o som da pororoca? O ruído que vem de longe, levando tudo pelo caminho, e desagua num estrondo. Foi assim.

O resto é História, e ela provou que estávamos certos. A hidrelétrica custou mais do que o dobro do orçamento previsto e produz menos da metade da eletricidade apregoada; a crise energética que ela impediria de acontecer chegou com todo gás; e o Rio Xingu, um dos mais importantes da Bacia Amazônica, respira por aparelhos. Belo Monte só não parou de gerar denúncias de corrupção e problemas para o meio ambiente e para os moradores locais – o vídeo que acompanha este texto traz informações atualizadas. É um elefante branco no meio da maior floresta tropical do mundo.

Mas o que fazer com o monstrengo? “Sou partidário da ideia de transformar Belo Monte no Parque Nacional das Ruínas de Belo Monte, porque ela não tem absolutamente nenhuma utilidade”, sugeriu Tasso Azevedo, um dos criadores do projeto MapBiomas, no encontro que marcou os 10 anos do Movimento Gota D’Água. Foi uma oportunidade para membros fundadores e novos amigos da causa cruzarem visões, olhos nos olhos. 

Continuamos de olho no Xingu, porque uma década se passou e a lição ainda não foi aprendida – basta ver o que está acontecendo em Minas Gerais, que não é obra apenas da Mãe Natureza. Por isso, os pecados de Belo Monte devem ser sempre lembrados por nós. Cada gota conta; e um monte de gotas gritando juntas vira pororoca.

Resistência e visibilidade

Resistência e visibilidade

É bonito ver a mobilização para ajudar aqueles que perderam seus lares nas inundações que assolam boa parte do país. Mas dois povos estão particularmente desamparados nessa catástrofe. Parte considerável de indígenas e quilombolas vive em locais de difícil acesso, aonde nem sempre chega ajuda. Exemplos de resistência e historicamente perseguidos, ambos se viram ainda mais acuados desde a posse do governo atual. Por isso, são os que mais precisam de nossa ajuda nesse momento. É hora de exercitar os ensinamentos ancestrais dos povos originários e tradicionais e cuidarmos uns dos outros, e lutar para dar mais visibilidade aos que o Brasil oficial quer fingir que não existem.

De acordo com a Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat) e o Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), 51 comunidades – cerca de 5.940 famílias ou 29.700 mil pessoas – dos povos Pataxó, Tupinambá, Pataxó Hã Hã Hãe, Imboré/Kamakã e Pankarú, foram atingidas apenas naquela região do estado; já a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) calcula que só em Minas Gerais, Bahia, Tocantins e Goiás são pelo menos 12 mil famílias afetadas. 

“O sertanejo antes de tudo é um forte, por isso estamos sobrevivendo, cada um se virando como pode. A viagem precisa ser feita a cavalo, em muitas comunidades há mutirões para desatolar os veículos que tentam chegar à cidade”, conta Nelci Conceição, liderança do Quilombo Aroeira, localizado no município baiano de Palmas de Monte Alto, região de Caatinga e Cerrado, onde ficam mais 17 comunidades. A estrada que leva os quilombos locais até a cidade é de barro e está intransitável; uma viagem que antes levava uma hora e meia hoje chega a durar seis. “Tenho visto em reportagens autoridades sobrevoando áreas atingidas de helicóptero, mas não somos lembrados. A comunicação é difícil, pois falta energia e a internet é cara”, diz ela. 

Nelci conta ainda que em dezembro do ano passado previram que a região poderia ser atingida por temporais, mas seus alertas foram ignorados. “Desde 1992 não chovia tanto por aqui, estávamos sofrendo com a seca, mas notamos sinais de que o tempo estava mudando. E o nosso pedido de asfaltamento da estrada foi protocolado em 2019 e nada foi feito”. Foram ignorados como se não existissem.

E além de o governo fazer vista grossa para as mazelas desses povos, é como se eles estivessem pagando por um crime cometido por outrem. Por exemplo: no último dia do ano que passou, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou que o Cerrado perdeu mais 8.531,44 km² de mata nativa de agosto de 2020 a julho de 2021. Foi a maior devastação registrada no bioma, presente em Goiás, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Não por acaso, esses estados estão entre os mais atingidos: os grandes produtores rurais comeram o verde para plantar soja até a beira do rio que, por causa disso, acaba transbordando.

Como desgraça pouca é bobagem, também no apagar das luzes de 2021 o presidente sancionou a lei que modifica as regras de proteção de margens de rios em áreas urbanas, estabelecidas pelo Código Florestal. Agora a responsabilidade cabe às prefeituras – ou seja, fica a sabor do curso das eleições da ocasião. Mais destruição e sofrimento à vista.

Segundo dados preliminares do IBGE, que este ano deve realizar um censo especial voltado para os quilombolas, eles são 1.133.106. Bahia e Minas, os estados mais afetados pelas cheias, junto com Tocantins, também são os que abrigam mais quilombos:  1.046 e 1.021, respectivamente. Hoje, praticamente o mundo inteiro conhece o papel fundamental dos indígenas na preservação das florestas, mas nem todos sabem que os quilombolas também fazem um trabalho importantíssimo nesse terreno. 

A mesma pesquisa do IBGE diz que existem pelo menos mil quilombos na Amazônia; e já há algum tempo se conhece a dimensão de sua influência na conservação dela. Um estudo sobre isso foi realizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo em 35 comunidades da região de Oriximiná, no Norte do Pará, em 2011. São 6.944 km² de floresta; até o ano 2000, a região havia perdido 64 km² de vegetação nativa e entre 2006 e 2009, somente 6 km². Falta um reconhecimento maior desse feito. “Isto é devido ao modo que os quilombolas exploram a floresta. Eles vivem um modelo econômico com ênfase no extrativismo”, disse na época Lúcia Andrade, coordenadora-executiva da instituição. 

Indígenas e quilombolas são povos que diariamente cuidam do planeta e do nosso futuro – e, justamente por isso, são tão perseguidos. Então, não custa lembrar que além de ser um belo sentimento, a empatia também é fundamental para aguçar nosso instinto de sobrevivência. Vendo o que estão passando nossos irmãos Brasil adentro você também não sente a água batendo nas canelas? Ficar ao lado deles é resistir contra a destruição de tudo o que temos de mais precioso.

 

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Semeadura

Semeadura

“Keanu Reeves”, diria o saudoso Mussum sobre 2021. Traduzindo, que ano horrívis. Quem vai desdizer o Trapalhão? Só faltou o meteoro. A começar por um problemão que diz respeito a todos os seres vivos do planeta: segundo o último relatório do IPCC da ONU, as mudanças climáticas estão avançando implacavelmente e nada do que foi feito até agora surtiu efeito algum. Mas, como não adianta chorar sobre o CO₂ derramado na atmosfera, não vamos botar água no chope das festas de fim de ano de ninguém. Em 2022, a gente volta com nossa tradicional retrospectiva; por enquanto vamos nos concentrar no que podemos fazer para que os próximos 365 dias tragam mais esperança. É hora de semear.

Temos poucos, mas bons motivos para tanto; aos 45 do segundo tempo, este ano nos trouxe algumas boas novas. A mais importante foi um estudo da 2ndFOR, organização que reúne mais de cem cientistas de 18 países, publicado este mês na revista “Science”. Segundo ele, florestas tropicais se regeneram muito mais rápido do que se imaginava: bastam entre 10 e 20 anos para que recuperem 80% do carbono perdido, da fecundidade de seu solo e da diversidade vegetal. Uma piscada em se tratando da idade da Terra – a Amazônia, como conhecemos hoje, por exemplo, teria se formado há cerca de 2,5 milhões de anos – e um período razoável, levando-se em conta a nossa expectativa de vida.

Os pesquisadores compilaram dados de mais de 2 mil trechos de florestas em fase de regeneração em áreas tropicais da América e da África ocidental. E chegaram a conclusões tão animadoras quanto surpreendentes. Na verdade, pouco restou de mata realmente nativa nesse mundão de meu Deus: boa parte do que há de verde colorindo o planeta hoje existe graças a uma demão dada pela natureza, depois de ele ser arruinado pelo homem. Há florestas na Europa que se recuperaram durante os séculos XVIII e XIX. Por incrível que pareça, o nordeste dos Estados Unidos tem hoje uma cobertura florestal maior do que há um ou dois séculos. 

Nos trópicos há aproximadamente 8 milhões de km² em recuperação. Isso não quer dizer que devamos baixar a guarda; não tem essa de desmata que a natureza quebra teu galho: “É possível recuperar florestas tropicais por meio de processos naturais em tempo condizente com expectativas humanas. Porém, mesmo assim, é muito mais rápido destruir do que recuperar. Os resultados devem ser vistos com otimismo, mas também com responsabilidade”, alerta Pedro Brancalion, professor do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), um dos autores do estudo. 

Nossa capacidade de destruição ainda é alta. Por isso, em junho, a ONU lançou a Década da Restauração dos Ecossistemas (2021-2030), para ver se governos, empresas, instituições e sociedade civil se coçam. Os povos da floresta já fazem isso há algum tempo. Para garantir a preservação de espécies vegetais e a recuperação de biomas, deixando-os mais próximos de suas características originais, tem mais de uma década que a Rede de Sementes do Xingu e a Rede de Sementes do Vale do Ribeira estão na ativa. Com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), indígenas e quilombolas se dedicam a ressemear a Amazônia e a Mata Atlântica. Outras iniciativas parecidas vêm brotando mundo afora. O verde se firma como a cor da esperança. Que 2022 seja o ano da colheita! 

“Alegria, formosa centelha divina”, escreveu o autor alemão Friedrich Schiller, em poema que inspirou o seu compatriota Beethoven a compor sua nona sinfonia. “Ó, amigos, mudemos de tom! Entoemos algo mais prazeroso e mais alegre!”, conclama a “Ode à alegria”. A própria natureza canta quando está alegre. É o que diz outra notícia de dezembro que veio acalentar nossos corações: pesquisadores das universidades inglesas de Exeter e Bristol registraram um coral de peixes num recife de coral arruinado pela pesca predatória na Indonésia, que está se recuperando. Corais são florestas marinhas. O canto dos peixes é um chamado à semeadura; não só de árvores, mas de bons sentimentos.

 

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