abril 2023 | Cultura, Direitos indígenas, Povos Tradicionais
Por Eliane Xunakalo*
Estamos no abril indígena, mês que marca a luta dos povos originários. Este ano, com nossa imensa diversidade – somos 305 povos no Brasil, falantes de 274 línguas – representada nos principais espaços de poder do país. Com 86 territórios indígenas, Mato Grosso é um pequeno reduto dessa diversidade: aqui vivem 43 povos diferentes, que representam nada menos que 14% de todas as etnias do país.
Essa diversidade se reflete também na sociedade. Nossos traços, nossos cabelos, nosso sangue estão presentes em cada cidadão mato-grossense, para não falar da vasta herança cultural. Apesar disso, Mato Grosso não elegeu indígenas para o parlamento e pouco tem contribuído com a principal luta de seus povos originários: o bem viver. E, por bem viver, a gente entende a proteção das florestas, dos rios, da biodiversidade e da nossa cultura; a proteção do nosso território.
Quando alcançarmos nosso bem viver, o planeta estará salvo. Afinal, os povos indígenas são guardiões de 80% da biodiversidade do planeta, apesar de serem 5% da população mundial. Em Mato Grosso a gente também vem tentando defender o nosso bem viver, por uma questão de sobrevivência – nossa e do planeta. Uma análise do ICV com base em dados do Prodes, mostrou que, entre agosto de 2021 e julho de 2022, menos de 3% do desmatamento no Cerrado aconteceram em terras indígenas, o que reforça aquilo que todos já sabemos: que reconhecer e proteger territórios tradicionais é a melhor estratégia contra crimes ambientais e a favor do clima do planeta.
Mas manter essa proteção não tem sido nada fácil, ainda mais quando não se tem apoio dos governos e parlamentos. Nos três primeiros meses de 2023, Mato Grosso foi o estado que mais desmatou a Amazônia, contribuindo e muito para a devastação no bioma atingir o segundo maior índice desde 2015. Sozinho, o estado destruiu 89% do que Amazonas e Pará desmataram juntos. O cenário afasta Mato Grosso do compromisso assumido em 2015, na Conferência do Clima, em Paris, de reduzir o desmatamento para 571 km² por ano até 2030: só nos três primeiros meses de 2023 foram desmatados 311 km².
Nos últimos anos, a cobiça por nossas riquezas só cresceu, enquanto os mecanismos de garantia de nossos direitos foram, cada vez mais, fragilizados. O exemplo mais recente é o Projeto de Lei Complementar (PLC) 17, de 2023, em tramitação na Assembleia Legislativa, que exclui a representação indígenas no Conselho Estadual de Educação, medida considerada inconstitucional pela Defensoria Pública da União (DPU).
O PLC 17 é o caso mais recente, mas está longe de ser a única ameaça aos povos de Mato Grosso. Direitos indígenas são atropelados por empreendimentos minerários, agropecuários e hidrelétricos, que avançam mesmo sem consulta prévia e apesar dos impactos. É o que vem acontecendo na sub-bacia do Juruena, onde vivem 20 povos indígenas, e que ajuda a dar vida ao majestoso Tapajós. Um estudo recente da OPAN revelou que, dos 167 projetos de empreendimentos hidrelétricos pensados para a região, 36 são de alto risco, sendo 27 de risco altíssimo por estarem a menos de 5 km de TIs ou comunidades tradicionais. E isso inclui as PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) e CGHs (Centrais Geradoras Hidrelétricas) que, da forma que estão sendo planejadas, geram um impacto enorme na vida dos povos tradicionais.
Além dos indígenas, existem mais de uma centena de territórios de quilombolas e ribeirinhos que lutam pelos rios em completa invisibilidade. E sabe quem perde com isso? Todo mundo, até quem acha que saiu lucrando.
É por isso que a FEPOIMT decidiu promover o primeiro Acampamento Terra Livre (ATL) de Mato Grosso, com quatro dias de troca de saberes e audiências públicas no centro político e administrativo de Cuiabá: a Praça Ulisses Guimarães. O ATL-MT nasce como a representação da força do movimento indígena e como um espaço de escuta, intercâmbio cultural e diálogo entre todos – indígenas, sociedade em geral, parlamentares e os governos – para debater medidas e projetos que impactam nossos territórios, violam nossos direitos e afetam nossas vidas.
Estamos levando nossa luta para a praça pública porque vamos precisar de reforços não só nas ruas e redes, mas nos poderes Executivo e Legislativo, para transformar a garantia de direitos em políticas públicas. Precisamos dar visibilidade às questões que afetam os povos indígenas porque, se impacta nossos territórios, cedo ou tarde impactará sua vida também. Quando lutamos por nossas terras ancestrais, lutamos pela Mãe Terra e pelo futuro de todos os seus filhos, sem distinção.
Por isso, é preciso que todos conheçam nossa diversidade e se reconheçam como parte dela. Esse é o caminho que precisamos tecer para transformar o dissenso, comum a toda diversidade, em um consenso: o bem do planeta para o bem viver de todos os povos. É como nos dizia nossa grande liderança Aritana Yawalapiti: ‘Estivemos semeando e, agora, precisamos regar’.
*Eliane Xunakalo é presidente da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT)
fevereiro 2023 | Amazônia, Biodiversidade, Direitos indígenas, Garimpo, Povos Tradicionais, Tapajós
Puyr Tembé, presidente da Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa) e secretária dos Povos Indígenas do Pará
A mãe do Brasil é indígena. Foi uma de nós quem deu à luz esta terra. Nossa ligação com ela é verdadeiramente ancestral. O mundo inteiro se comoveu com o martírio dos Yanomami e correu para ajudá-los. Sou mãe: consigo imaginar, como se fosse minha, a dor de quem perde o filho ou que não pode amamentá-lo; ou das mulheres que sofreram violência sexual e abortaram por espancamento. Infelizmente, os Yanomami não são os únicos que correm o risco de serem dizimados por causa da cobiça alheia: eu, por exemplo, vivo num estado tão ou mais ameaçado pelo garimpo ilegal que Roraima. Por isso dediquei minha vida à luta pela defesa de nossas terras.
Nasci há 44 anos na aldeia São Pedro, na Terra Indígena Alto Rio Guamá, no sudoeste do Pará. Sou mãe de três filhas, avó e milito desde muito jovem; só que nos últimos quatro anos, nós, mulheres e lideranças indígenas, tivemos que decidir entre lutar para viver, ou esperar pela morte. A forma como fomos (des)tratadas durante a pandemia acendeu definitivamente o alerta. Hoje, presido a Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa) e fui convidada para assumir a recém-criada Secretaria dos Povos Indígenas do Pará. Além disso, faço parte da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira e sou cofundadora da Associação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
Mais da metade das áreas de garimpo do país ficam no Pará, muitas delas em unidades de conservação e em nossos territórios. Estima-se que 60 mil garimpeiros atuam só na Bacia do Rio Tapajós. Na mesma região, vivem 13 mil Munduruku; ou seja, eles estão em minoria em suas próprias terras. Os efeitos já podem ser sentidos: a Polícia Federal calcula que foram despejados cerca de 7 milhões de toneladas de rejeitos tóxicos na bacia hidrográfica, enquanto um estudo da Fundação Oswaldo Cruz revelou que mais da metade da população de três aldeias (Sawré Muybu, Sawré Aboy e Poxo Muybu) tem mercúrio no organismo acima do recomendado.
É por isso que temos muitas frentes de batalha, mas a maior delas é lutar pela vida. E quando dizemos isso, falamos de demarcação e desintrusão de terras indígenas. Protegendo nossas terras, preservamos sua biodiversidade e nossas próprias vidas, e ajudamos a proteger a própria Humanidade. Os povos indígenas agora falam de igual para igual com a sociedade como um todo. Hoje estamos no governo, devemos executar em vez de solicitar. Mas eu continuo sendo Tembé.
Estamos lutando pelas que já não estão mais aqui, levadas pela pandemia ou pelo mercúrio, por nossa ancestralidade; e pelas nossas que ainda estão por vir, o nosso futuro. Só que nós, mulheres do movimento indígena, não vamos conseguir fazer isso sozinhas. Ainda precisamos do Estado, dos parceiros, dos aliados, das entidades que sempre nos deram apoio, colaboradores e simpatizantes. Toda a população brasileira deve assumir conosco a maternidade/paternidade deste país.
fevereiro 2023 | Amazônia, Direitos indígenas, Garimpo, Mnistério dos Povos Indígenas, Povos Tradicionais
Quem diria que, depois de o país engatar uma marcha-a-ré em 2019, que quase nos levou de volta ao período colonial, veríamos uma mulher indígena ser nomeada ministra tão cedo? Que os povos originários ditariam o seu próprio destino num ministério próprio e na Funai? Só que a descida ao inferno pelo qual passou nos últimos quatro anos, longe de enfraquecer, fortaleceu ainda mais o movimento indígena. Seu poder de barganha e a empatia da sociedade como um todo por suas causas ficaram do tamanho da Amazônia; porém, o desafio também tem dimensões amazônicas. E, por ele ser tão grande, os trabalhos começaram já com mãos à massa.
Não houve quem não sentisse no corpo e na alma a dor dos Yanomami, retratada em imagens que ganharam o mundo. Estreante, o Ministério dos Povos Indígenas agiu como veterano, chamando para si a responsabilidade de socorrê-los. Um mês de ações e já sentimos a diferença. Ações efetivas e emergenciais. Uma força tarefa foi montada, tendo como força motriz a necessidade de reparar essa tragédia inaceitável que se anunciava há anos, mas que nos últimos quatro anos beirou o genocídio.
Ver a ministra Sonia Guajajara atuando em conjunto com outros ministérios – do Meio Ambiente e Mudança do Clima, da Saúde, Justiça, da Defesa, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, de Direitos Humanos, e da Gestão e Inovação em Serviços Públicos – é testemunhar, na prática, o conceito de transversalidade proposto por Marina Silva. Só que isso não aconteceu num passe de mágica: ninguém conhece melhor seus problemas que os próprios povos originários, que também cultivam o trabalho coletivo. O nome disso é preparo.
Para os que disseram que “se fosse tão sério, já estaria estampado na mídia”, a receita é cuidar da memória, já que os próprios povos indígenas denunciam esse descaso há anos. Muita gente pode ter sido pega de surpresa com a situação desoladora dos Yanomami, mas não o governo. “Existem estudos que mostram altos níveis de desnutrição infantil e alta prevalência de doenças respiratórias, como pneumonia e tuberculose; e outras doenças, como malária e tungíase. Todo esse cenário – com a adição de mais um fator de risco, que é a exposição ao mercúrio em todas as suas formas químicas – pode, sim, promover o desaparecimento do povo Yanomami em algum tempo”, alertava, já em novembro de 2019, a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Ana Vasconcellos.
O garimpo ilegal é uma praga que maltrata a Terra Indígena Yanomami há décadas, mas há quatro anos se alastrou de vez. Os próprios indígenas começaram a monitorá-la em 2018, quando registraram 12 km² desmatados; de 2019 a 2022, foram mais de 32 km². Só no ano passado, houve um aumento de 54% em relação a 2021. O território abriga 30,4 mil indígenas e calcula-se que foi tomado por pelo menos 20 mil invasores. A situação foi denunciada diversas vezes ao governo por entidades como o Conselho Indígena de Roraima (CIR), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Só a Hutukara Associação Yanomami teve 21 pedidos de ajuda solenemente ignorados pelo governo. Não custa lembrar: a negação e a naturalização são estratégias de quem visa o extermínio.
O ex-presidente também descumpriu ordens judiciais, como uma liminar da Justiça Federal para obrigá-lo a combater o garimpo em 2020, ou a ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) para retirar os garimpeiros do local durante a pandemia, no mesmo ano. A decisão já previa uma crise sanitária. Os casos de malária dobraram de 2018 a 2022, pulando de 10 mil para mais de 22 mil por ano, e 152 crianças de até 5 anos morreram de desnutrição entre 2019 e 2022, 360% a mais que nos quatro anos anteriores, quando foram 33 mortes. Parece difícil, mas nos anos 1990 houve uma invasão ainda maior, e os garimpeiros foram expulsos. Basta querer.
Vontade não falta, mas é preciso ter paciência. O governo Bolsonaro não só desmontou as estruturas dos órgãos que cuidavam do meio ambiente e os povos da floresta, como esvaziou o caixa. Hoje, há 14 terras indígenas com seus processos de demarcação concluídos e que já podem ser homologadas; entretanto, a agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) tem menos de R$ 90 mil para demarcar e proteger territórios. “Então, nós vamos ter que buscar alternativas, ter parceria das próprias organizações indígenas e apoio de fundos, inclusive do Fundo Amazônia”, diz a presidente da entidade, Joênia Wapichana, uma guerreira que nunca se entrega.
Em apenas um mês com os indígenas à frente dos órgãos criados para garantir seus próprios direitos muito se fez, mas há muito mais a ser feito. Pautas-bomba como os projetos de lei 191 (que prevê a abertura das terras indígenas aos interesses econômicos) e 490 (que altera as regras para demarcação de TIs) ainda tramitam no Congresso. Nos últimos quatro anos, a ferida infeccionou e as dores aumentaram, mas temos como tratá-la. Os cuidados não podem ser paliativos e não há cura imediata. Anos de abandono e descaso não podem ser resolvidos com um abracadabra. É preciso um esforço de todos, a começar pelos que aprovam leis – e passando pelos que os elegeram. Temos que estar atentos e fortes para lutarmos, juntos, por um único Brasil.
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janeiro 2023 | Direitos indígenas, Povos Tradicionais
Júnior Nicácio*
Bons frutos são mais resistentes às pragas – os da terra chegam a ser imunes. Com dois anos de atraso, devido à pandemia de Covid-19, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) finalmente pôde comemorar seu 50º aniversário, reunindo mais de 2 mil pessoas em um território sagrado e emblemático: a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A semente da qual brotou o CIR foi primeira Assembleia dos Tuxauas, realizada de 4 a 7 de janeiro de 1971 – Tuxaua é o termo que denomina os líderes das comunidades Wapichana. Junto com a União Nacional Indígena (UNI), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e outras associações, o CIR semeou o solo do movimento indígena brasileiro.
Esses pioneiros foram fundamentais para que garantíssemos não só nossos direitos territoriais, como também o de manter nosso modo de vida na Constituição de 1988. O artigo 231 diz, textualmente, que terras indígenas são “as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Uma vitória no campo do adversário.
Até a criação do Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, e a nomeação de minha mentora Joênia Wapichana à presidência da Funai, foi preciso muita luta para garantir que esses direitos constitucionais fossem respeitados. A própria Joênia, quando atuava como advogada no CIR, foi responsável pela sustentação oral da defesa da demarcação da Raposa Serra do Sol. O caso só foi concluído em 2009 e se tornou um marco de nosso movimento – e, porque não dizer, da própria História do Brasil. Quando Sonia tomou posse como ministra, ganhamos mais um motivo para comemorar esse cinquentenário.
Engana-se, porém, quem acredita que recebemos de mão beijada das gerações anteriores a questão indígena solucionada. Ainda há muito trabalho para fazer – proteger nossos parentes Yanomami, cuja terra foi invadida por dezenas de milhares de garimpeiros talvez seja nossa prioridade máxima. Ao celebrar esse cinquentenário, não apenas festejamos, mas refletimos. Precisamos continuar atentos. Infelizmente, ainda há no Brasil quem nos veja como obstáculo ao que chamam de desenvolvimento; como vivemos numa democracia, nada impede que a Presidência da República seja tomada por outro mau espírito.
O Karaiwa – como chamamos o homem branco – tem um ditado que diz que o hábito não faz o monge. Nasci na Terra Indígena Manoá/Pium, na região da Serra da Lua, que fica na fronteira de Roraima com a Guiana. Cursei o ensino superior em Boa Vista, onde me formei advogado, em 2020. Hoje, faço parte do departamento jurídico do CIR. Meu ofício me obriga a usar terno e gravata. Mas, da mesma forma que o Karaiwa que compra cocar no camelô e se pinta com guache para brincar o Carnaval não vira indígena, não é por isso que eu vou deixar de ser Wapichana.
Este é justamente um dos maiores desafio de nossa geração: experimentar, conhecer outras culturas sem perder nossa identidade. Impedir que nos embranqueçam culturalmente. Enfatizo essa necessidade porque não reconhecer quem mora na cidade grande como indígena faz parte da estratégia daqueles que ambicionam nossas terras. Só deixamos nossa casa obrigados, para protegê-la.
Mas lugar de indígena é onde ele quiser. Sou Wapichana em minha comunidade natal ou na cidade grande. Tenho essa consciência porque aliei a educação formal oficial aos ensinamentos que herdei de meus ancestrais. No Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, eu me diplomei técnico agropecuário. Lá, aprendi a cuidar da terra a partir de nossos métodos, que não destroem o meio ambiente; o desenvolvimento sustentável a partir de nosso olhar. Durante minha formação, conheci grandes lideranças, como Jaci Macuxi, Clovis Wapichana e o pajé Orlando Pereira, de Uiramutã, herói que ousou enfrentar o Exército.
Na universidade, aprendi a lei do homem branco para defender o meu povo. Da mesma forma, usamos sua tecnologia, como instrumento de difusão de nossa cultura para os mais jovens, para que entendam a importância de sua preservação. A ditadura quis nos integrar à força, destruindo nossa cultura; quando não conseguiam, tentavam nos dizimar. Hoje, usamos as armas do inimigo contra ele.
O CIR atua nas 35 terras indígenas de Roraima. É uma área de mais de 100 mil km², e uma população de 58 mil indígenas em 465 comunidades. No estado vivem Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi; uma responsabilidade sem tamanho. Tem Karaiwa que acredita – ou finge acreditar – que não damos duro, porque trabalhamos cantando. Por que não o faríamos? Para nós, trabalho não é sofrimento. Sabemos que a briga não acabou, pois o monstro da ganância é tão resiliente quanto nós. Mas podemos e devemos, sim, celebrar. A alegria nos fortalece na luta por um futuro feliz.
* Júnior Nicácio é advogado e indígena da etnia Wapichana, nascido na Terra Indígena Manoá/Pium, em Roraima. Atualmente é assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
janeiro 2023 | Direitos indígenas, Política, Povos Tradicionais
Num futuro não muito distante, os livros dirão que o 11 de janeiro de 2023 foi um dos mais importantes de nossa História. A criação do Ministério dos Povos Indígenas é um passo civilizatório gigantesco; como se avançássemos mais de 500 anos em horas. E o símbolo deste momento tem nome e sobrenome: Sonia Guajajara.
Fosse o país justo, essa pasta sequer deveria existir, e esperamos que um dia não seja mais necessária. Um dia que, a depender da índole de sua titular, que inclui muita coragem, uma capacidade sobre-humana de dialogar e disposição inesgotável para o trabalho, está bem próximo. Ela foi nomeada ministra pelo presidente Lula, que assistiu, no segundo ano de seu primeiro governo, ao nascimento do Acampamento Terra Livre (ATL).
Foi ali, em 2004, que foram lançadas as bases da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ela atuou como coordenadora executiva da entidade de 2013 até 2021. O ATL começou pequenininho, reunindo 200 lideranças de 31 povos; no ano passado, em sua retomada presencial no pós-pandemia, eram 8 mil de 200 etnias diferentes. E foi justamente quando ela assumiu a coordenação da Apib que nossos caminhos se cruzaram.
Poucos políticos brasileiros têm tamanha capacidade de articulação. Não à toa, hoje Sonia não é apenas Guajajara ou brasileira, mas cidadã do mundo; uma das 100 pessoas mais influentes da Terra, segundo a revista “Time”.
Sonia não se fez sozinha, por óbvio: é fruto de uma cultura que privilegia o coletivo às aspirações individuais. Há pouco mais de uma década lançamos uma campanha que trazia uma interrogação comum entre a maioria dos brasileiros: “Ainda existe índio de verdade no Brasil?”. Hoje, ninguém tem dúvidas sobre isso. E mais, a maioria da população reconhece sua importância para a preservação das florestas e que eles preferem ser chamados de indígenas. Com a criação do ministério comandado por Sonia e a entrega da presidência da Funai a outra mulher formidável, Joênia Wapichana, sentimos no coração a sensação de missão cumprida.
Mas herdamos do governo derrotado nas urnas um país desfigurado por retrocessos nunca vistos, que racharam a sociedade. Sonia é mestra em dar nó em pingo d’água, constrói consenso em meio a dissenso; ainda assim, terá uma tarefa hercúlea pela frente. A simples existência do ministério é vista como uma ameaça por quem acredita que o Brasil é sua colônia.
O país atravessa uma crise brutal, com toda a estrutura que cuidava do meio ambiente vandalizada, e já sabemos de antemão que Sonia não terá um orçamento à altura desse desafio. Mas só uma minoria ainda não entendeu – ou finge não entender – que, em meio ao avanço das mudanças climáticas, cuidar da Amazônia é uma tarefa vital, que cabe a toda Humanidade.
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