Um ano sem Bruno Pereira e Dom Phillips

Um ano sem Bruno Pereira e Dom Phillips

Fazer justiça a Bruno e Dom não é apenas punir os responsáveis por suas mortes. Não aprovar o marco temporal é, também, honrar a memória deles.

Por Beatriz Matos e Alessandra Sampaio*

Completamos um ano sem Bruno e sem Dom. São 365 dias sem o aconchego de seus abraços, sem as conversas confidentes, sem a vida compartilhada. Para os filhos, são 8.760 horas sem o canto de Bruno que embalava seu ninar, sem o seu “colo grandão”, sem as tantas plantas que ele ensinava a nomear e cultivar. Para os amigos, são 52 semanas sem as suas gargalhadas, sem seus conselhos precisos, sem as mãos estendidas, sem o ombro acolhedor. Perdemos muito e perdemos todos. Além de nós, foi o mundo que perdeu dois grandes defensores dos direitos humanos, dois grandes defensores da floresta, dois grandes defensores do direito à diversidade, pois lutavam pelo direito indígena ao usufruto exclusivo das terras tradicionais.

Neste longo ano, vivemos de tudo que vocês possam imaginar. Vimos o ex-presidente da República vilipendiar as memórias de nossos entes queridos, sugerindo seu envolvimento com o tráfico de drogas, vimos o ex-vice-presidente da República afirmar que eles estavam fazendo mal a pobres trabalhadores ribeirinhos, vimos o advogado de defesa dos assassinos construir uma narrativa repugnante que tenta transformar Bruno em vilão e Dom em aventureiro, tal qual fez, este mesmo advogado, com a memória da irmã Dorothy Stang. Mas vimos também muita solidariedade vinda de todos os cantos do planeta, de pessoas que compartilham desse amor pela floresta e desse amor pela autonomia dos povos originários. Vimos os indígenas realizarem as buscas pelos corpos quando o Estado desdenhou da urgência em procurá-los, vimos grandes artistas cantarem em memória de nossos amores e vimos jornalistas comprometidos com a verdade dos fatos para rebater tantas mentiras disseminadas.

Hoje, depois de tanta dor e sofrimento, nós seguimos fortalecidas com a luta de Bruno e de Dom. E, na esteira da luta deles por um mundo mais justo, por um planeta mais vivo e por uma sociedade mais diversa, nós acompanhamos, atentas, a dois grandes julgamentos que, para nós, dizem respeito a essa luta: o julgamento pela condenação dos culpados de suas mortes e o julgamento sobre a instituição de um marco temporal de ocupação para as terras indígenas. O resultado de ambos os casos nos dirá o que, de fato, o Brasil pensa sobre os defensores da floresta e sobre as garantias constitucionais dos direitos territoriais indígenas. 

Estes dois julgamentos dizem respeito à quantidade de preocupação que o Brasil deposita na proteção do meio ambiente. São indissociáveis. O Brasil, infelizmente, ainda figura entre os países com taxas preocupantes de desmatamento e entre os países que mais matam defensores de direitos humanos, dentre os quais estão muitos indígenas. Precisamos urgentemente sair deste ranking nefasto. Isso somente ocorrerá se nos unirmos em torno deste ideal, que deve ser de todos nós. Garantir os direitos indígenas às terras que eles tradicionalmente ocupam é, a um só tempo, defender a nossa Constituição, a nossa Democracia e o nosso futuro no planeta.

Fazer justiça a Bruno e Dom não é apenas punir os responsáveis por suas mortes, mas, também, assegurar que os indígenas tenham garantidos e efetivados os seus direitos territoriais constitucionais. Com o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, o STF terá a oportunidade de nos dizer que Bruno e Dom não morreram em vão. Não aprovar um marco temporal de ocupação é, também, honrar a memória deles.

Beatriz Matos – esposa do indigenista Bruno Pereira, é antropóloga e Diretora de Proteção Territorial e Povos Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas

Alessandra Sampaio, esposa do jornalista britânico Dom Phillips, trabalha para concluir o livro que ele estava escrevendo: “Como Salvar a Amazônia”

Incompetência Estratégica

Incompetência Estratégica

“É uma região inóspita, afastada de tudo”, declarou o vice-presidente Hamilton Mourão, nove dias depois do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, na Terra Indígena Vale do Javari. Mourão já se disse descendente de indígenas; ele é gaúcho de Porto Alegre, mas seu pai é amazonense. Hoje general da reserva, foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), de 2005 a 2008, e preside há dois anos o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL). Deveria saber que na região onde a dupla sumiu vivem mais de 190 mil pessoas. Como assim “inóspita”?

“Num local onde o povo indígena consegue achar até um miquinho ou uma arara-canindé, o Brasil não sabe encontrar dois homens adultos que foram desaparecidos num trecho de floresta que é tão conhecido e em que pescadores e todo mundo andam por lá, e que agora está sendo controlado por traficantes”, desabafou o escritor e liderança Ailton Krenak. A alegada ascendência de Mourão e sua experiência de comandante na Amazônia e no atual cargo que ocupa não o têm ajudado nas buscas por Bruno e Dom. Aliás, o presidente da CNAL age como se não tivesse nada a ver com o caso. Na verdade, talvez seja melhor ele se manter afastado, mesmo.

O Conselho Nacional da Amazônia Legal foi reativado em fevereiro de 2020, vinculado à vice-Presidência da República. Originalmente, o órgão foi criado em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, embora nunca tivesse mostrado ao que veio. Tudo leva a crer que devia ter continuado assim: as três missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) promovidas pelas Forças Armadas no combate a crimes ambientais na Amazônia consumiram R$ 550 milhões e não reduziram o desmatamento na maior floresta tropical do mundo. Muito ao contrário, só em maio último, foram abaixo 1.180km² de verde, a maior destruição para este mês desde 2016. Essa dinheirama equivale a quase seis vezes o orçamento do Ibama em 2020 para fiscalização e licenciamento ambientais, e gestão da biodiversidade.

Os militares também se aboletaram na Funai: eles ocupam as chefias de 19 das 39 coordenações regionais da fundação, contra duas de servidores públicos, como o Bruno Pereira – as demais foram tomadas por policiais militares e federais, ou por funcionários de cargos comissionados. Desde 2017 já se sabia que o crime organizado estava tomando conta da região onde o jornalista e o indigenista desapareceram; mas de lá para cá, a situação só piorou. Entre 2018 e 2019, a Base de Proteção Ituí-Itacoaí foi atacada a tiros oitos vezes; em setembro de 2019, assassinaram o funcionário da Funai Maxciel Pereira dos Santos, que denunciava e combatia invasões naquela área. O crime permanece impune. Três meses depois, a Justiça condenou o governo federal por omissão e determinou que as bases locais fossem reforçadas; a ordem, porém, foi ignorada.

Há seis meses, do outro lado da fronteira, um posto da polícia peruana de Puerto Amelia foi atacado por 20 criminosos que roubaram oito fuzis, uma metralhadora e três mil cartuchos de bala. Os tiros foram ouvidos em Atalaia do Norte, cidade de 20.868 habitantes, que fica na região onde Bruno e Dom desapareceram. “As duas pessoas entram numa área que é perigosa sem pedir uma escolta, sem avisar efetivamente as autoridades competentes e passam a correr risco, né?”, também disse Mourão sobre o episódio. “Se o lugar onde a gente trabalha é perigoso e precisa de escolta armada, tem uma coisa muito errada aí. E a culpa não é nossa”, rebateu a antropóloga Beatriz Matos, mulher de Bruno. O general da reserva procurou uma justificativa e achou um veredicto: culpado.

A autoproclamada eficiência militar virou lenda do boitatá? Como esquecer a desastrosa passagem de outro general, Eduardo Pazuello, pelo Ministério da Saúde, no auge da pandemia de Covid-19? Os amazonenses, em especial, talvez jamais se curem desse trauma. Antes de assumir a pasta, em 2020, ele foi comandante da 12ª Região Militar, em Manaus. Considerado especialista em logística, esqueceu-se de abastecer os hospitais da capital amazonense com cilindros de oxigênio. Seu, digamos, descuido levou os hospitais da cidade a entraram em colapso e pelo menos 31 pessoas à morte, em dois dias. Quando foi efetivado ministro da Saúde, em 16 de maio de 2020, o Brasil contabilizava 233 mil casos e 15.633 mortes por Covid-19; ele deixou o cargo em 15 de março do ano seguinte com mais de 11,5 milhões de infectados, e cerca de 280 mil mortos.

Depois de sair do Ministério da Saúde, Pazuello foi designado para chefiar a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Executivo. O que nos leva a pensar: será que não é incompetência, mas estratégia? Para Ailton Krenak, não há dúvida: “A Amazônia está sendo devorada, e o Brasil entrou no rodo com uma disposição voluntária de ser usado e abusado. Quando os sujeitos do governo falam em preocupação acerca da soberania, eles ocultam a má intenção de entregar todo esse território e virar as costas para a morte de Yanomami, a violência contra o corpo de crianças indígenas, o ataque contra lideranças e defensores dos que estão sendo assassinados semanalmente”.

Não é a natureza hostil que oferece perigo no Vale do Javari, mas os invasores e sua ganância, que se espalham como ervas daninhas – com a indisfarçável negligência ou até cumplicidade do poder público. “Vemos agora o último assalto a uma região do mundo com muita riqueza. É como se estivessem descobrindo de novo a América”, reflete Krenak. O que fazer? O autor do best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo” aconselha: “A coisa está virulenta. Não se sabe mais de onde pode sair um ataque. Mas a gente vai superar esse momento. Não dá para nos desencorajarmos. Precisamos não cultivar a mentira e não nos associarmos a versões fajutas da realidade”. Que a verdade seja a nossa arma.

 

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No 7 de junho se comemora o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa e não há como não relacionar isso ao desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do servidor da Funai Bruno Araújo Pereira. A Terra Indígena Vale do Javari, localizada no Amazonas, é uma conhecida área de conflitos e alvo de grupos com interesses econômicos ilegais, incluindo o narcotráfico. Liberdade de imprensa não significa salvo-conduto para o repórter ou escrever, publicar ou falar o que bem entender; mas, principalmente, ter sua segurança garantida pelo Estado. Ele precisa disso para exercer sua atividade, que é fundamental para a democracia. E o descaso manifestado pelo governo é revoltante. Que nota foi essa do Comando Militar da Amazônia? Como assim “as ações serão iniciadas mediante acionamento por parte do Escalão Superior”?

Não é fake news: o mesmo governo que bate na tecla da soberania nacional, deixa entregue um território fronteiriço ao Deus dará – leia-se ao crime organizado, incluindo o tráfico de drogas internacional. “A maioria das drogas sai do Peru, mas aí elas vão pra Colômbia e também para o Acre, e para aquela região. Para sair, elas têm que cruzar a terra indígena, que é supostamente a área mais segura pros traficantes”, explica o indigenista Antenor Vaz, consultor para povos isolados da América do Sul. Madeireiros e garimpeiros se sentem igualmente à vontade para cometer ilegalidades na região.

A TI Vale do Javari tem dono. E não são apenas os 6.317 indígenas de 26 povos que lá vivem, como toda a população brasileira, já que é um bem da União. Mas é tratada como terra de ninguém. Ela é a segunda maior do Brasil e foi homologada em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Mas seus 85.445 km² continuam desprotegidos. Ainda há o agravante de ela abrigar a maior concentração de povos isolados do mundo. É uma população extremamente vulnerável. Não zelar por seu bem-estar é uma omissão criminosa. E coisas, digamos, inexplicáveis andam acontecendo por lá.

Em setembro de 2019, Maxciel Pereira dos Santos, funcionário da Funai que trabalhava na terra indígena, morreu em Tabatinga, no Amazonas. Ele levou dois tiros na cabeça e o crime ainda não foi solucionado. No mês seguinte, o ora desaparecido Bruno Araújo foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados. Quando de seu desligamento, ele combatia o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomani, em Roraima – a maior do país e uma obsessão pessoal do presidente Bolsonaro. Coincidência?

Este dia também nos traz à lembrança que esse bem, tão duramente conquistado, não sofria tantas ameaças desde os tempos da ditadura. Em 2021, o Brasil caiu quatro posições no ranking mundial da Liberdade de Imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras. Hoje, o país ocupa a 111ª posição e o relatório ressalta que a situação se tornou especialmente tóxica desde a posse de Jair Bolsonaro, autor de boa parte das agressões dirigidas a jornalistas: “Insultos, estigmatização e orquestração de humilhações públicas de jornalistas se tornaram a marca registrada do presidente, sua família e sua entourage”. Como fez com as vítimas das enchentes no Brasil este ano, ele preferiu culpar as vítimas: “Realmente duas pessoas apenas em um barco, em uma região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça”. Bolsonaro se refere a dois profissionais experientes como se fossem irresponsáveis.

Segundo o relatório “Violações à Liberdade de Expressão”, da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), o país chegou a 145 casos de violência contra profissionais da imprensa no ano passado – o que dá uma média de 2,7 por semana. O número é 21,69% maior que o de 2020. Para a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), ele é ainda mais absurdo: foram registradas 430 ocorrências. “Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil” diz que “a continuidade das violações à liberdade de imprensa no Brasil está claramente associada à ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República”. De acordo com o relatório, Bolsonaro pessoalmente foi responsável por 147 ataques à imprensa em 2021.

Não podemos nos calar. Todos nós somos gotas no imenso oceano da preservação ambiental e da defesa incondicional dos direitos humanos. Temos que exigir que Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira sejam encontrados o mais rápido possível e que os povos indígenas sejam protegidos. E reafirmar: a Terra Indígena Vale do Javari e a liberdade de imprensa são bens inalienáveis do povo brasileiro.

 

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