agosto 2024 | Direitos humanos, Povos Tradicionais, Quilombola, Quilombolas
Resíduos da lógica escravocrata
Por: Deborah Duprat, Vercilene Dias e Élida Lauris
O projeto colonial que se desenvolveu no Brasil teve por princípio criar aquilo que Achille Mbembe chama de “um mundo composto por duas categorias de pessoas: de um lado, os sujeitos que agem, do outro, os objetos sobre os quais se intervém”. O escravizado, assim, é a experiência da cisão do humano e da ausência de autonomia, vontade e razão. Essa violência a um só tempo de dessubjetivação, exploração e extermínio foi o embrião dos grandes genocídios do século XX.
A transferência da violência em suas formas mais abjetas para o solo europeu foi o motor da criação, logo após a Segunda Guerra Mundial, da Organização das Nações Unidas e da subsequente Declaração Universal dos Direitos Humanos, que formula um regime de direitos universais para todas as pessoas. Perante esse regime de direitos, Estados, como o brasileiro, assumem o compromisso com sociedades inclusivas, diversas e orientadas pela paz. Isso é o que também diz a nossa Constituição, que anuncia a igualdade e a justiça como valores supremos.
As normas de direitos humanos partem de duas premissas muito simples: a violação deve ser investigada e punida em tempo razoável e as vítimas e seus familiares devem ter centralidade nos processos de apuração de responsabilidade. O Estado brasileiro já foi condenado por diversas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não tomar medidas eficazes para reprimir delitos e proteger pessoas, gerando impunidade e violando direitos humanos. São exemplos disso os casos Ximenes Lopes, Sétimo Garibaldi, Escher, Gomes Lund, Favela Nova Brasília, Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Herzog, Fábrica de Fogos de
Santo Antônio de Jesus, Márcia Barbosa e Sales Pimenta.
Nos assassinatos de pessoas quilombolas, da falta de ação eficaz do Estado brasileiro decorre uma situação intolerável de impunidade sistêmica. O assassinato de Mãe Bernadete expôs de forma crua o problema da omissão e da falta de diligência devida nos homicídios de quilombolas. Com sua morte, a sociedade tomou conhecimento de que ela lutava há mais de seis anos por justiça pelo assassinato de seu filho Flávio Gabriel Pacífico, o Binho do Quilombo. Depois de a própria família ter conduzido investigações para elucidar o caso, suspeitos da morte de Binho foram finalmente identificados no último mês de julho.
Dados inéditos da Conaq, reunidos no relatório “Assassinatos de Quilombolas – ameaças a quilombolas defensores de direitos humanos 2019-2024”, apontam para uma quantidade desproporcional de homicídios de pessoas quilombolas nos estados do Maranhão, da Bahia e do Pará, assim como a lentidão absurda nos processos de titulação dos quilombos. As duas questões se alimentam e mantêm os resíduos de uma lógica escravocrata: negar direitos e eliminar corpos negros.
É a própria Constituição brasileira que afirma o reconhecimento do domínio das terras que comunidades quilombolas ocupam. A inércia do Estado na titulação reforça a percepção dos grupos hegemônicos de que são os únicos portadores de direitos, inclusive a ideia de que seu poder inclui o uso inconsequente da violência. Quando os processos judiciais se eternizam, os fatos não são devidamente investigados e os agressores não são responsabilizados, vai sendo semeada a certeza da impunidade e a de que o direito à vida da população quilombola não é fundamental para o Estado brasileiro.
Poucos meses antes de sua morte, Mãe Bernardete tinha estado com a Presidente do Supremo Tribunal Federal em visita ao Quilombo Quingoma, na Bahia. Em sessão do Colegiado, a Ministra afirmou que “ainda temos um longo caminho a percorrer, como sociedade, no sentido de um avanço civilizatório e da efetivação dos direitos fundamentais que nossa Constituição Cidadã assegura a todos”. Quanto as famílias quilombolas ainda terão que percorrer? Quando alcançarão paz, segurança e direitos nos seus territórios?
Deborah Duprat é Advogada e subprocuradora-geral da República aposentada
Vercilene Dias é Quilombola do Quilombo Kalunga, coordenadora do Coletivo Jurídico da CONAQ, doutoranda em Direito pela UnB, pesquisadora, e especialista em direitos quilombolas
Élida Lauris é Doutora em Sociologia, pesquisadora em direitos humanos, especialista em violência contra quilombolas defensores de direitos humanos
*Publicado no Correio Brasiliense, em 18 de agosto de 2024.
agosto 2024 | Cultura, Cultura Popular, Mulheres, Quilombola, Quilombolas
Por Waleska Barbosa
Quem tem direito à memória? Quem pode figurar em um museu? Que histórias um país conta em seus panteões? Decisões políticas apontam quem será lembrado e quem será apagado. Decidem que cara e cor de pele terão heroínas, heróis, algozes, e qual lado da força terá sua versão perpetuada, cultuada, conhecida e reconhecida.
Por sorte, decisões políticas também são tomadas fora dos palácios. Em chão batido. Em território quilombola. E uma delas fez surgir o Museu Rústico Mãe Bernadete, a ser inaugurado em Pitanga dos Palmares, na Bahia, como parte da programação do 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola, entre os dias 16 e 18 de agosto.
Por mais de 50 anos vivenciado como Lavagem de São Gonçalo, o evento que celebra tradições ancestrais foi interrompido e voltou com nome de festival por ideia dela. A matriarca. A Ialorixá. Dos Palmares. Tal qual Zumbi, ela lutou. Lutou contra gananciosos, contra poderosos, contra injustiças. Lutou pelo bem-viver. Segurança alimentar. Saúde. Educação. E, o mais importante para seu povo, lutou pelo direito à terra.
Com acervo composto por objetos pessoais, roupas, premiações e comendas recebidas por Bernadete Pacífico, o museu será lugar de permanência da cultura afro-quilombola e do legado de todos que contribuíram, até mesmo com a vida, para a manutenção dos saberes e fazeres ancestrais em Pitanga dos Palmares. É o que me conta o filho dela, Jurandy Wellington Pacífico.
Mãe Bernadete foi uma dessas que contribuíram com a vida. Até o dia 17 de agosto de 2023, quando foi assassinada. Enquanto descansava com os netos. À noite. Foram vinte e dois tiros. Doze deles atingiram seu rosto. O que corrobora com o alerta que a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) vem fazendo: há um aumento assustador no número de lideranças mulheres assassinadas Brasil afora. E a Bahia, terra de Bernadete, lidera as estatísticas. Elas morrem torturadas. Morrem com laivos de humilhação e desdém. Morrem odiadas.
Morrem por exercer papel de destaque. Por serem mulheres. Ou os dois. Vulnerabilizadas pela ausência de políticas públicas que as protejam. Ou pela morosidade da implementação de políticas públicas que lhes garantam a regularização de seus territórios.
Mãe Bernadete. Viva em lembrança. Presente em cada palavra dita. Em cada gesto. Em cada conquista. Sua existência gigante salvaguardada no Museu Rústico de 25 metros quadrados. Uma construção de taipa. Erguida em mutirão.
Recebo fotos e vídeos da obra. Ninguém parece cansado. Há sol quente no céu de Simões Filho. Mas há mais calor, o humano, entre os que se unem em torno da estrutura. Entre 12 e 20 pessoas – trabalhando juntas dia após dia, até que o último naco de barro fosse posto nas entranhas das toras de madeira unidas e arranjadas em trama que lembra o xadrez do tecido. “É tudo feito à mão. Do jeito que eram nossas casas há 50 anos. É saber ancestral que estamos resgatando”, conta Jurandy.
Anos antes, em 2017, Mãe Bernadete perdeu um dos filhos, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, Binho do Quilombo. Ele também terá suas memórias abarcadas pelo Museu Rústico, entre outras lideranças do território, como Mestre Nilo e Matias dos Santos.
Binho foi assassinado a tiros como a mãe, tombada antes de ver o caso desvendado. Em julho, a Polícia Federal anunciou a prisão de dois suspeitos do crime. Mas para Jurandy ainda resta a pergunta: quem mandou matar Binho do Quilombo?
Não há respostas. E enquanto se espera por elas, no luto do verbo lutar, é urgente dar continuidade ao que vinha sendo feito. Com festival, arte e cultura. Com celebrações – a alegria é tecnologia ancestral. A religiosidade também. Jurandy se desdobra para organizar o evento que a mãe idealizou, ainda que lhe doa a saudade. É o primeiro sem tê-la como força de trabalho. O primeiro em que será homenageada, emprestando seu nome e o simbolismo nele contido a museu, prêmio e ao próprio evento.
Para que se conheça, respeite e beba da sua fonte, um legado precisa ser preservado. É o que o Museu Rústico vai assegurar daqui para a frente. Pitanga dos Palmares forja, com a mão na massa, ou melhor, no barro, o direito à memória, soprando aos quatro ventos do território negro: Mãe Bernadete – o legado continua.
*Waleska Barbosa é escritora, jornalista e correspondente da Uma Gota no Oceano em Brasília. Apresentadora do programa Quilombo de Wal, na TV Comunitária do DF, integra também a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF).
novembro 2016 | Direitos indígenas
Parlamento Europeu condena violência contra o povo Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul e pede às autoridades brasileiras medidas imediatas para a demarcação das terras dos povos indígenas.
Os parlamentares ainda condicionaram as políticas comercias entre a União Europeia e o Brasil à responsabilidade de empresas com meio ambiente e direitos humanos.
Será que esta firme posição adotada pelo Parlamento Europeu é capaz de despertar o governo para os direitos constitucionais dos indígenas?
Via: Conselho Indigenista Missionário Cimi
Foto: Wilson Dias / ABr
Saiba mais: https://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=9043&action=read
agosto 2017 | Quilombolas
De janeiro a agosto, 13 moradores de comunidades quilombolas foram assassinados no Brasil. Seis deles eram líderes envolvidos em conflitos de terra e a maioria dos casos foram registrados na Bahia. Mas a violência contra eles sequer entrou para as estatísticas. Os quilombolas reclamam da forma como tem sido conduzido os inquéritos, que apontam motivações variadas. “O acirramento dos conflitos agrários e o racismo são os motivos”, diz Selma Dealdina, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).
Para a entidade, a lentidão na titulação de terras é a principal agente da violência. A insegurança só aumenta com o adiamento do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo DEM para tentar anular decreto que regulamentou este processo.
Ajude a causa quilombola assinando a petição
Via Folha de S.Paulo
Foto: Incra
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julho 2017 | Direitos humanos
É como se cada ambientalista no Brasil tivesse um alvo pintado no peito. Pelo quinto ano consecutivo, é aqui onde mais se matam pessoas que defendem o meio ambiente no mundo. Indígenas, ambientalistas, ativistas trabalhadores rurais, jornalistas: estão todos ameaçados na alça de mira. A ONG internacional Global Witness faz este levantamento desde 2002 e segundo o relatório divulgado na semana passada, nunca se matou tantos ambientalistas como em 2016: foram 200 assassinatos, 49 deles aqui. “Acreditamos que o número de mortes seja maior, nem sempre elas chegam ao conhecimento público”, desconfia Billy Kyte, da Global Witness.
E essa presunção é reforçada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). O órgão contabilizou 61 vítimas em 2016 entre lideranças comunitárias, indígenas, sem-terras, posseiros, trabalhadores rurais e quilombolas. Rondônia, Maranhão e Pará – todos parte da Amazônia Legal – foram os estados mais violentos em 2016, de acordo com a CPT. “A causa está na expansão do agronegócio, construção de grandes obras de infraestrutura como barragens e hidrelétricas, ferrovias”, diz Thiago Valentin, da secretaria nacional da CPT. Somente a retomada dos processos de demarcação de terras indígenas e quilombolas e um pé no freio desse modelo de desenvolvimento insustentável podem deter essa escalada de violência.
Por enquanto, as perspectivas não são nada boas. Este ano, em menos de um mês, dois massacres foram registrados também no Maranhão e no Pará: os índios Gamela em Viana, e os trabalhadores rurais na Fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco, respectivamente. No Maranhão, foram 13 mortos e no Pará, dez trabalhadores executados por policiais. E, infelizmente, tem mais gente na “lista da morte”. Na dia 7, outra liderança foi assassinada em Pau D’Arco. Na Bahia, dois líderes quilombolas foram assassinados este mês, em menos de uma semana.
Isso fez com que a CPT, a Justiça Global e a Terra de Direitos solicitassem que o Governo Federal incluísse essas pessoas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Num evento recente no Senado, o relator da ONU para o Meio Ambiente John Knox afirmou que os “direitos humanos e a conservação do meio ambiente são interdependentes. Não existe um sem o outro”. Além de Knox, o ministro do STJ, Herman Benjamim, também chamou atenção para a existência do princípio da proibição de retrocesso. “Os parlamentares podem mudar a legislação ambiental, mas nunca para reduzir o patamar de proteção. Se tirar 20% de uma área, é preciso adicionar mais 30%, 40%. Esse princípio forma o sistema constitucional brasileiro e leis aprovadas seja pelo Congresso Nacional, pela Assembleia Legislativa ou pelas Câmeras Municipais têm que passar por esse teste – sob o risco de serem declaradas inconstitucionais pelos juízes”, disse Benjamim.
Mas em vez de o governo prezar pela proteção dos mais vulneráveis, aprova medidas que os ameaçam ainda mais. Como é o caso da aprovação da MP 759, a MP da Grilagem, que facilita a legalização de terras invadidas e que pode resultar em mais desmatamento e mais violência no campo. Os defensores da MP alegam que ela vem corrigir uma grande dívida histórica fundiária do governo brasileiro. Entretanto, a maior dívida do Estado é com povos indígenas e demais populações tradicionais, cujos muitos territórios ainda não foram reconhecidos. Mesmo que tenham prioridade legal para essa regularização, o ritmo de demarcação foi drasticamente reduzido desde 2010. No momento, há 45 terras indígenas na Amazônia em processo de reconhecimento, sendo que parte dessas em estágio avançado e que já poderiam ter sido demarcadas.
Mais informações:
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