Da semente ao futuro
Júnior Nicácio*
Bons frutos são mais resistentes às pragas – os da terra chegam a ser imunes. Com dois anos de atraso, devido à pandemia de Covid-19, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) finalmente pôde comemorar seu 50º aniversário, reunindo mais de 2 mil pessoas em um território sagrado e emblemático: a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A semente da qual brotou o CIR foi primeira Assembleia dos Tuxauas, realizada de 4 a 7 de janeiro de 1971 – Tuxaua é o termo que denomina os líderes das comunidades Wapichana. Junto com a União Nacional Indígena (UNI), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e outras associações, o CIR semeou o solo do movimento indígena brasileiro.
Esses pioneiros foram fundamentais para que garantíssemos não só nossos direitos territoriais, como também o de manter nosso modo de vida na Constituição de 1988. O artigo 231 diz, textualmente, que terras indígenas são “as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Uma vitória no campo do adversário.
Até a criação do Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, e a nomeação de minha mentora Joênia Wapichana à presidência da Funai, foi preciso muita luta para garantir que esses direitos constitucionais fossem respeitados. A própria Joênia, quando atuava como advogada no CIR, foi responsável pela sustentação oral da defesa da demarcação da Raposa Serra do Sol. O caso só foi concluído em 2009 e se tornou um marco de nosso movimento – e, porque não dizer, da própria História do Brasil. Quando Sonia tomou posse como ministra, ganhamos mais um motivo para comemorar esse cinquentenário.
Engana-se, porém, quem acredita que recebemos de mão beijada das gerações anteriores a questão indígena solucionada. Ainda há muito trabalho para fazer – proteger nossos parentes Yanomami, cuja terra foi invadida por dezenas de milhares de garimpeiros talvez seja nossa prioridade máxima. Ao celebrar esse cinquentenário, não apenas festejamos, mas refletimos. Precisamos continuar atentos. Infelizmente, ainda há no Brasil quem nos veja como obstáculo ao que chamam de desenvolvimento; como vivemos numa democracia, nada impede que a Presidência da República seja tomada por outro mau espírito.
O Karaiwa – como chamamos o homem branco – tem um ditado que diz que o hábito não faz o monge. Nasci na Terra Indígena Manoá/Pium, na região da Serra da Lua, que fica na fronteira de Roraima com a Guiana. Cursei o ensino superior em Boa Vista, onde me formei advogado, em 2020. Hoje, faço parte do departamento jurídico do CIR. Meu ofício me obriga a usar terno e gravata. Mas, da mesma forma que o Karaiwa que compra cocar no camelô e se pinta com guache para brincar o Carnaval não vira indígena, não é por isso que eu vou deixar de ser Wapichana.
Este é justamente um dos maiores desafio de nossa geração: experimentar, conhecer outras culturas sem perder nossa identidade. Impedir que nos embranqueçam culturalmente. Enfatizo essa necessidade porque não reconhecer quem mora na cidade grande como indígena faz parte da estratégia daqueles que ambicionam nossas terras. Só deixamos nossa casa obrigados, para protegê-la.
Mas lugar de indígena é onde ele quiser. Sou Wapichana em minha comunidade natal ou na cidade grande. Tenho essa consciência porque aliei a educação formal oficial aos ensinamentos que herdei de meus ancestrais. No Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, eu me diplomei técnico agropecuário. Lá, aprendi a cuidar da terra a partir de nossos métodos, que não destroem o meio ambiente; o desenvolvimento sustentável a partir de nosso olhar. Durante minha formação, conheci grandes lideranças, como Jaci Macuxi, Clovis Wapichana e o pajé Orlando Pereira, de Uiramutã, herói que ousou enfrentar o Exército.
Na universidade, aprendi a lei do homem branco para defender o meu povo. Da mesma forma, usamos sua tecnologia, como instrumento de difusão de nossa cultura para os mais jovens, para que entendam a importância de sua preservação. A ditadura quis nos integrar à força, destruindo nossa cultura; quando não conseguiam, tentavam nos dizimar. Hoje, usamos as armas do inimigo contra ele.
O CIR atua nas 35 terras indígenas de Roraima. É uma área de mais de 100 mil km², e uma população de 58 mil indígenas em 465 comunidades. No estado vivem Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi; uma responsabilidade sem tamanho. Tem Karaiwa que acredita – ou finge acreditar – que não damos duro, porque trabalhamos cantando. Por que não o faríamos? Para nós, trabalho não é sofrimento. Sabemos que a briga não acabou, pois o monstro da ganância é tão resiliente quanto nós. Mas podemos e devemos, sim, celebrar. A alegria nos fortalece na luta por um futuro feliz.
* Júnior Nicácio é advogado e indígena da etnia Wapichana, nascido na Terra Indígena Manoá/Pium, em Roraima. Atualmente é assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).