O novo coronavírus nos trouxe muita dor e duras lições. Escancarou a realidade e indicou uma luz no fim do túnel: ainda que por um instante, quando fomos obrigados a nos recolher, o ar que respiramos se tornou mais puro, rios e mares ficaram mais limpos, os animais selvagens se sentiram mais livres. Até a Terra ficou mais silenciosa. Logo, duas coisas ficaram claras para todo mundo: que tínhamos responsabilidade direta sobre a enrascada em que nos metemos, mas que também ainda havia tempo de sair dela. Quer dizer, para quase todo mundo. Depois de três meses consecutivos de queda no desmatamento da Amazônia, ele voltou a disparar em outubro. E, diferentemente de previsões iniciais, foi ainda maior em 2020 que em 2019. O Brasil está girando ao contrário do resto do planeta?
Mais de 11 mil km² de floresta foram abaixo entre agosto de 2019 e julho deste ano, 9,5% maior que no mesmo período anterior, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É a maior devastação desde 2008, quando 12.911 km² de verde foram perdidos. Aquele ano foi um ponto fora da curva do período em que o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) reduziu em 83% – entre 2004 e 2012. O vice-presidente Hamilton Mourão, com o conhecimento de causa de quem ora preside o Conselho Nacional da Amazônia, reconheceu: “Podia ser pior ainda”. Sua expectativa era a de um aumento de 20%, o que daria 12.154,8 km² de floresta a menos; ou seja, um número ainda mais próximo da área desmatada em 2008. A diferença é que naquela época houve reação e ele foi reduzido para 7.464 km² em 2009, e continuou caindo nos anos seguintes. E o que há de concreto para o próximo ano é um orçamento ainda mais apertado. As previsões de Mourão para 2020 podem se concretizar em 2021.
O desmatamento corresponde a 44% de nossas emissões de CO₂. Enquanto outros países precisam se virar nos 30 para cumprir suas metas ambientais, o Brasil poderia se dar ao luxo de ficar de boas, bastava não derrubar árvores desnecessariamente. Mas o governo tem agido ao contrário quando deixa ruir a política ambiental do país – afrouxando a regulamentação, enfraquecendo os órgãos de fiscalização, tratando criminosos com excessiva compreensão, deixando a boiada passar. Enquanto aumentou a destruição da floresta, as multas do Ibama caíram 42%. O ministro do Meio Ambiente parece encarar os cortes no orçamento de sua pasta como uma bênção.
O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, já anunciou que o país vai retomar o caminho do desenvolvimento sustentável. Na última reunião do G20, a União Europeia se comprometeu em promover uma reforma sustentável na Organização Mundial do Comércio (OMC). “Estamos trabalhando para fazer respeitar o Acordo de Paris como parte essencial de todos os futuros acordos comerciais”, disse o belga Charles Michel, presidente do Conselho Europeu. Em 2009, o Brasil se comprometeu em reduzir o desmatamento na Amazônia Legal a 3 mil km² em 2020. Entregamos quatro vezes a mais do que isso. Já foi provado que mudar é possível. O governo brasileiro tem de se convencer de que é preciso.
Você provavelmente tem plástico correndo nas veias. O novo coronavírus e a incineração da Amazônia vêm ganhando as manchetes, mas não dá para esperar que o tal do “novo normal” se estabeleça para resolver um problema que pode se tornar insolúvel. Um estudo do Ministério do Meio Ambiente da Alemanha e do Instituto Robert Koch encontrou vestígios de plástico em 97% do sangue e da urina de 2.500 crianças e jovens de 3 a 17 anos, coletadas entre 2014 e 2017. “Nosso estudo mostra claramente que os aditivos plásticos, que estão crescendo em produção, também estão aparecendo cada vez mais no organismo das pessoas”, disse a pesquisadora alemã Marike Kolossa-Gehring. Em outra pesquisa, da ONG Plastic Oceans International, cientistas analisaram 47 amostras de órgãos humanos e encontram microplástico e nanoplástico – fragmentos que medem de 0,001 milímetro a 5 milímetros – em todas. Cada pessoa pode ingerir – ou aspirar, já que elas também ficam em suspensão no ar – até 121 mil partículas por ano, de acordo com a Universidade de Victoria, no Canadá. Isso não embrulha o seu estômago?
Ainda não é possível mensurar com exatidão os danos que essa invasão plástica pode causar à saúde humana. Mas o estudo alemão alerta para os altos níveis de ácido perfluorooctanóico (PFOA), usado em panelas antiaderentes e em roupas impermeáveis, encontrados nas amostras. A substância pode atacar o sistema reprodutivo e o fígado – a União Europeia vai bani-lo a partir de 2021 –, enquanto outras podem causar obesidade, alterações no aparelho reprodutivo e câncer, além de atrasar o desenvolvimento de crianças. Já a pesquisa canadense adverte que também podemos ser contaminados quando consumimos produtos embalados em plástico, incluindo água mineral. Da década de 1950 até 2017 foram produzidas 8,3 bilhões de toneladas de plástico. Aproximadamente 30% desse total ainda está sendo usado, mas só 9% foi reciclado. No ano de 1950, fabricou-se 2,3 milhões de toneladas; em 2015, este número saltou para 448 milhões de toneladas e a produção poderá dobrar até 2050 – a pandemia de Covid-19 deve agravar mais ainda esse quadro, já que exige a produção de material descartável.
Segundo o Banco Mundial e a WWF, o Brasil produz 11,35 milhões de toneladas por ano de lixo plástico – fica atrás somente de EUA, China e Índia – e recicla apenas 145 mil toneladas, 1,28% do total. O mesmo estudo aponta que mais de 104 milhões de toneladas de plástico poluirão o meio ambiente até 2030. Hoje, calcula-se que entre 4,8 milhões e 12,7 milhões de toneladas do material cheguem aos oceanos todos os anos e que essa quantidade deve triplicar até 2040. Sabe-se que há uma ilha de detritos do tamanho do estado do Amazonas flutuando no Pacífico; agora, cientistas do Centro Nacional Oceanográfico, do Reino Unido, descobriram que pode haver dez vezes mais plástico no Atlântico do que se supunha, entre 12 e 21 milhões de toneladas. Todo esse lixo põe em risco a vida marinha – e a nossa, já que consumimos peixes que podem estar contaminados. No fim do ano passado, uma baleia de 10 anos foi encontrada morta na Escócia com aproximadamente 100 kg de plástico no estômago. A fabricação do material também contribui para o avanço das mudanças climáticas, já que a sua base é formada por combustíveis fósseis – não só petróleo, como gás e carvão. Um relatório da ONG Center of International Environmental Law diz que se a produção continuar crescendo nos níveis atuais, ela vai responder por até 13% da quantidade de CO₂ que o mundo pode emitir antes de passar de 1,5º C de aumento da temperatura previsto pelo Acordo de Paris.
Mas o que fazer? No ano que vem, entra em vigor na União Europeia um imposto sobre o material. Cada país do bloco terá que pagar 80 centavos de euro por quilo de plástico não reciclável. Mas não dá para parar a produção de uma hora para outra, segundo um estudo da Universidade Heriot-Watt, no Reino Unido. Substituir os plásticos por vidro e metal aumentaria o consumo de água e energia. Já a reciclagem é um excelente negócio: uma tonelada de plástico reciclado significa uma economia de 5.774 kWh de energia e 16,3 barris de petróleo, de acordo com a Universidade de Stanford, nos EUA. Outra opção é investir pesado em pesquisa de materiais de origem orgânica, biodegradáveis, como o leite, a mandioca e o bagaço de cana-de-açúcar. A Unicamp está desenvolvendo um plástico à base de amido e gelatina que, além de biodegradável, é comestível. Segundo a ONG Ocean Cleanup, as redes de pesca respondem por 46% da poluição marinha por plásticos. Hoje feitos de nylon, esses utensílios antigamente eram manufaturados com materiais como grama, linho, fibras de árvores e algodão. A solução pode estar no passado.
O filme do Brasil está carbonizado no exterior e não será fácil recuperar a imagem de outrora. Já tínhamos um histórico acumulado e o artigo recém-publicado na revista “Science”, que afirma que 20% da soja e 17% da carne que exportamos para os europeus vêm de áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia e no Cerrado, nos queimou mais ainda. O avanço da destruição da floresta e, por consequência, das sanções econômicas, não será detido com palavras. “Queremos ver dados sobre queda do desmatamento”, disse o embaixador da União Europeia (UE) no Brasil, Ignacio Ibáñez. “Acho que as ações que os investidores e atores internacionais estão fazendo estão começando a dar resultado nas declarações. Mas queremos ver que essa vontade vá se converter em dados mais positivos do que os tivemos até agora, porque até agora os dados não são positivos”, continuou.
A chegada do coronavírus deixou ainda mais claro que será preciso um esforço global para deter o avanço das mudanças climáticas. Os boletins do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) são o termômetro que mede nosso empenho no combate à febre que acomete o planeta. Com o Ministério do Meio Ambiente desacreditado, a solução encontrada foi recriar o Conselho Nacional da Amazônia – extinto por este mesmo governo – e dar ao vice-presidente Hamilton Mourão a tarefa de convencer a comunidade internacional de que vamos fazer o dever de casa. Mas de pouco adianta anunciar que as Forças Armadas vão ficar na Amazônia até 2022 e, ao mesmo tempo, contrariar os protocolos de segurança e permitir que militares levem suas esposas a aldeias indígenas em plena pandemia. O governo proibiu as queimadas na Amazônia por 120 dias, mas criminosos não seguem leis. O próprio Mourão admitiu que o Ibama está destroçado e, como o Exército não é especialista no ramo, a catástrofe ainda está anunciada.
A publicação da “Science” deixou os europeus indignados com a possibilidade de serem cúmplices de crime ambiental – e os maus agricultores, revoltados por serem pegos em flagrante. O artigo “As maçãs podres do agronegócio brasileiro” foi escrito pelo cientista brasileiro Raoni Rajão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com 12 pesquisadores de Brasil, Alemanha e Estados Unidos. A pesquisa usa dados da safra 2016 e 2017 e comparou informações de 815 mil propriedades rurais. O texto não só dimensiona o problema, mas também sugere soluções: como o número de infratores é relativamente pequeno, então bastaria focar a fiscalização neles. “O resultado do artigo mostra não só o problema, mas identifica quais são aqueles que estão trabalhando certo e os que estão trabalhando errado. O estudo mostra que o governo pode atuar de forma precisa para evitar que 100% do nosso agronegócio seja punido por conta de um número limitado de produtores que atuam de forma ilegal”, explicou Rajão. Caso use dessa informação para combater o desmatamento, o governo ainda pode transformar prejuízo inevitável em lucro e sair por cima.
A crise do pós-pandemia não vai ser boa para ninguém. Tanto que na quarta-feira (22/7), executivos dos três principais bancos brasileiros sugeriram a Mourão medidas para conter o desmatamento da Amazônia. Entre os dez pontos da proposta estão estimular monoculturas sustentáveis, como cacau, açaí e castanha, por meio de linhas de financiamento especiais, e atrair investimentos que incentivem a bioeconomia. “É imprescindível que este modelo seja sustentável e impulsionado por investimentos públicos e privado que construa uma economia de baixas emissões, inclusive e direcionado para o futuro”, diz um artigo assinado pelos presidentes das empresas.
E nós, cidadãos, o que podemos fazer? Também cabe à população limpar a barra do Brasil e mostrar que o país não se limita a seus governantes, que são transitórios. “Você sabe de onde vem sua comida?”, pergunta o Greenpeace em sua nova campanha. Nela, uma série de vídeos, apresentados pela atriz Alice Braga e produzidos por Bianca Comparato, mostram como funciona o sistema da agricultura industrial; a relação entre o que a gente come, a crise climática e a destruição de florestas, além de, assim como o artigo da “Science”, sugerir formas de aperfeiçoar as cadeias produtivas de alimento. A informação é a arma mais poderosa do cidadão.
29 \29\America/Sao_Paulo maio \29\America/Sao_Paulo 2018 | poluição
Hora de sair da embrulhada em que nos metemos. Pelo menos a União Europeia parece disposta a comprar de vez a briga contra o plástico. O bloco de países vai tomar medidas que vão desde a proibição de produtos até a aplicação de multas.
Os países membros também terão até 2025 para adotar medidas com o objetivo de coletar 90% das garrafas plásticas usadas por seus cidadãos. Até porque se nada for feito, o planeta inteiro vai para o saco.