A boiada do apocalipse 

A boiada do apocalipse 

Enquanto Juscelino Kubitschek ambicionava que o Brasil avançasse “50 anos em 5”, o atual presidente prometeu fazer voltar ao que era há quatro, cinco décadas. Ele engatou a marcha-a-ré e pisou fundo no acelerador, mas, ainda assim, três anos não foram o suficiente; então, decidiu envenenar a máquina em seus últimos meses de mandato. O governo elencou suas prioridades para 2022, usando combustível aditivado para tratorar meio ambiente e povos tradicionais. A nova meta é passar a boiada do apocalipse. Um bovino já entrou, na marra: a Câmara aprovou, em regime de urgência, o PL do Veneno. E tem mais praga do Egito Antigo a caminho. Como fechar essa porteira?

O Projeto de Lei 6299/2002, que facilita ainda mais o uso de agrotóxicos no país, ainda precisa de aprovação do Senado; porém mais 11 bombas, plantadas em variadas instâncias, nos esperam nos próximos meses. Algumas delas são motosserras movidas a caneta: o PL 510/2021, conhecido como PL da Grilagem, que faz o crime compensar ao regulamentar áreas protegidas que foram invadidas; e o PL 3.729/2004, que afrouxa ainda mais a regulamentação do licenciamento ambiental, como se Mariana e Brumadinho não tivessem existido ou nada houvesse acontecido na virada do ano em Minas Gerais.

“No meu governo, não foi demarcada terra indígena”, gabou-se outro dia mesmo o presidente. Quando o assunto são os povos originários, os ataques costumam ser mais frequentes – porque é onde ele tem encontrado mais resistência. Com o PL 490/2007, que estabelece um “marco temporal” para que indígenas possam reclamar seus territórios, Executivo e Legislativo formaram uma aliança contra o Judiciário, já que a causa está em julgamento no Supremo Tribunal Federal. Também pode ter agente duplo nessa guerra, pois mais de uma vez Bolsonaro afirmou ter escolhido ministros obedientes.

E tem o PL 191/2020, que abre as terras indígenas para a mineração, uma verdadeira obsessão: ainda em campanha, o então candidato já falava em encher a Amazônia de Serras Peladas. Para cercar por todos os lados, ele lançou um novo ardil, no último dia 14, o decreto que cria o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala. O objetivo seria “estimular o desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala”. Mas precisava? Hoje, a região concentra 72,5 % de toda a área de mineração no Brasil e, segundo um relatório do projeto MapBiomas, a área tomada por garimpeiros em terras indígenas e unidades de conservação cresceu 495% e 301%, respectivamente, entre 2010 e 2020. O mercúrio corre nas veias de Yanomami e Munduruku, e envenena o Rio Tapajós.

Ainda que as consequências dessas ações sejam apenas coincidências infelizes, que o governo estivesse coberto das mais nobres intenções, era para pensar no que deu errado, né? Isso não acontece porque por trás desse aparente apetite irracional por destruição, se esconde o objetivo de sempre, que tradicionalmente move a política brasileira: tirar direitos dos vulneráveis para aumentar os privilégios dos poderosos. Mas o governo atual tem uma prioridade exclusiva, que é armar civis. A vítima mais evidente é a segurança nas grandes cidades, também ameaçada por absurdos como o “excludente de ilicitude”, na prática uma licença para matar. Só que vai sobrar bala perdida pra todo mundo, incluindo os povos tradicionais, que conhecem miliciano como jagunço.

Dois projetos de lei, o 6.438/2019 e o 3.723/2019, rondam perigosamente o Congresso. Desde a posse, o presidente baixou mais de 30 decretos e atos normativos para facilitar o acesso às armas. Embora a caça seja proibida no Brasil, caçadores podem comprar até 30 armas, 15 delas de uso restrito, e até seis mil balas; o volume de importação de armas de fogo no Brasil aumentou 33% em 2021 em relação a 2020. É o maior número desde 1997, quando a atividade começou a ser monitorada pelo Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex). No ano passado, foram importadas 140.559 armas de fogo, contra 119.335 de 2020. Tem gente armada até os dentes até dizer chega.

Enquanto isso, assassinatos de indígenas aumentaram 61% entre 2019 e 2020, segundo o “Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2020”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em dezembro passado, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou dados preliminares relativos à violência no campo em 2021. Os dados são assustadores: do início de 2021 até o fim de agosto, foram registrados 26 assassinatos, 30% a mais do que o ano de 2020 inteiro. 

Das 26 vítimas, oito eram indígenas e três, quilombolas. “A coroa portuguesa declarou guerra justa aos povos que não aceitavam a conversão ao Cristianismo. Isso é excludente de ilicitude. Já existe há 521 anos. O que é o bandeirante? O que é o capitão do mato? Eles são os milicianos!”, traduz para o português moderno Casé Angatu Xukuru Tupinambá, historiador e professor na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC-BA), e Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Será que sobra algum Brasil no fim do ano? A gente pode pressionar o Congresso e o Judiciário para que reduzir os danos de 2022, mas é bom lembrar que não existe melhor abaixo-assinado do que a urna. 

 

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Em 2017, a cada seis dias um ativista foi assassinado no Brasil

Em 2017, a cada seis dias um ativista foi assassinado no Brasil

Em 2017, a cada seis dias um ativista ambiental foi assassinado no Brasil. São 57 mortos e apenas dois casos esclarecidos. O país lidera, pelo segundo ano consecutivo o balanço da ONG internacional Global Witness. No mundo inteiro, houve 207 vítimas.

Pela primeira vez, conflitos relacionados ao agronegócio encabeçam esse triste ranking, com 46 assassinatos. O setor que mais matava antes, a mineração, caiu para o segundo lugar, com 40. O agro é fogo.

Via G1

Foto: thinkstock

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Até agosto, foram 58 ativistas mortos

Até agosto, foram 58 ativistas mortos

O hexa que não queremos. Um relatório da Anistia Internacional Brasil lançado hoje revela mais uma vergonha nacional: 58 ativistas dos direitos humanos foram mortos de janeiro a agosto no Brasil – durante todo o ano de 2016, foram 66. A maioria estava envolvida em questões ligadas ao meio ambiente e à disputa por terra. Em nenhum outro país morreram tantos.

Há cinco anos lideramos outra lista vergonhosa e macabra: a de ambientalistas assassinados por ano, feita pela ONG internacional Global Watch. No ano passado, foram 49. Dificilmente não repetiremos o triste feito. É um título que deveria causar revolta em todos nós.

Via Bom Dia Brasil

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Um alvo pintado no peito

Um alvo pintado no peito

É como se cada ambientalista no Brasil tivesse um alvo pintado no peito. Pelo quinto ano consecutivo, é aqui onde mais se matam pessoas que defendem o meio ambiente no mundo. Indígenas, ambientalistas, ativistas trabalhadores rurais, jornalistas: estão todos ameaçados na alça de mira. A ONG internacional Global Witness faz este levantamento desde 2002 e segundo o relatório divulgado na semana passada, nunca se matou tantos ambientalistas como em 2016: foram 200 assassinatos, 49 deles aqui. “Acreditamos que o número de mortes seja maior, nem sempre elas chegam ao conhecimento público”, desconfia Billy Kyte, da Global Witness. 

E essa presunção é reforçada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). O órgão contabilizou 61 vítimas em 2016 entre lideranças comunitárias, indígenas, sem-terras, posseiros, trabalhadores rurais e quilombolas. Rondônia, Maranhão e Pará – todos parte da Amazônia Legal – foram os estados mais violentos em 2016, de acordo com a CPT. “A causa está na expansão do agronegócio, construção de grandes obras de infraestrutura como barragens e hidrelétricas, ferrovias”, diz Thiago Valentin, da secretaria nacional da CPT. Somente a retomada dos processos de demarcação de terras indígenas e quilombolas e um pé no freio desse modelo de desenvolvimento insustentável podem deter essa escalada de violência.

Por enquanto, as perspectivas não são nada boas. Este ano, em menos de um mês, dois massacres foram registrados também no Maranhão e no Pará: os índios Gamela em Viana, e os trabalhadores rurais na Fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco, respectivamente. No Maranhão, foram 13 mortos e no Pará, dez trabalhadores executados por policiais. E, infelizmente, tem mais gente na “lista da morte”. Na dia 7, outra liderança foi assassinada em Pau D’Arco. Na Bahia, dois líderes quilombolas foram assassinados este mês, em menos de uma semana.

Isso fez com que a CPT, a Justiça Global e a Terra de Direitos solicitassem que o Governo Federal incluísse essas pessoas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Num evento recente no Senado, o relator da ONU para o Meio Ambiente John Knox afirmou que os “direitos humanos e a conservação do meio ambiente são interdependentes. Não existe um sem o outro”. Além de Knox, o ministro do STJ, Herman Benjamim, também chamou atenção para a existência do princípio da proibição de retrocesso. “Os parlamentares podem mudar a legislação ambiental, mas nunca para reduzir o patamar de proteção. Se tirar 20% de uma área, é preciso adicionar mais 30%, 40%. Esse princípio forma o sistema constitucional brasileiro e leis aprovadas seja pelo Congresso Nacional, pela Assembleia Legislativa ou pelas Câmeras Municipais têm que passar por esse teste – sob o risco de serem declaradas inconstitucionais pelos juízes”, disse Benjamim.

Mas em vez de o governo prezar pela proteção dos mais vulneráveis, aprova medidas que os ameaçam ainda mais. Como é o caso da aprovação da MP 759, a MP da Grilagem, que facilita a legalização de terras invadidas e que pode resultar em mais desmatamento e mais violência no campo. Os defensores da MP alegam que ela vem corrigir uma grande dívida histórica fundiária do governo brasileiro. Entretanto, a maior dívida do Estado é com povos indígenas e demais populações tradicionais, cujos muitos territórios ainda não foram reconhecidos. Mesmo que tenham prioridade legal para essa regularização, o ritmo de demarcação foi drasticamente reduzido desde 2010. No momento, há 45 terras indígenas na Amazônia em processo de reconhecimento, sendo que parte dessas em estágio avançado e que já poderiam ter sido demarcadas.

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Caça aos ambientalistas no Brasil

Caça aos ambientalistas no Brasil

Um cemitério de 8,5 milhões de km². Pelo quinto ano consecutivo, o Brasil é o país onde mais pessoas foram assassinadas no mundo em defesa do meio ambiente. Segundo o relatório divulgado ontem pela ONG internacional Global Witness, nunca se matou tantos ambientalistas como em 2016: foram 200 assassinatos, 49 deles aqui.

“Acreditamos que o número de mortes seja maior, nem sempre elas chegam ao conhecimento público”, diz Billy Kyte, da Global Witness.

Se há dúvidas em relação aos números, a causa do aumento da violência no campo no Brasil é conhecida: a expansão avassaladora do agronegócio.

Via DW (Brasil)

Foto: Reuters

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