O dia (maldito) que não terminou

O dia (maldito) que não terminou

Aydano André Motta

Caiu na segunda-feira – dia consagrado à mudança, à reforma, ao reinício – o 14 de maio de 1888, quando o Brasil amanheceu sob nova lei, que, teoricamente, tornou ilegal a existência de escravizados. Então regente do país imperial, a princesa Isabel escolheu a véspera (domingo) para sancionar o par de artigos lacônicos, em verdade rasos: 

“Art 1º: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.

“Art 2º: Revogam-se as disposições em contrário”.

Como se diria mais de um século depois, #sóquenão. A olho nu parecia o fim da chaga tão longeva como cruel, mas na verdade foi apenas a transformação do 14 de maio no dia que jamais terminou. Está aí até hoje, congelado no calendário brasileiro, para forjar a terra do racismo, do martírio dos corpos negros.

Naquele domingo de outono, 135 anos atrás, mais de 750 mil escravizados ganharam a liberdade. Quase a população do então Estado do Rio, ou 50% a mais do que os 522 mil habitantes do então Distrito Federal. A multidão de africanos sequestrados pelo tráfico negreiro e seus descendentes foi lançada à própria sorte, sem qualquer contrapartida social. 

Paralelamente, os governantes empenharam-se em incentivar a imigração de europeus, num projeto de embranquecimento da sociedade. Havia oferta de trabalho para os de pele branca, enquanto os ex-escravizados viravam alvo da lei da vadiagem, criada três anos depois. Quem não tinha emprego era perseguido pela polícia, início da marginalização do povo preto, que perdura até hoje.

O Brasil se aferrou intencionalmente a uma subcidadania, “que tem cor e sexo”, atesta o professor Hélio Santos, um de nossos maiores pensadores negros, presidente do Conselho Deliberativo da Oxfam. Ele se refere às mulheres negras, andar mais baixo da injustiça social. “A desigualdade aqui é uma decisão política e perpassa todos os governos”, conclui o intelectual, militante pioneiro em ações e movimentos para reparação do preconceito e da intolerância.

Eis aí, aliás, a palavra que precisa ser dita e repetida: reparação. Mais do que tratados com dignidade, os descendentes de escravizados merecem ser indenizados por toda a iniquidade sofrida pelos seus antepassados – exatamente como aconteceu com os judeus no Holocausto. O passivo dos 354 anos de escravidão – e do interminável 14 de maio – é gigantesco. 

Mas quando a assinatura da princesa ainda estava fresca, naturalizou-se a cegueira. A história oficial tentou apagar personagens fundamentais para a conquista, muito além da burocracia legal – Luís Gama, Luísa Mahin, Zumbi dos Palmares, os irmãos Rebouças, Maria Firmina dos Reis e muitos outros demoraram décadas para terem sua luta reconhecida. 

No começo, o 13 de maio virou feriado (só deixou de ser em 1930, pela óbvia falta de razões para comemoração) e os negros despejados em cortiços e favelas, vítimas de seguidos processos de higienização. Sem emprego nem amparo, foram postos à margem da sociedade. 

Com as forças de repressão vigilantes, não havia sequer margem para reação. Somente em 1931 (mais de 40 anos depois) surgiu em São Paulo a Frente Negra Brasileira, que teve núcleos em todo o país, oferecendo assistência jurídica, social e, principalmente, educacional, para fornecer condições de inserção no mercado de trabalho dominado pelos brancos. 

E só duas décadas atrás, às portas do século 21, as cotas educacionais começaram a ser implantadas. Os beneficiados, aliás, estão entre os melhores alunos – apesar de perseguidos por inclemente preconceito. De qualquer jeito, as ações de reparação são contra-ataque tímido, num cenário ainda muito hostil. Entre incontáveis exemplos, basta observar qualquer presídio brasileiro: a quarta maior população carcerária do mundo (e contando) tem uma cor só. 

Até chegar a 2023, quando, em pouco mais de cinco meses, 1.202 pessoas foram encontradas trabalhando em condições análogas à escravidão – a última delas, uma senhora de 63 anos que, por 47, serviu três gerações de uma família, em condições degradantes.

Como ensinam Lazzo Matumbi e Jorge Portugal em “14 de maio”, samba-reggae educativo sobre a saga sem fim de um país:

“No dia 14 de maio, eu saí por aí

Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir

Levando a senzala na alma, eu subi a favela

Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia

Um dia com fome, no outro sem o que comer

Sem nome, sem identidade, sem fotografia

O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”

A chama que não se apaga

A chama que não se apaga

Depois da tempestade vem a bonança. Infelizmente, na vida real, as coisas nem sempre saem como no ditado. O exemplo mais recente é o caso dos quilombolas do Amapá: após um incêndio na principal subestação de energia do estado, no último dia 3, eles viram o já precário fornecimento de luz se tornar ainda pior. Catorze dias depois, um novo blecaute agravou a situação. Tudo isso no mês da consciência negra, que celebra a importância de pretos e pardos para o país e propõe uma reflexão em relação ao racismo que resiste em nossa sociedade.

Se antes os quilombos do Amapá chegavam a sofrer no mesmo mês até quatro blecautes que duravam alguns dias, a escuridão desta vez se prolongou por uma semana em lugares como Conceição do Macacoari. As 40 famílias que vivem na comunidade foram forçadas a fazer uma viagem no tempo. Trocaram lâmpada por lamparina e água encanada por água de poço. Diante deste cenário, a Anistia Internacional lançou uma mobilização exigindo que autoridades dos governos tomem providências em relação a esta situação.

Um ingrediente pode tornar especialmente devastador o efeito do apagão nestas comunidades: a pandemia. O Amapá só perde para Rio de Janeiro e Pará em número de quilombolas mortos por Covid-19. Quando a comparação é feita entre municípios, Macapá (com 15 casos) só fica atrás da capital fluminense, que tem 30. Os números são da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que mantém por conta própria um monitoramento. Entretanto, a organização admite que a quantidade de infectados é bem maior. “Quando adoece uma pessoa, não tem serviço de testagem ampla para a gente saber, naquele raio, quem mais se contaminou”, explica a educadora Givânia da Silva em vídeo compartilhado pela entidade no Instagram.

Um estudo da Universidade Federal do Amazonas apontou que a taxa de mortalidade do novo coronavírus entre os quilombolas de 5 estados da região é de 11,5%. É quase quatro vezes a média de 3% verificada pelo Ministério da Saúde em todo o território nacional. Um olhar menos atento poderia entender que se trata de um vírus racista. Porém, não precisa ser um expert para saber que microrganismos infecciosos desconhecem tons de pele.

De acordo com a pesquisa, na prática, é a desigualdade gerada por racismo que favorece a maior propagação do Sars-Cov-2. Esta desigualdade se reflete na dificuldade de acesso à água tratada, na falta de uma rede de esgoto e ou de coleta de lixo, na deficiência de políticas de prevenção e atenção, e mesmo na distância dos centros urbanos que, no passado, protegeu esses territórios e hoje pode atrapalhar. A distorção afeta até a distribuição da ajuda, quando ela existe. Sem energia e internet, muitos quilombolas não conseguiram pedir auxílio emergencial, por exemplo.

Os problemas não se limitam ao Amapá. Em todo o Brasil, 4.635 casos de Covid-19 foram contabilizados pela Conaq em 19 estados até o último dia 11. São histórias com nome e sobrenome, como Cirilo Araújo Brito, patriarca da comunidade do Grotão, em Goiás, que morreu no último dia 23.

Numa entrevista concedida em 2017, Cirilo contou que, na sua infância, as crianças tinham obrigação de acompanhar a conversa dos mais velhos para que pudessem passá-las adiante. Este hábito deixou de ser comum e revela um dos impactos da perda de anciãos nestas comunidades. Quando um deles morre, um pouco da trajetória de cada povo some junto. “A história quilombola e a indígena, ela é muito oral, é muito da memória. Então, a gente perdeu a pessoa, perdeu a história e perdeu parte da memória daquela comunidade”, lembra Givânia.

Entre os especialistas, o clima é de preocupação. A negligência em relação aos territórios durante a pandemia “pode vir a representar o maior genocídio da população quilombola no Brasil desde o período escravocrata”, escreveu Eduardo Rodrigues Santos, sociólogo da Universidade Nacional de Brasília, no artigo “Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras”.

Com quase 500 anos de luta, os quilombolas já não esmorecem mais diante de ameaças como a redução no reconhecimento de territórios por parte do governo federal. Em 2018, foram 144 áreas reconhecidas. Já no ano passado, só 70. O que as comunidades têm feito é buscar novas estratégias, como a eleição de um prefeito, um vice-prefeito e 54 vereadores em 2020. Para quem se define a partir de um espaço que é fruto da busca pela liberdade, a coragem nunca foi uma qualidade – mas sempre um pré-requisito.

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Saiba mais:

Anistia Internacional – Amapá pede socorro! Pressione as autoridades

G1 – Laudo inicial descarta que raio tenha causado incêndio que provocou apagão no Amapá

Folha – Macapá pode ficar até 15 dias sem luz após incêndio em subestação

G1 – Amapá tem novo apagão total

Portal Cultura – Dia da Consciência Negra: entenda o significado da data

Portal Geledés – O que é Consciência Negra?

Folha – Com apagão no Amapá, quilombolas perdem carne, peixe e polpa de fruta

Conaq e ISA – Quilombo sem Covid-19

Conaq (instagram) – Covid-19 nos quilombos

Ufam – Amazônia concentra recorde de mortes de quilombolas por covid-19

Ministério da Saúde – Painel Coronavírus

Conaq (instagram) – Cirilo Araújo Brito

Universidade Federal do Tocantins – A formação socioterritorial da comunidade remanescente de quilombo Grotão

Revista do CEAM – Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras

Nexo – A covid-19 nos quilombos. E a cobrança por ações do governo

O Globo – Quilombolas elegeram 56 representantes na eleição de ontem em dez estados — um recorde

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