dezembro 2022 | Biodiversidade, Desenvolvimento Sustentável, Direitos humanos
Diz a sabedoria popular que o apressado come cru. No fim do ano passado, sugerimos que 2022 fosse usado para semear esperança e votos. Nada de pressa agora: a colheita fica para depois de 2023. Primeiro precisamos cuidar bem das sementes e mudas que plantamos, regá-las todo dia com carinho, regenerar terrenos, tornar o solo novamente fértil. Só assim elas irão florescer. Há muito a ser feito na terra arrasada que o país se tornou.
A começar por reestruturar o Ministério do Meio Ambiente, que precisa voltar a contar com a participação da sociedade civil, e apoiar os indígenas na criação do Ministério dos Povos Originários, mas também garantir a proteção dos quilombolas, extrativistas e ribeirinhos, cujos direitos foram ignorados ao longo dos últimos anos. Só assim vamos garantir safras saudáveis pelas próximas décadas.
Destruir é mais rápido e fácil que construir. Calcula-se que a Amazônia, como conhecemos hoje, formou-se há pelo menos 2 milhões de anos. Seus 6,7 milhões km² de área permaneceram praticamente intocados até meados dos anos 1970. A partir daí, a motosserra pintou e bordou: segundo um estudo do Mapbiomas, em apenas 37 anos – entre 1985 e 2021 – ela perdeu 750 mil km². Dá 11% de sua área original e pouco menos que um Chile inteirinho.
O Brasil é o país que mais desmatou, com 19% da Amazônia posta abaixo, bem perto do ponto de não retorno, calculado pelos cientistas entre 20% e 25%. Em setembro passado, foi descoberta, na fronteira do Amapá com o Pará, a árvore mais alta da floresta, um angelim vermelho de 88,5 metros de altura. Ela tem pelo menos 400 anos de idade que poderiam ser abreviados em minutos por um espírito do mal.
Assim como “liberdade”, a palavra “narrativa” costuma de ser dita por gente que não entende, ou finge não entender, seu significado. Mais importante que o novo presidente que escolhemos é o que ele prometeu em campanha, a narrativa que escolheu. E ela é baseada nos anseios de qualquer pessoa que sabe da sinuca de bico em que o mundo se meteu: economia sustentável, desmatamento zero, terras indígenas demarcadas – as primeiras já foram escolhidas –, participação da sociedade civil, biotecnologia, a opção pela ciência, fontes de energia verdadeiramente sustentáveis e o fim do garimpo e do contrabando de madeira. E, claro, democracia. Poderemos e devemos cobrar – incluindo a nossa participação na tomada das decisões mais importantes. Nós votamos num projeto.
Já os compromissos assumidos pelo governo que ora já vai tarde, só quem não estava bem-informado queria ver cumpridos. E olha que os resultados foram impressionantes: a Amazônia perdeu 45.586 km² em apenas quatro anos. E quem achasse ruim era exonerado. Outro relatório do Mapbiomas aponta que as áreas de garimpo dobraram entre 2010 e 2021 no Brasil e que 91% dessa exploração está concentrada na Amazônia, especialmente em áreas protegidas. Nas terras indígenas, por exemplo, o garimpo cresceu 632% nesse período. Além do garimpo, a mineração industrial, a agropecuária e o avanço da infraestrutura urbana foram justamente as atividades mais favorecidas com a política ambiental adotada na administração que se despede, que afrouxou regras de licenciamento ambiental, não demarcou nenhuma terra indígena ou quilombola, e levou à UTI órgãos de fiscalização como o Ibama e o ICMBio.
“O Brasil voltou”, cantaram na COP27. Mas, para que tenha voltado para ficar, é preciso plantar não pensando somente na próxima safra. Vamos cuidar de nossas mudinhas e sementes com muito cuidado e carinho para garantir a colheita de um futuro social e ambientalmente mais justo. Que 2023 seja regido pelo afeto.
Saiba mais:
Amazônia perdeu 97% de sua vegetação natural em 37 anos
91,6% das áreas garimpadas no Brasil ficam no bioma Amazônia
Legado de destruição: Amazônia perde 45.586 km² somente no governo de Jair Bolsonaro
Documento confirma que governo Bolsonaro omitiu da COP a taxa de desmatamento na Amazônia
Grupo de transição aponta mais de 40 terras indígenas para demarcação
Semeadura
dezembro 2022 | Amazônia, Direitos indígenas, Povos Tradicionais
Eliane Xunakalo é uma mulher do seu tempo. Percebeu que para manter sua cultura viva e as terras de seus ancestrais intocadas era preciso estar atenta à contemporaneidade e aos movimentos do mundo. Ultimamente, tem se dedicado a estudar créditos de carbono – algo que até outro dia não lhe diria respeito e que muita gente boa desconhece. “Em 2016, já tinha feito pós em Direito Administrativo e Administração Pública, porque entendo que a gente precisa compreender como funciona a estrutura do poder público para poder cobrar. Não basta saber os direitos, tem que conhecer os caminhos”, diz ela, mais uma liderança feminina emergente do movimento indígena e uma fé no futuro. Anotem o nome.
Mãe de três filhos, de 10, 5 e 3 anos, e quatro cachorros, Eliane é Bakairi. Esse povo originário do Cerrado mato-grossense está no meio do maior fogo cerrado: o direto, que vem destruindo o segundo maior bioma brasileiro com incêndios cada vez maiores e constantes; e o que ricocheteia na Amazônia, ao abrir caminho para invasores – os Bakairi vivem em duas terras nos arredores do Parque Nacional do Xingu. Depois de uma eleição difícil, em que enfrentou uma oposição violenta, Eliane foi eleita a primeira presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt). Uma vitória histórica.
A votação foi apertada e deixou sequelas. Guerreira que usa a doçura como arma, Eliane prega a conciliação. “Nós, povos indígenas não podemos ser inimigos. Estamos pregando diálogo, união e consenso. Não vamos excluir nenhum povo que pensa diferente da gente, pelo contrário. Foi com essa proposta que nos apresentamos, que fomos eleitos e que vamos trabalhar. Nossa palavra é consulta transparência, protagonismo e força”, diz ela, demonstrando grande maturidade para os seus 36 anos, um contraste com autoridades mais velhas, que perecem crianças.
A Fepoimt foi criada em 2017, representa os 43 povos indígenas do estado. O próprio Cacique Kayapó Raoni se empenhou na campanha. Eliane Xunakalo irá enfrentar pedreiras à frente da federação. O poder mudou de mãos a nível federal, mas permaneceu nas mesmas em Mato Grosso. O governador, um senador e 18 dos 24 deputados estaduais mato-grossenses foram reeleitos. Ela tentou uma vaga na assembleia estadual, mas não foi eleita. “Tive 4.046 votos. São votos importantes porque são limpos e abrem caminhos. Pela falta de recursos e de experiência analiso como um resultado positivo. E sou a primeira indígena eleita como suplente na Assembleia. É um resultado histórico”, analisa.
O fato de ter ao seu lado outras mulheres corajosas como ela é outro motivo de otimismo: Eliane é vice-presidente da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileiras (Amiab) e cofundadora da Articulação Nacional Das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), além de ser sou assessora de articulação política e para questões climáticas da Takná, instituição que tem 13 anos e trabalha com os direitos das mulheres indígenas no Mato Grosso.
Mas Eliane nunca esteve sozinha. O marido apoia seu trabalho desde o começo e ela também foi incentivada a estudar por seu povo, pelas lideranças e anciões da sua aldeia. Quando estudou em Cuiabá, aprendeu com o movimento estudantil que era preciso levar a voz do movimento indígena a todos os recantos do planeta. “Nós não somos o atraso. Nós somos os guardiões do bioma, somos os guardiões do futuro. Precisamos que quem está no poder entenda isso”, diz Eliane Xunakalo. O Mato Grosso é a nossa primeira linha de defesa contra a destruição da Amazônia. A tarefa está em boas mãos, mas a Fepoimt precisa do apoio de todos nós.
Saiba mais:
“Precisamos ter humanidade”. Eliane Xunakalo quer trazer equilíbrio e direitos em Mato Grosso
Com taxa de 11.568 km², desmatamento na Amazônia continua alto em 2022
dezembro 2022 | Biodiversidade, Direitos humanos, Educação ambiental
Qual é a tua, bicho homem? A quinta – e até agora última – grande extinção em massa aconteceu há 65 milhões de anos, quando 80% de todos os animais foram pro beleléu. Rolou no finalzinho da Era Mesozoica; acredita-se que um meteoro mandou os dinossauros dessa pra melhor. No momento estamos rumos à sexta, que promete bater a segunda e mais letal, a da Era Paleozoica – entre 370 e 360 milhões de anos atrás, quando de 70% a 80% de todas as espécies existentes desapareceram. As mudanças climáticas causaram a grande extinção Paleozoica. Erupções vulcânicas incessantes que lançaram quantidades industriais de CO2 na atmosfera soam familiares? Pois o ser humano é o cataclismo da vez.
Deixamos apenas 15% das florestas e 3% dos oceanos intactos e extinguimos de uma a cinco espécies por ano. O Centro de Monitoramento e Preservação Mundial do Programa Ambiental da ONU (em parceria com as universidades Dalhousie, no Canadá, e a do Havaí) calculou em 2011 que somos 8,7 milhões de espécies de seres vivos – do protozoário que causa a malária ao homo sapiens, passando pelo panda fofinho. A poluição e a exploração desmedida do meio ambiente podem causar a extinção de metade delas até o fim do século. A Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CDB COP15), que acontece até 19 de dezembro em Montreal, no Canadá, não pode deixar o bicho correr solto.
É impossível calcular quantas espécies foram extintas pelo homo sapiens desde a sua chegada, mas hoje cerca de um milhão de animais e plantas estão ameaçados de extinção. Sabemos também que em 125 mil anos a Humanidade riscou do mapa 271 mamíferos e que, nos últimos cinco séculos, foram extintos mais 80. Atualmente, 1/4 deles correm risco de ser extintos, segundo a “Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas”, da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). Um estudo da Universidade de Tel Aviv e do Instituto Weizmann de Ciência, ambos em Israel, diz que entre 10% e 20% das espécies de aves desapareceram nos últimos 50 mil anos. Desde 1500, quando Cabral chegou ao Brasil, 311 vertebrados terrestres viraram espuma do mar.
Se a ideia era ficar sozinho na Terra, pode esquecer: caso venha a sexta grande extinção, nós vamos juntos. As condições de vida em nosso planeta são garantidas pela biodiversidade. Isso vai da produção de alimentos à proteção contra doenças e até a produção de oxigênio – como a flora marinha, que responde por 54% do ar que respiramos. Caso venha a sexta grande extinção, provavelmente estaremos entre as espécies condenadas a desaparecer. Falamos muito de mamíferos e aves e nos esquecemos de outros bichos que são fundamentais para a vida humana, como os anfíbios, que controlam a população de insetos no mundo, e os próprios insetos. O maior exemplo são os polinizadores, como as abelhas. Sem elas, morremos de fome. O bicho pode pegar.
O Brasil tem o grande privilégio e a imensa responsabilidade de ser o guardião da maior biodiversidade do globo: são mais de 116 mil espécies animais e mais de 46 mil espécies vegetais, espalhadas por seis biomas terrestres e três ecossistemas marinhos. Essa abundante variedade de vida abriga mais de 20% do total de espécies do mundo, encontradas em terra e água. Essa riqueza nos pertence, mas devemos cuidar dela, pois disso depende a sobrevivência de nossa espécie. Se o país voltou, como andaram cantando, é preciso que seja para ficar.
Não tem essa de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come: o beco tem saída. A proposta a ser discutida CDB COP15 tem metas ambiciosas, porém perfeitamente viáveis. Entre as principais, estão a de transformar 30% dos territórios terrestres e marinhos da Terra em áreas protegidas até 2030, e um corte considerável dos subsídios estatais em atividades que prejudicam o meio ambiente.
“Estamos perdendo biodiversidade em um ritmo alarmante. Perdemos metade dos corais de águas quentes do mundo e uma área de florestas de aproximadamente um campo de futebol desaparece a cada dois segundos. Em menos de 50 anos, as populações de animais selvagens sofreram um declínio de dois terços em todo o mundo. O futuro do mundo natural está no fio da navalha. Mas a natureza é resiliente, e com um forte acordo global impulsionando ações urgentes, ela pode se recuperar”, disse Marco Lambertini, diretor geral do World Wide Fund for Nature (WWF). Ou seja, o homo sapiens ainda pode se livrar dessa fama de meteoro da vez. Então, por que esperar pra ver que bicho vai dar?
Saiba mais:
Relatório Planeta Vivo 2022
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Um futuro com ratos, morcegos, cães, gatos, gado e gente…
As espécies extintas, explicadas
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Como a dieta humana está impactando a biodiversidade do planeta
O que é a Conferência de Biodiversidade da ONU e por que ela é importante?
A vez da preocupação com a biodiversidade global
WWF alerta: não podemos falhar na COP15 de biodiversidade
COP15 da Biodiversidade pode ser “última chance” para acordo global de proteção da natureza
dezembro 2022 | Amazônia, Desmatamento, Direitos indígenas
Jair Bolsonaro evaporou depois da derrota nas urnas, mas alguns de seus seguidores mantiveram acesa a sua chama — e no caso dos governadores de Amazonas, Acre e Rondônia, literalmente. Reeleito, o trio, que apoia o ainda presidente, mostrou serviço, sem perda de tempo: duas semanas depois do segundo turno, o número de focos de incêndio nos três estados aumentou 1.216%. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 3.332 deles entre 1º e 16 de novembro; no mesmo período no ano passado foram 253. Falta mais de um mês para o novo governo assumir. Quem vai acionar os bombeiros até lá?
No Congresso, parlamentares aproveitam o clima de fim de festa para manter aberta a porteira da boiada antiambiental — cada cabeça de gado que escapa corrói que nem cupim nossa já fragilizada legislação ambiental. Nem sempre é um Pacote do Veneno; muitas vezes são coisinhas miúdas, que chegam a passar despercebidas, mas que podem resultar em danos gigantescos. Um exemplo recente é o projeto de lei aprovado pelos ruralistas na Comissão do Meio Ambiente da Câmara no dia 23, que enfraquece o controle sobre transporte de madeira em pequenas propriedades, para a felicidade dos contrabandistas.
Encorajados até o fim, criminosos não param de invadir a maior floresta tropical do mundo, que até o mês passado já tinha perdido 10 mil km² de cobertura este ano. Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), no Pará, só em outubro puseram abaixo 351 km² de verde. Sete das 10 unidades de conservação e quatro das dez terras indígenas mais devastadas no Brasil no período ficam no estado — incluindo a dos Apyterewa, que responde sozinha por 46% do desmatamento em áreas ocupadas por povos originárias da região. A luz no fim do túnel está no primeiro dia de 2023, mas os indígenas sabem que não podemos esperar até lá.
Além de botar a Funai para trabalhar para os ruralistas, o ainda presidente não demarcou nem um único centímetro de terras indígenas, conforme prometeu em campanha. Entretanto, o próprio agro começa a despertar para o óbvio; além de ser ruim para os negócios, é uma política injustificável: esses territórios ocupam somente 1% da área de sete dos nove estados de maior produção agrícola do país. No Mato Grosso, o que mais produz, essa taxa é de 16%. A área destinada à ocupação indígena no Brasil é de 13,7% do território nacional, enquanto a média global é de 15% – e as áreas privadas abrangem 41%.
A despeito do terrorismo de Estado, que inventou o espectro da volta do Brasil pré-Cabral – meio-irmão do fantasma do comunismo — há apenas 240 pedidos na fila de demarcações; e 67% dos 728 processos que passaram pela Funai já foram concluídos. É só parar de protelar. Além de cumprir o que manda a Constituição, pôr um ponto final à essa história faria um bem danado à combalida imagem do país no exterior – e à agropecuária nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, que é irrigada pelos rios voadores que vêm do Norte.
O novo governo prometeu criar o Ministério dos Povos Originários e, para tanto, instituiu um grupo de transição que conta com lideranças como Benki Piyãko, Davi Kopenawa, Tapi Yawalapiti e Marivelton Baré; a primeira indígena na Câmara, Joênia Wapichana; e Célia Xakriabá e Sonia Guajajara, recém-eleitas deputadas federais. A regularização dessas terras encabeça sua lista de prioridades e não podia ser diferente; uma expressão que não existia entre eles e que foram obrigados a assimilar é “segurança jurídica”. Ao mesmo tempo, pensam em medidas emergenciais para segurar as pontas até o fim do ano e cuidar, mantendo distância respeitosa, de seus parentes mais vulneráveis, os grupos que escolheram permanecer isolados.
Em 5 de dezembro os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips completam seis meses e a situação no Vale do Javari não mudou. A última grande operação na terra indígena ainda foi a comandada por Bruno em 13 de setembro de 2019, quando coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. O Vale do Javari tem a maior concentração de povos que preferiram se manter afastados, e ainda é terra de ninguém.
Outro caso exemplar foi o da morte, em agosto, do Índio do Buraco, o último Tanaru, que pôs em perigo a região que ocupava. Ele vivia em Rondônia, na Terra Indígena Tanaru, classificada como “restrição de uso” em 1998. Isso ajudou a conter o desmatamento no local, mas a portaria tem validade só até 2025 — e este prazo pode ser reduzido. Não se sabe se o Índio do Buraco era o único morador do território ou se ele dividia seus 80,7 km² com mais algum povo. Mas já há quem o reclame: fazendeiros da região alegam ter comprado a área num leilão nos anos 1970 e que, como não haveria mais indígenas na região, a Funai deveria revogar já a portaria de restrição de uso da área.
O entendimento do Ministério Público Federal de Rondônia foi outro. O órgão recomendou à Funai que preserve o local como terra indígena, em memória do povo Tanaru. Se for preciso, recorreria aos artigos 231 e 232 da Constituição para acionar a Justiça. “A terra que é indígena pertence à União, com o direito de posse e usufruto dos povos indígenas. Não há mudança dessa natureza pelo fato de o Índio do Buraco ter falecido. Ela permanece como terra da União e terra indígena”, argumenta o procurador Daniel Luís Dalberto. Bens da União que não podem ser vendidos e nem usados como moeda de troca numa queima de estoque de fim de temporada.
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novembro 2022 | Direitos indígenas, Eleições, Povos Tradicionais
Os Xakriabá são originários do Cerrado mineiro; os Guajajara brotaram da Amazônia maranhense. São lugares distantes um do outro, Célia Xakriabá e Sônia Guajajara são brasileiras de povos diferentes, mas, lembram, pertencem à mesma raça humana. E desta forma, entendem que o Brasil faz parte de algo muito maior, que nos acolhe e requer nossos cuidados: a Mãe Terra. Por isso, as duas deputadas federais indígenas recém-eleitas não esquecem que seus mandatos serão cumpridos no Planalto, mas de olho no Planeta – o que implica, de cara, a maior missão da Bancada do Cocar: ajudar a botar a “boiada” de Bolsonaro de volta para o curral.
Na ditadura, todo cidadão brasileiro sentiu na pele o que é ser tutelado pelo Estado. Para os povos originários, doeu bem mais: enquanto a Comissão Nacional da Verdade afirma que 434 civis foram assassinados pelos militares, entre os indígenas foram pelo menos 8.350 entre 1946 e 1988, sendo que antes de 1964 essas mortes foram causadas mais por omissão do Estado e, a partir daquele ano, por ação direta. Antes do golpe, a Amazônia permanecia praticamente intocada; depois, a devastação cresceu em níveis aterradores.
Embora os indígenas se mantivessem a uma distância segura da política institucional e seus vícios — à exceção da elogiada atuação do Cacique Xavante Mario Juruna na Câmara Federal, entre 1981 e 1985 — a redemocratização fertilizou o solo do movimento indígena. Ainda em 1987, a Terra Indígena Xakriabá, que fica no município de São João das Missões (MG), foi homologada. E com um preço alto pago por esses povos: os conflitos com invasores se arrastavam há anos, mas no dia 12 fevereiro de 1987, 15 grileiros invadiram a aldeia Sapé e assassinaram as lideranças Rosalino Gomes de Oliveira, Manuel Fiúza da Silva e José Pereira Santana enquanto dormiam.
Com o início dos trabalhos da Assembleia Constituinte, a geração que precedeu Sônia e Célia lutou para garantir seus direitos definitivamente. Entre os principais nomes dessa mobilização estava o Cacique Aritana Yawalapiti, levado pela Covid-19 em 5 de agosto de 2020, devido à brutalidade de mais um governo autoritário — não só em relação aos indígenas, mas a toda população brasileira, como ocorrera no século passado. A Constituição de 1988 não garantiu apenas os direitos à terra indígena e à preservação de seus costumes, mas lhes concedeu cidadania plena.
O prazo estabelecido para que todas as terras indígenas fossem homologadas era de cinco anos; em seu curto mandato, o presidente Collor homologou 121 delas. Foi um início animador, mas logo ficou claro que nem mesmo o que está escrito em nossa lei máxima vale. As demarcações continuaram em ritmo lento e as invasões se intensificaram. Os indígenas decidiram então se organizar politicamente. A despeito de serem 305 povos e falarem 274 línguas diferentes, há uma série de demandas em comum.
Em 2004, montaram em Brasília pela primeira vez o Acampamento Terra Livre (ATL) e no mesmo ano foi criada a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que reúne associações de todas as regiões brasileiras. Ainda assim, em 2016, mais da metade da Terra Indígena Arariboia, lar da maioria dos Guajajara, foi consumida por um incêndio criminoso. E este foi só um dos muitos crimes.
Com a chegada ao poder de um presidente abertamente hostil às nossas causas, e apenas uma representante no Congresso — Joênia Wapichana, a primeira deputada federal indígena da História, com atuação tão marcante, dizem, “que valia por uma aldeia inteira” — era chegada a hora inevitável de buscarem a política institucional definitivamente. Não é de hoje que o mundo inteiro reconhece a importância dos povos da floresta para a preservação da natureza, o combate às mudanças climáticas e, consequentemente, a própria sobrevivência da Humanidade. Por isso, são vozes cada vez mais ativas nas Conferências do Clima, como a COP27, da qual Célia e Sônia acabaram de participar.
Bolsonaro é reconhecido pela comunidade internacional como um dos maiores inimigos do meio ambiente. Minas Gerais e Maranhão, estados natais das novas deputadas, ajudaram a derrotá-lo nas urnas. E elas pretendem colaborar para reverter no Congresso as barbaridades que este governo perpetrou contra a Amazônia e outros importantes biomas brasileiros, fundamentais para o futuro da espécie humana. Porque, como elas mesmas afirmam: “Somos guerreiras e sábias. Temos disposição para a luta e conhecimento ancestral de sobra para isso”.