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Protagonismo político do movimento indígena

Protagonismo político do movimento indígena

Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, presidente da Funai (1995-1996) e deputado federal pelo MDB (1983-1986)

Juliana de Paula Batista, mestre em Direito pela UFSC e advogada do ISA

O 3º mandato do presidente Lula começa com uma grande novidade: o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Sônia Bone Guajajara foi escolhida para comandar a pasta e Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita deputada federal, para assumir a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estará vinculada ao MPI. Já Weibe Tapeba assumiu a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. Outros indígenas ocuparão mais cargos na administração federal.

Lula governará com 37 ministérios, com espaço para 15 partidos e vários movimentos sociais. As contradições entre esses vários campos vão se expressar dentro do próprio governo. Com a presença de uma ministra indígena, pela primeira vez, os conflitos entre direitos indígenas e interesses contrários serão tratados de forma direta, sem intermediários, embora com a eventual mediação do Presidente e do núcleo do governo.

Mas também haverá fortes embates com as oposições, não apenas no Congresso, mas também com ruralistas extremistas e bolsonaristas, empresários do garimpo, grileiros de terra e outros atores anti-indígenas. Parte deles envolveu-se no movimento antidemocrático e na depredação das sedes dos poderes em Brasília. As ligações entre quem financiou os atos e deles participou não deixam dúvidas. Os mesmos grupos estão em regiões críticas da Amazônia, onde se concentram os crimes socioambientais e proliferam os clubes de tiro, áreas sob o domínio de grupos golpistas e do crime organizado.

Levará tempo para recuperar órgãos, políticas e orçamentos públicos deteriorados relacionados à agenda socioambiental. Mesmo com vontade política, outros fatores serão determinantes para que ocorram avanços nesse tema. Por exemplo, o presidente Lula já definiu que será retomada a demarcação das Terras Indígenas e há uma lista de 14 áreas cuja oficialização poderá ser concluída nos próximos meses por decretos de homologação. Parte das pendências demarcatórias, porém, está sub judice e sujeita ao ritmo lento da Justiça. 

No Legislativo, tramitam projetos que podem trazer retrocessos aos direitos já conquistados, como no caso da demarcação de Terras Indígenas e a possibilidade de abrir essas áreas para grandes empreendimentos. Parlamentares ruralistas, representantes do “ogronegócio”, têm investido pesado em atacar esses direitos, inclusive relacionando-se com pessoas envolvidas em crimes ambientais e invasores de terras indígenas. No momento, são os maiores responsáveis por radicalizações e ataques à segurança jurídica, como no caso da Terra Indígena Apyterewa (PA), já homologada, mas constantemente invadida. 

Longe de voltar seu olhar para os graves problemas do setor, como o combate ao desmatamento, as cadeias produtivas que ainda utilizam trabalho escravo, o incentivo a novas tecnologias para o aumento da produtividade, parte da bancada ruralista ainda investe seus vultosos recursos em atacar indígenas e queimar ainda mais o filme do país no exterior. 

Ninguém quer investir numa Amazônia cheia de ilegalidades e crimes ou ver as Terras Indígenas, as áreas mais ambientalmente conservadas do país, arrasadas pelo garimpo, pela mineração ou convertidas em pasto. Esses territórios não podem ser convertidos em grandes canteiros de obras, sob pena de deixarem de ser o que são. Ainda é cedo para saber se o Legislativo já entendeu o ativo que o país tem na mão. Mas parece que não. 

Em janeiro, a imprensa divulgou as mortes de 570 crianças Yanomami por desnutrição e doenças evitáveis, resultado de uma crise sanitária provocada pela invasão garimpeira e a conivência do antigo governo. Em resposta, Lula foi a Roraima, junto com vários ministros, avaliar a situação e anunciar providências emergenciais para assistir as comunidades afetadas. A questão impactou a opinião pública, dominando o noticiário e as redes sociais. 

No Senado, uma Comissão Externa constituída, em sua maioria, por parlamentares historicamente apoiadores da ilegalidade foi formada com o aval do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ele envia um sinal ruim para a sociedade, que neste momento encontra-se chocada com as barbaridades cometidas contra os Yanomami. Perdeu uma boa oportunidade de mostrar protagonismo na construção de uma agenda que coloque limites à política de terra arrasada e sem lei que o último governo tentou impor à maior floresta tropical do planeta.

O discurso anti-indígena do governo passado deve ter aumentado o preconceito contra os povos originários entre os segmentos mais radicais de direita, além de fortalecer os interessados na apropriação das Terras Indígenas e dos seus recursos naturais. Por outro lado, a rejeição desse processo pela maioria da sociedade ampliou a adesão à defesa dos direitos dessas populações. A fidelização desse engajamento e a ampliação de novos apoios dependerão do desempenho dos que estão no governo e dos movimentos sociais como um todo, e será essencial para garantir a sustentabilidade futura dessas políticas.

Uma coisa é certa: a defesa dos direitos indígenas e das florestas não interessa apenas aos próprios indígenas e setores envolvidos com a defesa do meio ambiente. A expressiva votação da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), em Minas Gerais, mais votada que políticos tradicionais como Aécio Neves (PSDB), e de Sônia Guajajara (PSOL), em São Paulo, mostram que a sociedade está mobilizada e seguirá atenta.

O dia em que o Brasil tomou posse de si mesmo

O dia em que o Brasil tomou posse de si mesmo

Num futuro não muito distante, os livros dirão que o 11 de janeiro de 2023 foi um dos mais importantes de nossa História. A criação do Ministério dos Povos Indígenas é um passo civilizatório gigantesco; como se avançássemos mais de 500 anos em horas. E o símbolo deste momento tem nome e sobrenome: Sonia Guajajara. 

Fosse o país justo, essa pasta sequer deveria existir, e esperamos que um dia não seja mais necessária. Um dia que, a depender da índole de sua titular, que inclui muita coragem, uma capacidade sobre-humana de dialogar e disposição inesgotável para o trabalho, está bem próximo. Ela foi nomeada ministra pelo presidente Lula, que assistiu, no segundo ano de seu primeiro governo, ao nascimento do Acampamento Terra Livre (ATL). 

Foi ali, em 2004, que foram lançadas as bases da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ela atuou como coordenadora executiva da entidade de 2013 até 2021. O ATL começou pequenininho, reunindo 200 lideranças de 31 povos; no ano passado, em sua retomada presencial no pós-pandemia, eram 8 mil de 200 etnias diferentes. E foi justamente quando ela assumiu a coordenação da Apib que nossos caminhos se cruzaram.

Poucos políticos brasileiros têm tamanha capacidade de articulação. Não à toa, hoje Sonia não é apenas Guajajara ou brasileira, mas cidadã do mundo; uma das 100 pessoas mais influentes da Terra, segundo a revista “Time”. 

Sonia não se fez sozinha, por óbvio: é fruto de uma cultura que privilegia o coletivo às aspirações individuais. Há pouco mais de uma década lançamos uma campanha que trazia uma interrogação comum entre a maioria dos brasileiros: “Ainda existe índio de verdade no Brasil?”. Hoje, ninguém tem dúvidas sobre isso. E mais, a maioria da população reconhece sua importância para a preservação das florestas e que eles preferem ser chamados de indígenas. Com a criação do ministério comandado por Sonia e a entrega da presidência da Funai a outra mulher formidável, Joênia Wapichana, sentimos no coração a sensação de missão cumprida. 

Mas herdamos do governo derrotado nas urnas um país desfigurado por retrocessos nunca vistos, que racharam a sociedade. Sonia é mestra em dar nó em pingo d’água, constrói consenso em meio a dissenso; ainda assim, terá uma tarefa hercúlea pela frente. A simples existência do ministério é vista como uma ameaça por quem acredita que o Brasil é sua colônia.

O país atravessa uma crise brutal, com toda a estrutura que cuidava do meio ambiente vandalizada, e já sabemos de antemão que Sonia não terá um orçamento à altura desse desafio. Mas só uma minoria ainda não entendeu – ou finge não entender – que, em meio ao avanço das mudanças climáticas, cuidar da Amazônia é uma tarefa vital, que cabe a toda Humanidade. 

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