A ema abre o bico

A ema abre o bico

Ema não é de falar muito; na verdade só o macho abre o bico e, mesmo assim, exclusivamente para passar cantada na gente em época de acasalamento. Por isso até agora eu não tinha dado um pio. Mas não vou esconder a cabeça num buraco como a prima avestruz: sou emancipada – aqui em casa é meu companheiro quem toma conta dos filhotes – e arco com as consequências de meus atos. Biquei, biquei outra vez e bico de novo se for preciso. Já tínhamos recebido hóspedes inoportunos no Alvorada, mas nenhum tão declaradamente hostil à natureza. E ainda vem me oferecer agradinho? Isso me ofende. Quer minha simpatia? Mude de atitude. Não sou pra qualquer bico.

Nós, emas, somos a elegância em forma de bípede, as maiores, mais majestosas e modestas aves da América do Sul. Chegamos aqui quando era tudo mato e vivemos do Pampa à Caatinga. Mas enquanto eu desabafo e tiro onda, uma de nossas casas mais belas, o Pantanal, a maior planície alagada do planeta, arde em chamas como nunca. Entre 1º de janeiro e o último dia 28 foram detectadas 3.415 queimadas na região. É o maior número registrado desde 1998, quando o monitoramento começou a ser feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e 189% maior que o do mesmo período no ano passado. Mais de 300 mil hectares já pegaram fogo.

É vero que o Pantanal foi incluído, junto com a Amazônia, no decreto do governo federal que proibiu as queimadas por 120 dias. Mas logo nos primeiros 15 dias de julho, já com a moratória valendo, houve um aumento de 12% em relação ao mesmo período de 2019, em Mato Grosso. O governador do estado decretou situação de emergência ambiental. Os incêndios são criminosos, mas dados do Inpe mostram que o volume de chuvas no bioma foi metade do normal no período de janeiro a maio. E a vegetação seca faz o fogo se alastrar com mais facilidade. O engenheiro agrônomo e doutor em Geografia Física Felipe Dias, diretor executivo do Instituto SOS Pantanal, explica que os rios também não inundaram a região como costuma acontecer nesta época do ano: “Deveríamos estar no nível de cheia máxima, principalmente no Rio Paraguai. Agora, a área sem inundação está vulnerável a incêndios, especialmente diante da atual condição de baixa umidade do solo e do ar”. Segundo Dias, esta situação pode ser comum no futuro, já que o regime de chuvas foi completamente zoado pelas mudanças climáticas.

Amazônia (com 60,93%), Cerrado (30,95%) e Pantanal (8,12%) concentram o maior número de queimadas no primeiro semestre. Isso não acontece por acaso: os três biomas estão intimamente ligados. É a Amazônia que rega o Cerrado, por meio das nuvens que se formam na floresta e que são carregadas para lá pelo vento, os chamados “rios voadores”; e é o Cerrado, a “caixa d’água do Brasil”, que inunda o Pantanal. As emas não vivem na Amazônia – preferimos desfilar nossa graça por planícies de vegetação baixa – mas, assim como acontece com todo mundo, somos afetadas pelo que acontece lá. O país vem batendo sucessivos recordes de desmatamento desde 2019. Piscou e lá se foi um campo de futebol abaixo. Em carta aberta divulgada no dia 27, mais de 600 servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirmam que o desmatamento neste ano na Amazônia pode ser 28% maior que no ano anterior – e que na comparação com 2018, o aumento é de 72%. Ou seja, a situação tende a piorar. Vou abrir o bico aqui de novo: a missiva foi dirigida ao vice-presidente Hamilton Mourão, que ora preside o ex-extinto Conselho Nacional da Amazônia. Já sabem de quem cobrar.

Ainda não é possível afirmar com certeza a origem deste coronavírus, mas é consenso que o desequilíbrio climático, a destruição do meio ambiente e o tráfico de animais silvestres são a porta de entrada para pandemias – e a Covid-19 tem servido de base para novas pesquisas nesta área. Acusado sem provas, o morcego chinês estava na dele, vocês é que foram chegando cada vez mais perto de sua casa – assim como o presidente veio parar na minha. “A relação entre desmatamento e tráfico de animais silvestres e o surgimento de doenças emergentes é muito bem estabelecida. Mesmo assim, ações ambientais estão essencialmente fora da agenda de prevenção de pandemias”, disse Mariana Vale, professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Até agora nenhuma ema contraiu a Covid-19, mas vou dar minha bicada: Mariana participou de um estudo recém-publicado na revista “Science”, feito por cientistas de Brasil, Quênia, China e Estados Unidos. Ele concluiu que combater o contrabando de animais e frear a degradação de florestas tropicais sairia muito mais barato que combater doenças, uma economia entre US$ 22 bilhões e US$ 31 bilhões por ano. O estudo compara este valor com os US$ 2,6 trilhões perdidos até agora para a Covid-19, além das mais de 600 mil vidas humanas.

O presidente outro dia veio me oferecer cloroquina – sorte dele que eu estava bem-humorada – e, segundo foi divulgado em entrevista coletiva do Ministério da Saúde no dia 24, o governo federal distribuiu 100.500 comprimidos do medicamento para nossos irmãos indígenas. Como a transparência nas contas públicas não é o forte deste governo, sabe-se lá quanto essa medida inadequada custou aos cofres públicos; mas é quase certo que o remédio não tem nenhuma eficácia contra a doença além de provocar graves efeitos colaterais. Que tal prevenir em vez de remediar? Bom, já disse tudo o que estava entalado aqui no meu gogó. Depois não adianta gemer no tronco do juremá.

#EmaDaAlvorada #Pantanal #Queimadas #Desmatamento #MeioAmbiente #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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Filme carbonizado

Filme carbonizado

O filme do Brasil está carbonizado no exterior e não será fácil recuperar a imagem de outrora. Já tínhamos um histórico acumulado e o artigo recém-publicado na revista “Science”, que afirma que 20% da soja e 17% da carne que exportamos para os europeus vêm de áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia e no Cerrado, nos queimou mais ainda. O avanço da destruição da floresta e, por consequência, das sanções econômicas, não será detido com palavras. “Queremos ver dados sobre queda do desmatamento”, disse o embaixador da União Europeia (UE) no Brasil, Ignacio Ibáñez. “Acho que as ações que os investidores e atores internacionais estão fazendo estão começando a dar resultado nas declarações. Mas queremos ver que essa vontade vá se converter em dados mais positivos do que os tivemos até agora, porque até agora os dados não são positivos”, continuou.

A chegada do coronavírus deixou ainda mais claro que será preciso um esforço global para deter o avanço das mudanças climáticas. Os boletins do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) são o termômetro que mede nosso empenho no combate à febre que acomete o planeta. Com o Ministério do Meio Ambiente desacreditado, a solução encontrada foi recriar o Conselho Nacional da Amazônia – extinto por este mesmo governo – e dar ao vice-presidente Hamilton Mourão a tarefa de convencer a comunidade internacional de que vamos fazer o dever de casa. Mas de pouco adianta anunciar que as Forças Armadas vão ficar na Amazônia até 2022 e, ao mesmo tempo, contrariar os protocolos de segurança e permitir que militares levem suas esposas a aldeias indígenas em plena pandemia. O governo proibiu as queimadas na Amazônia por 120 dias, mas criminosos não seguem leis. O próprio Mourão admitiu que o Ibama está destroçado e, como o Exército não é especialista no ramo, a catástrofe ainda está anunciada.

A publicação da “Science” deixou os europeus indignados com a possibilidade de serem cúmplices de crime ambiental – e os maus agricultores, revoltados por serem pegos em flagrante. O artigo “As maçãs podres do agronegócio brasileiro” foi escrito pelo cientista brasileiro Raoni Rajão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com 12 pesquisadores de Brasil, Alemanha e Estados Unidos. A pesquisa usa dados da safra 2016 e 2017 e comparou informações de 815 mil propriedades rurais. O texto não só dimensiona o problema, mas também sugere soluções: como o número de infratores é relativamente pequeno, então bastaria focar a fiscalização neles. “O resultado do artigo mostra não só o problema, mas identifica quais são aqueles que estão trabalhando certo e os que estão trabalhando errado. O estudo mostra que o governo pode atuar de forma precisa para evitar que 100% do nosso agronegócio seja punido por conta de um número limitado de produtores que atuam de forma ilegal”, explicou Rajão. Caso use dessa informação para combater o desmatamento, o governo ainda pode transformar prejuízo inevitável em lucro e sair por cima.

A crise do pós-pandemia não vai ser boa para ninguém. Tanto que na quarta-feira (22/7), executivos dos três principais bancos brasileiros sugeriram a Mourão medidas para conter o desmatamento da Amazônia. Entre os dez pontos da proposta estão estimular monoculturas sustentáveis, como cacau, açaí e castanha, por meio de linhas de financiamento especiais, e atrair investimentos que incentivem a bioeconomia. “É imprescindível que este modelo seja sustentável e impulsionado por investimentos públicos e privado que construa uma economia de baixas emissões, inclusive e direcionado para o futuro”, diz um artigo assinado pelos presidentes das empresas.

E nós, cidadãos, o que podemos fazer? Também cabe à população limpar a barra do Brasil e mostrar que o país não se limita a seus governantes, que são transitórios. “Você sabe de onde vem sua comida?”, pergunta o Greenpeace em sua nova campanha. Nela, uma série de vídeos, apresentados pela atriz Alice Braga e produzidos por Bianca Comparato, mostram como funciona o sistema da agricultura industrial; a relação entre o que a gente come, a crise climática e a destruição de florestas, além de, assim como o artigo da “Science”, sugerir formas de aperfeiçoar as cadeias produtivas de alimento. A informação é a arma mais poderosa do cidadão.

#Amazônia #Desmatamento #Queimadas #Ciência #Science #Economia #MudançasClimáticas #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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Indígenas e Amazônia são uma coisa só

Indígenas e Amazônia são uma coisa só

Sob fogo cerrado. O próprio vice-presidente Hamilton Mourão, que ora preside o recém-recriado Conselho Nacional da Amazônia, reconhece que o combate ao desmatamento começou tarde e que o Ibama, debilitado, não dá conta de fiscalizar e proteger a região. A devastação recorde é prenúncio de uma temporada de queimadas catastrófica. O ex-general, porém, parece acreditar que o Exército dá conta do problema; só que é bem mais provável que a instituição saia com sua imagem queimada. Mourão sequer pode dar a justificativa de que não conhece a região, pois foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira, entre 2006 e 2008. Nara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), nasceu e vive na cidade mais indígena do país e a terceira mais atingida pelo coronavírus do Amazonas. Ninguém melhor do que quem está sentindo na pele as consequências dessa negligência para descrever a tragédia que se anuncia. Indígenas e Amazônia são uma coisa só. Por isso, no Dia de Proteção às Florestas (17/7), abrimos espaço para ela neste artigo, que também foi publicado na “Folha de São Paulo”. Fizemos ainda uma lista de reportagens recentes que vão ajudar o leitor a entender que o problema não é só dos povos da floresta. Ao fazer a opção de proteger a economia do país em vez de vidas humanas durante a pandemia, o governo pode afundar o país ainda mais profundamente na crise.

Somos os primeiros brasileiros, povos originários dessa terra!

Nara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)

Quando general da ativa, o vice-presidente Hamilton Mourão foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva, em São Gabriel da Cachoeira (de 2006 a 2008), onde eu nasci e vivo até hoje. Ele certamente deve estar ciente de que o coronavírus ameaça levar a cidade para UTI: até a manhã do dia 14, o boletim epidemiológico da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas registrava 2.982 casos confirmados e 47 mortes; o município é o terceiro mais atingido do estado. Mais de 20 povos vivem em São Gabriel da Cachoeira, incluindo os Baré. A cidade serve como um microcosmo da situação atual da população indígena, a mais atingida, percentualmente, do Brasil. Já choramos mais de 500 mortos e passamos da marca dos 15 mil infectados. Isso não acontece por acaso, é resultado da política anti-indígena do governo.

Recentemente Mourão fez declarações indelicadas a nosso respeito. Apesar disso, sabemos que conhece a região e suas peculiaridades, é filho de amazonenses e se identificou na campanha como descendente de indígenas. Também ficamos favoravelmente surpreendidos quando ele admitiu publicamente que o combate ao desmatamento começou tarde e que o Ibama está desmantelado. Por isso, quando assumiu a presidência do recriado Conselho Nacional da Amazônia vimos uma possibilidade de diálogo, algo que nos vem sendo sistematicamente negado pela Presidência e pelo Ministério do Meio Ambiente – cujo titular, por sinal, nunca havia pisado na Amazônia antes de assumir.

O primeiro sinal de que o governo não estava disposto a ouvir opiniões diferentes foi justamente a extinção ou a reconfiguração de conselhos e comissões ambientais que contavam com a participação de representantes da sociedade civil – entre estes, povos indígenas, cientistas, ambientalistas. Quando da recriação do conselho, o órgão foi tomado por militares. Nenhum indígena senta à sua mesa para discutir estratégias. O Exército – que, não há como negar, está umbilicalmente ligado ao governo – conhece a Amazônia e poderia usar este conhecimento, adquirido junto a nós, para ajudar a preservá-la, mais o que vemos é o inverso. Mas desde o início da pandemia viemos alertando o governo, em vão, sobre o aumento do desmatamento e da invasão de nossas terras por garimpeiros, madeireiros, grileiros entre outros e a necessidade de nos proteger e preservar nossas culturas. Só que o discurso do Executivo tem estimulado ainda mais invasões. Isso tem se intensificados nos últimos dois anos. Exigimos a retirada imediata de todos os invasores no entorno e dentro dos territórios indígenas.

Não foi com surpresa que recebemos a notícia de que as reuniões que Mourão teve com investidores estrangeiros não chegaram ao resultado desejado pelo governo. A pandemia tem levado a discussão sobre a urgência da adoção de um modelo econômico mais sustentável e o momento requer transparência, seriedade e não omissão e subnotificações. Não há mais como varrer a destruição da Amazônia para baixo do tapete, há mais de 5 mil satélites em órbita da Terra; o celular também é acessível a todos, e desrespeitos aos direitos humanos e crimes ambientais podem ser transmitidos ao vivo por qualquer um. Atos irresponsáveis como a excursão promovida pelos ministérios da Defesa e da Saúde a terras indígenas, atropelando os protocolos da pandemia, chegam aos jornais e às TVs do mundo inteiro. O Brasil pode sofrer sérias sanções econômicas, que agravarão mais a crise.

A questão climática pôs a Amazônia no centro do mundo. E a maior floresta tropical do mundo não é obra somente da natureza, mas também um legado dos povos indígena, como indicam descobertas arqueológicas recentes. Se há alguém que sabe apontar os caminhos do desenvolvimento sustentável da floresta amazônica é quem a cultivou e continua cuidando. A comunidade internacional sabe disso e, por isso, impõe a nossa segurança como cláusula contratual. Para eles não é só uma questão humanitária, mas de sobrevivência. Então oferecemos ao governo as respostas para salvar a Amazônia. Primeiro é preciso entender que nós, povos indígenas, somos parte indissociável da Amazônia, do nosso território. Nosso território é nosso corpo e nosso espírito. Se nós somos a Amazônia, para preservá-la é preciso preservar nossas vidas. Se tem alguém que quer que o Brasil prospere somos nós: com respeito às especificidades, aos biomas e aos nossos diretos. Somos os primeiros brasileiros, povos originários dessa terra!

#Amazônia #Coiab #Opinião #Covid19 #Coronavírus #PovosIndígenas #ForçasArmadas #Bolsonaro

Para entender a situação atual da Amazônia e dos povos da floresta:

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Somos os primeiros brasileiros, povos originários desta terra

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A Constituição da Terra plana

A Constituição da Terra plana

Do que vale a Constituição na Terra plana? Em coluna no jornal “O Globo”, a juíza Andréa Pachá definiu bem o momento singular que vive nossa República. “O reduzido grupo que confronta a Ciência, estatísticas e a realidade representada por 27 mil mortos é o mesmo que rejeita a democracia, em exibições de negacionismo constitucional”, escreveu ela no texto publicado em 30 de maio. De lá para cá, pouco mudou e o número de mortos pelo novo coronavírus dobrou. “Somos obrigados a obrigar o governo a não nos deixar morrer”, resumiu o advogado Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em artigo publicado na “Folha de São Paulo” (30/6). A entidade entrou nesta segunda-feira (29/6) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para assegurar o direito dos povos originários a dois direitos básicos, previstos pela Constituição: segurança e saúde. Se está ruim para nós, imaginem para os que vivem longe dos olhos.

De acordo com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a taxa de mortalidade pela Covid-19 por 100 mil habitantes entre indígenas da região é 150% maior que a média brasileira. Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Apib, até o dia 27 de junho, 378 indígenas haviam morrido, 9.166 foram infectados e 112 povos, atingidos. O índice de mortalidade entre eles é de 9,6%, enquanto na população em geral fica em 5,6%. Pelo menos 30% dos territórios analisados na pesquisa têm potencial de contágio alto devido ao desmatamento crescente e à ação de grileiros e outros invasores. Mais de 20 mil garimpeiros já invadiram a Terra Yanomami, levando o vírus cada vez mais longe.

“O Executivo tem se especializado nas práticas de acusar o adversário de fazer o que ele próprio faz, e culpar o outro pelo resultado de suas omissões. Um dos sintomas do novo coronavírus foi deixar este modus operandi ainda mais evidente. Enquanto responsabiliza governadores e acusa o Judiciário de interferir em suas atribuições, cruza os braços durante a pandemia. Atribui ao STF uma tentativa de judicialização da política, quando o que acontece é que a sociedade civil está sendo obrigada cada vez mais a recorrer à Justiça para que ele cumpra os seus deveres”, resumiu Eloy. A ADPF é um recurso constitucional pouco conhecido cujo objeto é “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”. Não é canja-de-galinha, mas é tiro e queda.

“As manifestações de ódio e arbítrio, a estratégia de empurrar a democracia para as cordas, se apropriando de palavras e conceitos que significam o oposto do que eles representam, só podem ser enfrentadas com racionalidade e fortalecimento institucional, ferramentas essenciais para a saúde mental e para a cidadania”, escreveu ainda Andréa Pachá. Se o governo não se mexe, a sociedade civil tem agido, sendo botando diretamente a mão na massa, como vem fazendo ONGs e associações de moradores em comunidades carentes, ou recorrendo ao Judiciário e ao Parlamento.

O pouco-caso com a pandemia e a negligência em relação aos povos tradicionais ganham manchetes nas principais publicações estrangeiras e podem levar o atual presidente onde nenhum outro jamais esteve: o Tribunal Penal Internacional (TPI), que funciona em Haia, na Holanda. Jair Bolsonaro foi denunciado por sua gestão criminosa da pandemia. Mas Sylvia Steiner, única juíza brasileira a já ter atuado na mais importante corte internacional, acredita que ele corra o risco de ir para o banco dos réus por outra razão: “Nós temos ainda uma outra denúncia contra o presidente Bolsonaro, também no gabinete da procuradoria do TPI, mas essa se refere a políticas de extermínio da comunidade indígena por meio da destruição do meio ambiente e dos territórios tradicionalmente ocupados pelos indígenas. Essa pode, sim, configurar, em tese, uma política genocida. Alguns elementos podem levar à conclusão de que essa é uma política deliberada e proposital para limpar uma área e remover os indígenas para que a área seja utilizada para outros fins”.

O mesmo expediente foi usado pelo ex-presidente do Sudão, Omar al-Bashir: milhões de pessoas foram expulsas de Darfur, um território rico em petróleo. O tribunal aceitou a denúncia contra o tirano, afastado do poder no ano passado. Bolsonaro devia estar atento às jurisprudências.

#PovosIndígenas #STF #Pandemia #Coronavírus #Covid19 #VidasIndígenasImportam #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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Um fantasma que se esvai

Um fantasma que se esvai

Em editorial publicado no último dia 8, a revista de ciência médica britânica “The Lancet”, fundada em 1823 e uma das mais conceituadas da área, diagnosticou que o presidente é “talvez a maior ameaça à resposta à Covid-19 no Brasil”. Dadas as credenciais da publicação, podemos dizer que se trata de uma dedução estritamente científica. E o raciocínio usado para se chegar a ela pode ser replicado na área ambiental. Como vetor que age direta e indiretamente o presidente também é, possivelmente, a maior ameaça à resposta à destruição da natureza no Brasil. Veio da Presidência a Medida Provisória 910, a MP da Grilagem, que legaliza até 650 mil km² de terras públicas invadidas na Amazônia o que, inevitavelmente, vai estimular novas ocupações. Não à toa a sociedade, assim como no caso do coronavírus, tem tomado medidas de prevenção por prescrição própria.

A pandemia deve ter um efeito colateral benéfico: derrubar as emissões de gases de CO₂ em praticamente todos os países este ano. Uma das poucas exceções deve ser o Brasil, justamente por causa do crescente desmatamento. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os alertas na Amazônia cresceram 63,75% em abril de 2020, se comparado ao mesmo mês do ano passado. A motosserra tem cantado em plena quarentena: cerca de 800 km² de floresta já foram abaixo no primeiro trimestre. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, havia prometido engavetar a MP da Grilagem, mas como ela caduca no dia 19, foi pressionado a levá-la à votação na quarta-feira (13/5). A pressão da sociedade civil nas redes sociais e a atuação da Frente Parlamentar Ambientalista foram decisivas para que a votação fosse retirada de pauta. Corremos ainda o risco de a MP voltar como Projeto de Lei, por isso a pressão precisa continuar. São terras públicas, ou seja, pertencem a todos nós.

Mas o desmatamento é uma infecção que se espalha, atingindo outros biomas, como Cerrado e Pantanal. A Mata Atlântica, que vinha se recuperando, pode entrar novamente no grupo de risco, por uma iniciativa do Executivo. No mês passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, emitiu um despacho reconhecendo as propriedades rurais que ficam em áreas protegidas da região. A decisão fere frontalmente a Lei da Mata Atlântica e Ministério Público Federal (MPF) entrou na Justiça com uma ação civil pública pedindo a sua anulação. A iniciativa partiu da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) e da Fundação SOS Mata Atlântica – que lançou um abaixo-assinado online contra a medida. Logo, a profilaxia tem se mostrado eficaz. O isolamento forçado, quem diria, reforçou nossa mobilização.

Como ensinaram seus ancestrais – que foram obrigados a adotar o isolamento social voluntário como forma de prevenção às epidemias trazidas clandestinamente pelas caravelas – os indígenas estão recolhidos em suas aldeias. Com isso o desmatamento em seus territórios aumentou 59% nos quatro primeiros meses de 2020. Os invasores estão se sentindo tão à vontade que têm atacado guardas-florestais e agentes do Ibama. A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão criado pelo Estado para atuar em favor dos povos originários, tem jogado como adversário. Seu último gol contra foi uma instrução normativa, já contestada pelo MPF, que regulariza a grilagem de terras indígenas. Mas mesmo recolhidos, eles estão antenados: o último Acampamento Terra Livre (ATL) foi realizado via internet e foi um sucesso.

Os indígenas agora aguardam por um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que pode exorcizar de vez um velho fantasma. No último dia 7 Edson Fachin, ministro do STF, suspendeu, até votação em plenário, um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que orientava o uso da tese do marco temporal em casos de demarcação de terras indígenas. Este dispositivo estabelece que só teriam direito a reclamar suas terras os indígenas que a estivessem ocupando até a promulgação da Constituição de 1988 – mesmo aqueles que tivesse sido expulsos com o uso de violência. Ela foi declarada inconstitucional por juristas renomados como Dalmo Dallari e José Afonso da Silva; mas este governo insiste em usá-la para impedir novas demarcações e até fazer revisões de processos já concluídos.

Porém, no dia 20 de abril o STF confirmou outra tese, a de que dano ambiental é imprescritível. Esta decisão pode apontar uma tendência. O caso que levou o Supremo a julgá-la foi uma condenação feita pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a madeireiros que agiram ilegalmente na Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, no Acre, entre 1981 e 1987 – antes da data estipulada pelo marco temporal, portanto. Os ministros do STF acataram o parecer técnico da ministra Eliana Calmon, relatora do julgamento no STJ: “Se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer, considera-se imprescritível o direito à reparação”. Uma vitória dos povos indígenas no STF pode significar o estabelecimento de um novo marco civilizatório no Brasil.

Assine o abaixo-assinado da Fundação SOS Mata Atlântica

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