Jardineiros do Éden

Jardineiros do Éden

O caraíu zu – como os Guajajara chamam o homem branco – comparou esta terra ao Jardim do Éden de suas crenças. Em nenhum momento, porém, se questionou sobre quem seriam os jardineiros daquele paraíso. Quando desembarcaram aqui, as grandes cidades europeias se assemelhavam a lixões, mas foram necessários mais de 500 anos para que se dessem conta que a terra exuberante que chamaram de Brasil não existiria sem os brasileiros originais: os povos indígenas. Depois de cinco séculos de luta e resistência, além de ganharem ministério próprio, eles agora estão à frente da Funai. Vão cuidar não só de seus interesses – como acontece na democracia, não por acaso tema do 19º Acampamento Terra Livre (ATL) –, mas também do nosso futuro.

Como santo de casa não faz milagre, a agora ministra Sonia Guajajara e outras guerreiras, tão dignas de admiração quanto ela, bateram muita perna mundo afora para convencer os demais terráqueos de que o seu modo de vida é vital para a sobrevivência de nossa espécie. Se o presidente voltou com R$ 500 milhões para o Fundo Amazônia da coroação de Charles III, o novo monarca do Reino Unido, não foi por causa de sua bela gravata, mas graças ao trabalho prévio dessas mulheres fantásticas. Democracia, para os povos originários, é ter o seu direito à terra garantido. É o principal propósito do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Funai – presidida pela não menos admirável Joênia Wapichana. Não vai ser fácil. É uma maratona a ser corrida em tempo de 100 metros rasos.

Não se recupera cinco séculos de atraso em quatro anos; por isso, os trabalhos começaram antes mesmo de o novo governo assumir. No último dia 12 de dezembro, o Grupo de Trabalho Povos Indígenas, entregou ao presidente eleito um documento que recomendava a demarcação urgente de 13 terras, sendo cinco na maior floresta tropical do mundo, importantíssima para a regulação do clima no planeta. O relatório registra mais 66 territórios, 31 deles na Amazônia Legal, em diferentes etapas de processo. No último dia do ATL, Lula decretou a homologação de seis terras indígenas (TIs), as primeiras desde 2018.

 “Eu quero não deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de quatro anos. Esse é um compromisso que eu tenho e que eu fiz com vocês antes da campanha”, disse o presidente na ocasião. É uma promessa difícil de ser cumprida, lamentavelmente. Uma TI só é demarcada definitivamente depois de passar por etapas de estudo, delimitação, declaração, homologação e regularização. O processo é muito sério, demorado, burocrático, que se assemelha a outro tipo de corrida: os 3 mil metros com obstáculos. E eles são muitos.

O MPI começou sua gestão desarmando uma bomba-relógio: a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami. Bolsonaro escancarou a porteira para a entrada do garimpo ilegal no território daquele povo, um dos mais vulneráveis do país. Os garimpeiros que invadiram a TIY não são mais aqueles poucos aventureiros miseráveis que arriscavam suas vidas mata adentro com facão e bateia, como quis nos fazer acreditar o ex-presidente: a exploração de ouro agora é feita por organizações criminosas. São bandidos de altíssima periculosidade, impiedosos, armados até os dentes, e movidos apenas a dinheiro – não há ideologia envolvida.

No Congresso, desencavaram o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que transfere do Executivo para o Legislativo a competência de demarcar TIs. Seu autor, Homero Pereira, ex-deputado e ex-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, morreu em 2013. A bancada ruralista – que, curiosamente, tem integrantes que nunca plantaram nem feijão em algodão ou sequer são donos de terras – perdeu representantes no Congresso (eram 552 na gestão passada e hoje são 347), mas ainda tem muita influência. É uma ameaça que não deve ser desprezada, principalmente porque temos o Parlamento mais conservador – que só não se preocupa em conservar o meio ambiente – das últimas legislaturas.

Porém, a maior ameaça paira no Supremo Tribunal Federal (STF). A presidente Rosa Weber marcou para 7 de junho a retomada do julgamento da famigerada tese do “marco temporal”, paralisada desde setembro de 2021. Os ministros estão divididos, mas o próprio Bolsonaro disse que dois deles são seus bonecos de ventríloquos – e um deles, Nunes Marques, já votou favoravelmente. O julgamento está em 1 a 1, com o voto contrário de Edson Fachin. O “marco temporal” defende que somente os indígenas que estivessem de posse de suas terras no dia da promulgação da atual Constituição, 5 de outubro de 1988, podem reivindicá-las, mesmo que tenham sido expulsos sob a mira de armas.

Juristas de renome, como Dalmo Dallari (1931-2022), há anos apontavam sua inconstitucionalidade: “Está na Constituição que o índio tem direito a terra de ocupação tradicional. A Constituição não exige que se estivesse fisicamente naquele lugar, naquele dia”, afirmou, num seminário, em 2015. Segundo ele, seria um absurdo exigir que indígenas resistissem aos invasores por meios legais ou usando a força: “Até pouco tempo, o índio não tinha o direito de entrar com ação judicial. É preciso também ressaltar que a possibilidade de resistência dos índios na terra é mínima, é muito pequena. Há muitos casos em que os índios tentaram resistir e foram assassinados, porque muitos dos invasores de terras indígenas usam capangas armados para defender invasões”.

Na mesma ocasião, o professor José Afonso da Silva, um dos maiores constitucionalistas de nossa história, argumentou que o “marco temporal” não leva em consideração conquistas anteriores a 1988: documentos do período colonial já reconheciam os direitos dos indígenas sobre as terras que ocupavam. A Constituição de 1934 também os legitimava: “Deslocar o marco para 1988 e abandonar o início efetivo do reconhecimento constitucional, que é de 1934, é realmente deturpar os conceitos”.

Os ministros do STF têm em suas mãos uma decisão que pode não só influenciar o destino dos indígenas, como também de toda a Humanidade. Que tenham isso em mente na hora de votar. São pessoas cultas e bem-informadas. Os povos originários estão fazendo a sua parte, mas não podem ganhar essa corrida, que é de revezamento, sozinhos. O Brasil não é apenas uma porção de terra, somos todos nós, brasileiros – e vai chegar a hora de cada um carregar o bastão. Somente unidos podemos transformá-lo no Éden de todos os povos.

 

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Protagonismo político do movimento indígena

Protagonismo político do movimento indígena

Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, presidente da Funai (1995-1996) e deputado federal pelo MDB (1983-1986)

Juliana de Paula Batista, mestre em Direito pela UFSC e advogada do ISA

O 3º mandato do presidente Lula começa com uma grande novidade: o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Sônia Bone Guajajara foi escolhida para comandar a pasta e Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita deputada federal, para assumir a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estará vinculada ao MPI. Já Weibe Tapeba assumiu a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. Outros indígenas ocuparão mais cargos na administração federal.

Lula governará com 37 ministérios, com espaço para 15 partidos e vários movimentos sociais. As contradições entre esses vários campos vão se expressar dentro do próprio governo. Com a presença de uma ministra indígena, pela primeira vez, os conflitos entre direitos indígenas e interesses contrários serão tratados de forma direta, sem intermediários, embora com a eventual mediação do Presidente e do núcleo do governo.

Mas também haverá fortes embates com as oposições, não apenas no Congresso, mas também com ruralistas extremistas e bolsonaristas, empresários do garimpo, grileiros de terra e outros atores anti-indígenas. Parte deles envolveu-se no movimento antidemocrático e na depredação das sedes dos poderes em Brasília. As ligações entre quem financiou os atos e deles participou não deixam dúvidas. Os mesmos grupos estão em regiões críticas da Amazônia, onde se concentram os crimes socioambientais e proliferam os clubes de tiro, áreas sob o domínio de grupos golpistas e do crime organizado.

Levará tempo para recuperar órgãos, políticas e orçamentos públicos deteriorados relacionados à agenda socioambiental. Mesmo com vontade política, outros fatores serão determinantes para que ocorram avanços nesse tema. Por exemplo, o presidente Lula já definiu que será retomada a demarcação das Terras Indígenas e há uma lista de 14 áreas cuja oficialização poderá ser concluída nos próximos meses por decretos de homologação. Parte das pendências demarcatórias, porém, está sub judice e sujeita ao ritmo lento da Justiça. 

No Legislativo, tramitam projetos que podem trazer retrocessos aos direitos já conquistados, como no caso da demarcação de Terras Indígenas e a possibilidade de abrir essas áreas para grandes empreendimentos. Parlamentares ruralistas, representantes do “ogronegócio”, têm investido pesado em atacar esses direitos, inclusive relacionando-se com pessoas envolvidas em crimes ambientais e invasores de terras indígenas. No momento, são os maiores responsáveis por radicalizações e ataques à segurança jurídica, como no caso da Terra Indígena Apyterewa (PA), já homologada, mas constantemente invadida. 

Longe de voltar seu olhar para os graves problemas do setor, como o combate ao desmatamento, as cadeias produtivas que ainda utilizam trabalho escravo, o incentivo a novas tecnologias para o aumento da produtividade, parte da bancada ruralista ainda investe seus vultosos recursos em atacar indígenas e queimar ainda mais o filme do país no exterior. 

Ninguém quer investir numa Amazônia cheia de ilegalidades e crimes ou ver as Terras Indígenas, as áreas mais ambientalmente conservadas do país, arrasadas pelo garimpo, pela mineração ou convertidas em pasto. Esses territórios não podem ser convertidos em grandes canteiros de obras, sob pena de deixarem de ser o que são. Ainda é cedo para saber se o Legislativo já entendeu o ativo que o país tem na mão. Mas parece que não. 

Em janeiro, a imprensa divulgou as mortes de 570 crianças Yanomami por desnutrição e doenças evitáveis, resultado de uma crise sanitária provocada pela invasão garimpeira e a conivência do antigo governo. Em resposta, Lula foi a Roraima, junto com vários ministros, avaliar a situação e anunciar providências emergenciais para assistir as comunidades afetadas. A questão impactou a opinião pública, dominando o noticiário e as redes sociais. 

No Senado, uma Comissão Externa constituída, em sua maioria, por parlamentares historicamente apoiadores da ilegalidade foi formada com o aval do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ele envia um sinal ruim para a sociedade, que neste momento encontra-se chocada com as barbaridades cometidas contra os Yanomami. Perdeu uma boa oportunidade de mostrar protagonismo na construção de uma agenda que coloque limites à política de terra arrasada e sem lei que o último governo tentou impor à maior floresta tropical do planeta.

O discurso anti-indígena do governo passado deve ter aumentado o preconceito contra os povos originários entre os segmentos mais radicais de direita, além de fortalecer os interessados na apropriação das Terras Indígenas e dos seus recursos naturais. Por outro lado, a rejeição desse processo pela maioria da sociedade ampliou a adesão à defesa dos direitos dessas populações. A fidelização desse engajamento e a ampliação de novos apoios dependerão do desempenho dos que estão no governo e dos movimentos sociais como um todo, e será essencial para garantir a sustentabilidade futura dessas políticas.

Uma coisa é certa: a defesa dos direitos indígenas e das florestas não interessa apenas aos próprios indígenas e setores envolvidos com a defesa do meio ambiente. A expressiva votação da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), em Minas Gerais, mais votada que políticos tradicionais como Aécio Neves (PSDB), e de Sônia Guajajara (PSOL), em São Paulo, mostram que a sociedade está mobilizada e seguirá atenta.

Da semente ao futuro

Da semente ao futuro

Júnior Nicácio*

Bons frutos são mais resistentes às pragas – os da terra chegam a ser imunes. Com dois anos de atraso, devido à pandemia de Covid-19, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) finalmente pôde comemorar seu 50º aniversário, reunindo mais de 2 mil pessoas em um território sagrado e emblemático: a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A semente da qual brotou o CIR foi primeira Assembleia dos Tuxauas, realizada de 4 a 7 de janeiro de 1971 – Tuxaua é o termo que denomina os líderes das comunidades Wapichana. Junto com a União Nacional Indígena (UNI), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e outras associações, o CIR semeou o solo do movimento indígena brasileiro.

Esses pioneiros foram fundamentais para que garantíssemos não só nossos direitos territoriais, como também o de manter nosso modo de vida na Constituição de 1988. O artigo 231 diz, textualmente, que terras indígenas são “as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Uma vitória no campo do adversário.

Até a criação do Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, e a nomeação de minha mentora Joênia Wapichana à presidência da Funai, foi preciso muita luta para garantir que esses direitos constitucionais fossem respeitados. A própria Joênia, quando atuava como advogada no CIR, foi responsável pela sustentação oral da defesa da demarcação da Raposa Serra do Sol. O caso só foi concluído em 2009 e se tornou um marco de nosso movimento – e, porque não dizer, da própria História do Brasil. Quando Sonia tomou posse como ministra, ganhamos mais um motivo para comemorar esse cinquentenário. 

Engana-se, porém, quem acredita que recebemos de mão beijada das gerações anteriores a questão indígena solucionada. Ainda há muito trabalho para fazer – proteger nossos parentes Yanomami, cuja terra foi invadida por dezenas de milhares de garimpeiros talvez seja nossa prioridade máxima.  Ao celebrar esse cinquentenário, não apenas festejamos, mas refletimos. Precisamos continuar atentos. Infelizmente, ainda há no Brasil quem nos veja como obstáculo ao que chamam de desenvolvimento; como vivemos numa democracia, nada impede que a Presidência da República seja tomada por outro mau espírito. 

O Karaiwa – como chamamos o homem branco – tem um ditado que diz que o hábito não faz o monge. Nasci na Terra Indígena Manoá/Pium, na região da Serra da Lua, que fica na fronteira de Roraima com a Guiana. Cursei o ensino superior em Boa Vista, onde me formei advogado, em 2020. Hoje, faço parte do departamento jurídico do CIR. Meu ofício me obriga a usar terno e gravata. Mas, da mesma forma que o Karaiwa que compra cocar no camelô e se pinta com guache para brincar o Carnaval não vira indígena, não é por isso que eu vou deixar de ser Wapichana. 

Este é justamente um dos maiores desafio de nossa geração: experimentar, conhecer outras culturas sem perder nossa identidade. Impedir que nos embranqueçam culturalmente. Enfatizo essa necessidade porque não reconhecer quem mora na cidade grande como indígena faz parte da estratégia daqueles que ambicionam nossas terras. Só deixamos nossa casa obrigados, para protegê-la. 

Mas lugar de indígena é onde ele quiser. Sou Wapichana em minha comunidade natal ou na cidade grande. Tenho essa consciência porque aliei a educação formal oficial aos ensinamentos que herdei de meus ancestrais. No Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, eu me diplomei técnico agropecuário. Lá, aprendi a cuidar da terra a partir de nossos métodos, que não destroem o meio ambiente; o desenvolvimento sustentável a partir de nosso olhar.  Durante minha formação, conheci grandes lideranças, como Jaci Macuxi, Clovis Wapichana e o pajé Orlando Pereira, de Uiramutã, herói que ousou enfrentar o Exército.

Na universidade, aprendi a lei do homem branco para defender o meu povo. Da mesma forma, usamos sua tecnologia, como instrumento de difusão de nossa cultura para os mais jovens, para que entendam a importância de sua preservação. A ditadura quis nos integrar à força, destruindo nossa cultura; quando não conseguiam, tentavam nos dizimar. Hoje, usamos as armas do inimigo contra ele. 

O CIR atua nas 35 terras indígenas de Roraima. É uma área de mais de 100 mil km², e uma população de 58 mil indígenas em 465 comunidades. No estado vivem Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi; uma responsabilidade sem tamanho. Tem Karaiwa que acredita – ou finge acreditar – que não damos duro, porque trabalhamos cantando. Por que não o faríamos? Para nós, trabalho não é sofrimento. Sabemos que a briga não acabou, pois o monstro da ganância é tão resiliente quanto nós. Mas podemos e devemos, sim, celebrar. A alegria nos fortalece na luta por um futuro feliz.

* Júnior Nicácio é advogado e indígena da etnia Wapichana, nascido na Terra Indígena Manoá/Pium, em Roraima. Atualmente é assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).

Incompetência Estratégica

Incompetência Estratégica

“É uma região inóspita, afastada de tudo”, declarou o vice-presidente Hamilton Mourão, nove dias depois do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, na Terra Indígena Vale do Javari. Mourão já se disse descendente de indígenas; ele é gaúcho de Porto Alegre, mas seu pai é amazonense. Hoje general da reserva, foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), de 2005 a 2008, e preside há dois anos o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL). Deveria saber que na região onde a dupla sumiu vivem mais de 190 mil pessoas. Como assim “inóspita”?

“Num local onde o povo indígena consegue achar até um miquinho ou uma arara-canindé, o Brasil não sabe encontrar dois homens adultos que foram desaparecidos num trecho de floresta que é tão conhecido e em que pescadores e todo mundo andam por lá, e que agora está sendo controlado por traficantes”, desabafou o escritor e liderança Ailton Krenak. A alegada ascendência de Mourão e sua experiência de comandante na Amazônia e no atual cargo que ocupa não o têm ajudado nas buscas por Bruno e Dom. Aliás, o presidente da CNAL age como se não tivesse nada a ver com o caso. Na verdade, talvez seja melhor ele se manter afastado, mesmo.

O Conselho Nacional da Amazônia Legal foi reativado em fevereiro de 2020, vinculado à vice-Presidência da República. Originalmente, o órgão foi criado em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, embora nunca tivesse mostrado ao que veio. Tudo leva a crer que devia ter continuado assim: as três missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) promovidas pelas Forças Armadas no combate a crimes ambientais na Amazônia consumiram R$ 550 milhões e não reduziram o desmatamento na maior floresta tropical do mundo. Muito ao contrário, só em maio último, foram abaixo 1.180km² de verde, a maior destruição para este mês desde 2016. Essa dinheirama equivale a quase seis vezes o orçamento do Ibama em 2020 para fiscalização e licenciamento ambientais, e gestão da biodiversidade.

Os militares também se aboletaram na Funai: eles ocupam as chefias de 19 das 39 coordenações regionais da fundação, contra duas de servidores públicos, como o Bruno Pereira – as demais foram tomadas por policiais militares e federais, ou por funcionários de cargos comissionados. Desde 2017 já se sabia que o crime organizado estava tomando conta da região onde o jornalista e o indigenista desapareceram; mas de lá para cá, a situação só piorou. Entre 2018 e 2019, a Base de Proteção Ituí-Itacoaí foi atacada a tiros oitos vezes; em setembro de 2019, assassinaram o funcionário da Funai Maxciel Pereira dos Santos, que denunciava e combatia invasões naquela área. O crime permanece impune. Três meses depois, a Justiça condenou o governo federal por omissão e determinou que as bases locais fossem reforçadas; a ordem, porém, foi ignorada.

Há seis meses, do outro lado da fronteira, um posto da polícia peruana de Puerto Amelia foi atacado por 20 criminosos que roubaram oito fuzis, uma metralhadora e três mil cartuchos de bala. Os tiros foram ouvidos em Atalaia do Norte, cidade de 20.868 habitantes, que fica na região onde Bruno e Dom desapareceram. “As duas pessoas entram numa área que é perigosa sem pedir uma escolta, sem avisar efetivamente as autoridades competentes e passam a correr risco, né?”, também disse Mourão sobre o episódio. “Se o lugar onde a gente trabalha é perigoso e precisa de escolta armada, tem uma coisa muito errada aí. E a culpa não é nossa”, rebateu a antropóloga Beatriz Matos, mulher de Bruno. O general da reserva procurou uma justificativa e achou um veredicto: culpado.

A autoproclamada eficiência militar virou lenda do boitatá? Como esquecer a desastrosa passagem de outro general, Eduardo Pazuello, pelo Ministério da Saúde, no auge da pandemia de Covid-19? Os amazonenses, em especial, talvez jamais se curem desse trauma. Antes de assumir a pasta, em 2020, ele foi comandante da 12ª Região Militar, em Manaus. Considerado especialista em logística, esqueceu-se de abastecer os hospitais da capital amazonense com cilindros de oxigênio. Seu, digamos, descuido levou os hospitais da cidade a entraram em colapso e pelo menos 31 pessoas à morte, em dois dias. Quando foi efetivado ministro da Saúde, em 16 de maio de 2020, o Brasil contabilizava 233 mil casos e 15.633 mortes por Covid-19; ele deixou o cargo em 15 de março do ano seguinte com mais de 11,5 milhões de infectados, e cerca de 280 mil mortos.

Depois de sair do Ministério da Saúde, Pazuello foi designado para chefiar a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Executivo. O que nos leva a pensar: será que não é incompetência, mas estratégia? Para Ailton Krenak, não há dúvida: “A Amazônia está sendo devorada, e o Brasil entrou no rodo com uma disposição voluntária de ser usado e abusado. Quando os sujeitos do governo falam em preocupação acerca da soberania, eles ocultam a má intenção de entregar todo esse território e virar as costas para a morte de Yanomami, a violência contra o corpo de crianças indígenas, o ataque contra lideranças e defensores dos que estão sendo assassinados semanalmente”.

Não é a natureza hostil que oferece perigo no Vale do Javari, mas os invasores e sua ganância, que se espalham como ervas daninhas – com a indisfarçável negligência ou até cumplicidade do poder público. “Vemos agora o último assalto a uma região do mundo com muita riqueza. É como se estivessem descobrindo de novo a América”, reflete Krenak. O que fazer? O autor do best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo” aconselha: “A coisa está virulenta. Não se sabe mais de onde pode sair um ataque. Mas a gente vai superar esse momento. Não dá para nos desencorajarmos. Precisamos não cultivar a mentira e não nos associarmos a versões fajutas da realidade”. Que a verdade seja a nossa arma.

 

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Jogando contra

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A expressão “desvio de finalidade” está na moda, mas não explica adequadamente como vêm agindo algumas instituições no atual governo. O caso do Ministério do Meio Ambiente, então, é muito instrutivo. O último lance infeliz da pasta foi bater mais um recorde de desmatamento. Imagine que o zagueiro de seu time seja torcedor fanático do adversário e marque, de propósito, um gol contra na final?

O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou na última sexta-feira que foram abaixo 1.012 km² de floresta em abril – 75% a mais que no mesmo período em 2021. O número é particularmente impressionante porque chove muito nessa época na Amazônia, o que costuma dar um tempo na devastação. É a primeira vez na história que a área desmatada ultrapassa os 1.000 km² num mês de abril.

De acordo com um levantamento feito pelo MapBiomas, 97% dos alertas de desmatamento emitidos desde 2019 foram ignorados pelos órgãos de fiscalização ligados à pasta. Não foi por falta de disposição dos aguerridos jogadores do Ibama que, não custa lembrar, tem entrado em campo desfalcado; o seu técnico é que gosta de jogar recuado. E quem achar ruim vai pro banco de reservas.

Na última segunda-feira, a Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), que reúne funcionários do instituto, do ICMBio e do Serviço Florestal Brasileiro, divulgou uma nota na qual acusa o governo de dificultar suas ações: “Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade”. O texto também diz que “há ainda dezenas de casos de perseguições e assédio aos servidores do Ibama e ICMBio, especialmente àqueles que atuam na fiscalização ambiental. Por fim, mas não menos importante, temos queda drástica de servidores nas diversas autarquias ambientais”.

Quem quer jogar pra frente é tratado como pereba ou desequilibrado: “Muita gente louca e os loucos gostam de direito ambiental porque eles se sentem confortáveis na área, inventando coisas”, respondeu Eduardo Bim, presidente do Ibama. Não contente, ele emendou: “Tem gestor que se sente constrangido por reportagem de jornal. Eu não. Eu sou um psicopata”. No ano passado, Bim foi afastado do cargo por três meses pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando a Polícia Federal o investigava por suspeita de favorecimento a madeireiras ilegais. Coisa de perna de pau.

O Ministério do Meio Ambiente tem a missão de “formular e implementar políticas públicas ambientais nacionais de forma articulada e pactuada com os atores públicos e a sociedade para o desenvolvimento sustentável”. Para quem não se lembra, uma das primeiras jogadas do atual governo foi entrar de carrinho na participação da sociedade civil nas comissões da pasta; mas no último dia 28, o STF lhe deu cartão vermelho. Na primeira votação do chamado “Pacote Verde”, o Supremo restituiu sua representação no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).

No mesmo dia, o tribunal também declarou ilegal o decreto que que afastou governadores de estados da Amazônia legal do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) e o que extinguiu o Comitê Organizador do Fundo Amazônia (Cofa). Isso obrigou o governo a mudar sua tática: no dia 30 de abril, aumentou, voluntariamente, o número de representantes do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 23 para 36. Ainda faltam 60 para os 96 originais, mas o recuo mostra que o jogo ainda está longe de acabar.

A pasta do Meio Ambiente não é o único a jogar contra. O escrete da Funai, vinculado ao Ministério da Justiça, hoje é comandado por ruralistas. Sua missão institucional é “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. Essa regra é desrespeitada diariamente; mas em março a Polícia Federal interrompeu uma jogada especialmente desleal: desbaratou uma quadrilha chefiada pelo coordenador-geral do órgão em Ribeirão Cascalheira (MT), onde fica a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.

Militar inativo da Marinha, Jussielson Gonçalves Silva é acusado, junto com três PMs, de arrendar áreas protegidas para criadores de gado. Antes de ser pego no antidoping, chegou a ser elogiado por Marcelo Xavier, presidente da Funai: “Esse é o caminho. O coordenador regional Jussielson Gonçalves e a prefeitura de Canarana estão de parabéns. Isso pode ser reproduzido em outras aldeias. Pode servir de modelo”.

O jogo só termina quando o juiz apita; então, ainda dá para virar. Mas é preciso reforçar o time do meio ambiente, e as eleições de outubro são a nossa oportunidade de levar para Brasília gente que honre a camisa.

 

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