Nós, povos indígenas, vivemos na Amazônia há 14 mil anos, sem causar destruição. Ao contrário: como temos consciência de que somos parte da floresta, ajudamos a transformá-la no gigante vital para o planeta. Vemos nossas terras como um espaço de convivência de todos e usamos seus recursos coletivamente e pensando nas gerações futuras. A forma desordenada de exploração adotada por outros povos causou esse colapso climático, social e ambiental. Logo, não há ninguém mais capacitado do que nós para cuidar desse bem que pertence a toda Humanidade.
O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) é uma ferramenta da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), criado por decreto em 2012. É tão importante para nós que muitas comunidades o chamam de Plano de Vida; uma construção coletiva que trata não só da utilização da terra, mas de nossa organização social: da proteção do território ao fortalecimento de nossa identidade cultural. Uma forma de os indígenas mostrarem para a sociedade não indígena que é possível usar as riquezas naturais para todos, desde que se respeite a capacidade de regeneração da terra.
Vemos países desenvolvidos com população de rua grande e faminta; ao mesmo tempo 1% das pessoas mais ricas do mundo emitem a mesma quantidade de CO₂ que as 66% mais pobres. Temos que distribuir irmanamente nossas riquezas e a explorá-las com sabedoria. Sempre fizemos o manejo sustentável da terra; cultivávamos em uma área e depois mudávamos para outra, para deixar o solo descansar – um saber ancestral. Mas não estamos parados no tempo: incorporamos a ele técnicas não-indígenas.
É preciso que não só os indígenas, mas todos, unam seus saberes e tecnologias. Sozinhos não somos capazes de travar o aquecimento global. A emergência climática chama os povos da Terra para essa aliança. Precisamos proteger nossa casa, que é o lugar mais importante e sagrado para todos. E os governantes têm o dever de nos chamar para participarmos não só dos debates e decisões sobre desenvolvimento econômico, mas da repartição de benefícios – e acesso ao financiamento climático.
O Governo Federal está ouvindo a sociedade civil sobre o programa de transição energética e o desenvolvimento da bioeconomia. Sem dúvida é um passo importante para o país, para a Amazônia e para povos indígenas; mas são as nossas terras que conservam e preservam grande parte das florestas. Por isso, temos que estar diretamente envolvidos em todos os debates sobre essa transformação, como a implantação do REDD, mecanismo concebido com o objetivo de reduzir emissões de CO₂ provenientes do desmatamento, por meio de incentivos financeiros. Não podemos ficar à margem dessas decisões.
Se fomos capazes de manejar essa floresta por mais de 14 milênios e dela depende o futuro do planeta, por que não estamos presentes nesse espaço? Nós cuidamos de 80% da biodiversidade do planeta, mas temos acesso a 1% do financiamento climático global. Enquanto isso, os recursos beneficiam quem está acelerando o colapso climático e financiando a pressão contra nossos territórios.
O desafio está posto. E, para isso, garantir o direito dos povos indígenas à sua terra é o primeiro passo na busca do bem-comum. É preciso que todos os povos vejam a Terra como uma grande aldeia.
*Toya Manchineri é Coordenador da Coordenação das Organizações indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Liderança do povo Manchineri, no Acre, está presente na COP28.
O consenso científico que aponta a África como berço da humanidade significa um ancestral lugar de fala para o momento de luta pelo planeta. De lá vêm os saberes que nos ajudam a cuidar de nossa única morada, hoje metida em crescente desequilíbrio. No país-chave para o contra-ataque, a terra da Amazônia e de outros biomas essenciais, os descendentes de África têm muito a contribuir na urgência global. Ouçam os quilombolas!
A cruzada ecológica integra as agendas cotidianas do povo preto. Sabemos, desde sempre, a necessidade da preservação, do manejo sensato dos recursos naturais, da agroecologia, do respeito às outras espécies que dividem a Terra conosco. Nossos territórios oferecem exemplos e lições, enquanto lutamos pela própria existência.
Parte especial dos quilombolas guarda o Cerrado, segundo maior bioma brasileiro, que se espalha por 11 estados, ou 204 milhões de hectares (23% do território nacional). Ou a “última fronteira agrícola”, como rotulam os insaciáveis chefões do agronegócio, para provar que a devastação se alastra muito além da Amazônia. A monocultura causa a savanização que ameaça a região central, endereço de nossos maiores mananciais.
Sim, é na caixa d’água do Brasil que mora a parte mais dramática da luta fundiária. O Cerrado soma 91% da vegetação do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), epicentro da sanha devastadora, que ataca também centenas de territórios quilombolas, onde vigora o manejo virtuoso das riquezas naturais.
A verdadeira luta ambiental se encontrará na COP28 para conhecer boas iniciativas e discutir venenos e perigos. Não podemos cair na armadilha da falsa transição energética, que gera impactos tão grandes quanto o modelo hoje decadente.
Ótimo exemplo é a Guerra do Dendê, no Nordeste do Pará, onde o plantio de dendezeiros para abastecer termelétricas com palma de óleo cresce, apesar do histórico da destruição, em processo semelhante, de florestas do Sudeste Asiático. Por aqui, sofrem a biodiversidade e os povos indígenas e quilombolas na Amazônia. Símbolo de energia limpa, as eólicas também impactam negativamente comunidades quilombolas no Nordeste.
Encaramos ainda o perigo decorrente da busca desmedida pelo lucro, que faz girar a espiral dos massacres de lideranças país afora. Denuncia a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) que, nos últimos cinco anos, houve 32 assassinatos do tipo em 11 estados de todas as regiões – incluindo, pela primeira vez, o Centro-Oeste, terra do Cerrado. A média anual de mortes dobrou e ao menos 13 quilombolas foram exterminados no contexto de conflitos fundiários.
Os números constam da segunda edição do levantamento “Racismo e violência contra quilombos no Brasil”, realizado em parceria com a ONG Terra de Direitos, e assusta pela comparação com o primeiro capítulo dessa odisseia sangrenta: de 2008 a 2017, registraram-se 38 homicídios.
Não melhorou em 2023 (que entrará somente na terceira edição), como provam as mortes de Mãe Bernadete, ialorixá e líder do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), fuzilada com 25 tiros na sala de casa, em agosto; e de José Alberto Moreno Mendes, o Doka, presidente da Associação de Moradores do quilombo de Jaibara dos Rodrigues, em Itapecuru-Mirim (MA), morto também a tiros em outubro. Além deles, mais dois líderes quilombolas foram assassinados este ano. Os guardiões da floresta estão sob ataque mais uma vez.
Somos sobreviventes – e estaremos na reunião da aldeia ambiental, engajados no combate à emergência climática, para sublinhar nosso papel na proteção dos ecossistemas e na denúncia da violência impiedosa que nos cerca. Mais do que nunca, não há recuo possível.
O mundo precisa conhecer e adotar soluções sustentáveis que desenvolvemos em nossos territórios, a partir de saberes ancestrais. O respeito e a proteção aos territórios dos quilombolas brasileiros estão entre as agendas mais urgentes da crise. Atendê-la é para ontem – em nome da ampla morada dos humanos.
*Sandra Braga é liderança quilombola do Quilombo Mesquita, em Goiás, e coordenadora executiva da Conaq. Está participando da COP28, em Dubai