setembro 2024 | Catástrofe ambiental, Desmatamento, Pantanal, Povos indígenas
Por Claudia Gaigher
A Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo é um importante passo no controle de biomassa, educação ambiental, prevenção e fiscalização. Mas e o que foi destruído? E a restauração do bioma? É preciso responsabilizar e punir efetivamente os culpados
Em uma das minhas coberturas de incêndios no Pantanal, eu estava acompanhando a brigada indígena nos combates noturnos. Toda aquela devastação me impactou, e eu chorava ao ver o fogo avançando. Foi quando um brigadista Terena me olhou e disse: “É triste né? Ver que muita gente não conhece o comportamento do fogo… Tem o fogo bom e o fogo ruim.” Fiquei intrigada e perguntei: ” Como assim?”. Ele, com o rosto enegrecido pela fuligem, me encarou serenamente e disse: “Fogo bom é aquele calmo, que queima pouco, não mata os bichos e as plantas. E quando vem a chuva, tudo brota verdinho. O fogo ruim é esse aqui, raivoso, que passa queimando e matando tudo no Pantanal”. A explicação me surpreendeu, e fiquei com aquilo na cabeça. Fui estudar a respeito…
Os povos originários vivem no Pantanal há mais de 2 mil anos e sempre usaram o fogo como aliado nas roças de subsistência e na preparação dos campos. Segundo Leticia Garcia, bióloga e coordenadora do Laboratório de Intervenções Ecológicas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o Pantanal é parcialmente adaptado ao fogo e algumas espécies, inclusive, dependem do fogo, mas a recorrência dos
grandes incêndios vai tornando os ambientes cada vez mais degradados, afetando a resiliência do bioma. O “fogo ruim” está devastando o Pantanal.
O papel dos povos originários na proteção e recuperação de áreas no Pantanal tem se mostrado fundamental. Em praticamente todos os territórios existem brigadas indígenas formadas pelo PrevFogo Ibama. Esses brigadistas estão entre os mais efetivos no combate aos incêndios. São os primeiros a chegar e os últimos a sair das áreas em chamas e têm uma resistência física impressionante. Além disso, as brigadas indígenas têm uma qualidade insuperável no combate e manejo integrado do fogo: o conhecimento do território, fundamental para a chegada imediata aos locais dos incêndios. Seus ancestrais já usavam o fogo bom, e eles sabem o momento certo e o tipo de vegetação que pode ser queimada. É fato que, onde os brigadistas indígenas foram contratados, os resultados têm sido bastante significativos na redução de áreas queimadas.
Só que não podemos esquecer que 95% do Pantanal são formados por fazendas privadas, a maioria de criação de gado. A pecuária extensiva foi instalada há mais de 200 anos e, durante muito tempo, os antigos “reis do gado” eram os maiores proprietários de terra. Agora, a situação mudou, mas a destruição continua. A divisão das fazendas entre os herdeiros, a venda para investidores externos, o abandono de áreas por descapitalização, são situações que têm fragmentado o bioma e tornado ainda mais difícil implementar uma política de conservação na região. Alguns proprietários no Pantanal abriram as porteiras para o ecoturismo, pesquisa e buscaram o PrevFogo para treinar os seus funcionários e formar brigadas civis nas fazendas. Isso tem sido importante no combate inicial dos focos, mas não é suficiente. Os anos de estiagem, sem cheias e o relevo plano encheram os olhos dos produtores de grãos, que já avançam com as suas lavouras bioma adentro.
Este ano, praticamente todos os focos de incêndio foram provocados por ação humana. Nos anos anteriores, também. O fogo mau compensa. Investigações são feitas, inquéritos instaurados e multas aplicadas, mas, na prática, não muda nada. Tanto que, de 2020 até 2023, o governo de Mato Grosso do Sul aplicou mais de R$ 50 milhões em multas para quem comprovadamente começou os incêndios. Mas da aplicação das multas ao pagamento tem uma longa espera… Recursos e questionamentos se arrastam, e o pagamento que é bom, nada.
Em julho, foi aprovado no Senado e sancionado pelo Presidente Lula em uma visita a Corumbá, no Pantanal em Mato Grosso do Sul, o projeto que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, um importante passo no controle de biomassa, educação ambiental, prevenção e fiscalização. Mas e o que foi destruído? E a restauração do bioma? Quem paga essa conta? É preciso responsabilizar e punir efetivamente os culpados.
Até 22 de agosto, 2.031 milhões de hectares do bioma foram queimados, 13,46% da área total, de acordo com dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LASA-UFRJ). A Polícia Federal instaurou 20 inquéritos que apuram os culpados identificando os pontos de ignição dos incêndios pantaneiros. Será que esses inquéritos também vão virar cinzas?
Claudia Gaigher é Jornalista e escritora. Acompanha desde 1998 a saga dos indígenas no Centro Oeste do Brasil*
Publicado no Correio Brasiliense em 27 de agosto de 2024.
novembro 2020 | Desenvolvimento Sustentável
O conto varia de um lugar para o outro, mas a essência da história é a mesma: um espírito incandescente toma conta das matas e espanta aqueles que nelas querem atear fogo ou causar destruição. O Boitatá muda de forma, mas a mais comum é a de uma grande cobra feita de chamas com brilho azulado. Ele persegue aqueles que fazem mal à natureza, cegando-lhes. O primeiro registro escrito da lenda é do jesuíta José de Anchieta, em uma carta assinada por ele em 1560. O folclore se relaciona a um fenômeno natural explicado pela ciência: fogo-fátuo é uma chama azulada e efêmera produzida pela combustão espontânea de gás metano em pântanos ou lugares úmidos onde há muita concentração de matéria orgânica em decomposição.
Praticamente cinco séculos depois de padre Anchieta está difícil para o Boitatá vencer a concorrência. Hoje outros mitos tomam conta do Brasil. Há quem acredite que a Amazônia não está sendo desmatada e que o Pantanal não está em chamas. Numa cegueira seletiva, fingem não ver o encolhimento do Cerrado ou o desequilíbrio climático que afeta todo o planeta. Falando nele, há os que dizem ser plano. Nega-se o racismo estrutural enraizado em nossa história. E, diante das imagens de covas comunitárias, há até mesmo os que relativizam a gravidade da pandemia de Covid-19. É tanto negacionismo que a gente chega a questionar a própria existência.
Em Brasília, as dúvidas se aprofundam. Ainda mais quando o assunto é meio ambiente. Existe uma política pública para cuidar da natureza (ou seria lenda)? Em 2019, o Ministério do Meio Ambiente tinha à disposição mais de R$ 10 milhões para combate às mudanças climáticas, mas só 13% foram usados; e dos R$ 3 milhões que iriam para a conservação e o uso sustentável de nossa biodiversidade, apenas 14% se converteram em ações concretas. Os dados são do relatório anual da Controladoria-Geral da União.
O ano virou e as proporções se tornaram ainda menores, segundo aponta o Observatório do Clima, em levantamento feito a partir dos dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento. Nos primeiros oito meses de 2020, o ministério tinha à disposição cerca de R$ 26,5 milhões para ações de prevenção, mas só usou 0,4% do dinheiro disponível. Do montante de R$ 1,388 milhão que deveria ser usado para cuidar de nossa biodiversidade, 96,4% permaneceram intocados; e dos mais de R$ 6 milhões que deveriam ser utilizados em fomento a pesquisas relacionadas às mudanças climáticas, nem um único tostão foi investido. O dinheiro está lá, mas não se converte em ações práticas. Seria este o orçamento de Schrödinger?
A justificativa oficial foi que “o ministério alterou seu planejamento estratégico, sua estrutura e suas prioridades orçamentárias, com prioridade para recursos destinados aos programas de Qualidade Ambiental Urbana: resíduos sólidos, saneamento e qualidade do ar”. Se buscamos qualidade ambiental urbana acima de tudo, porque só 6% dos R$ 6,5 milhões disponíveis para a área foram investidos?
Outro que parece nunca ter existido é o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). Mas não é lenda. No início deste século, nossa voracidade em relação ao verde tinha chegado a níveis pantagruélicos. Em 2004, inacreditáveis 27.772 km² de floresta foram abaixo. O plano se concretizou e o Brasil conseguiu reduzir em 83% a devastação na região entre aquele ano e 2012. Isso só foi possível porque houve um esforço em conjunto da sociedade brasileira, agronegócio incluído.
Já se sabia naquela época e repetimos hoje: preservar a natureza não é gasto, é investimento. Só em outubro de 2020 foram destruídos 7.899 km² de Amazônia, 50% a mais que no mesmo mês do ano passado, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Pagaremos muito mais caro depois.
Se não há investimento, então o que se propõe como solução prática para controlar o fogo? Uma das propostas é aumentar o espaço de criação de gado nos limites das reservas naturais para “reduzir o acúmulo de massa orgânica”. É claro! É só transformar a floresta em pasto que não tem mais incêndio, dizem eles. Não é assim que funciona? Respondemos: Não, não é.
Vejamos o Pantanal como exemplo. Há dois pontos que mostram a falácia. O primeiro é que o rebanho bovino no Pantanal cresceu nos últimos anos. Ou seja, se o boi é bombeiro, ele não está fazendo bem o seu trabalho, porque o número de focos de incêndio também aumentou. O segundo ponto é a conclusão da perícia na Reserva Natural do Sesc Pantanal: a causa do incêndio foi dada como queima intencional de vegetação desmatada para criação de área de pasto para gado em uma fazenda na região que entrou para a área da reserva. Mais uma vez, a ciência derruba a lenda.
O boi-bombeiro o boitatá às avessas. Não afasta os homens que querem destruir a natureza, antes pelo contrário, ele mesmo traz consigo o desmatamento. Aonde chegaremos se levarmos mitos ao pé da letra?
#Pantanal #Amazônia #Desmatamento #Queimadas #MeioAmbiente #MudançasClimáticas #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta
Saiba mais:
G1 – Por que a teoria do ‘boi bombeiro’ no Pantanal, citada pela ministra da Agricultura, é mito
Estadão – Bolsonaro volta a defender o ‘boi-bombeiro’ para apagar fogo do Pantanal
Governo de Mato Grosso – Perícia constata que incêndio em reserva no Pantanal foi provocado por ação humana
O Globo – Governo gastou, em 2019, cerca de 70% a menos com ações de combate ao racismo em relação ao ano anterior
G1 – Ministério deixa de usar maior parte da verba para preservação ambiental, diz CGU
G1 – Ministério do Meio Ambiente não gastou nem 1% da verba para preservação, diz levantamento
Valor Econômico – Política ambiental, o que o orçamento mostra e promete
BBC Brasil – Ibama paralisa combate a incêndios alegando falta de caixa, mas 15% do orçamento não foi usado
El País – Dióxido de carbono na atmosfera baterá novo recorde em 2020 apesar da pandemia
Valor Econômico – UE dirá no G-20 que quer reforma “verde” na OMC
Folha de São Paulo – Brasil trava preparo do acordo de biodiversidade da ONU
G1 – Novo site do Ministério do Meio Ambiente não tem informações sobre áreas protegidas
O Globo – ‘Não esperamos nada de positivo do governo, mas jamais vamos desistir’, diz líder indígena brasileira que recebeu prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos
agosto 2020 | Desenvolvimento Sustentável
Uma única empresa de tecnologia americana, a Apple, vale US$ 2 trilhões (cerca de R$ 11 trilhões), um valor maior do que o PIB do Brasil – que não chega a US$ 1,9 trilhão. Mesmo que fosse possível desmatar toda a Amazônia para plantar soja, criar gado e extrair ouro, dificilmente deixaríamos de ser um país pobre. Isso na melhor das hipóteses, pois a ambição máxima do exportador de commodities é conseguir vender o almoço para pagar a janta. Por outro lado, a floresta nos oferece a oportunidade de produzir tecnologia de ponta para o novo modelo econômico que se desenha. Agora, imaginem se a direção da Apple tivesse percebido em 2019 um problema que poderia levar a empresa à beira da falência no ano seguinte e não tivesse feito nada? O governo brasileiro agiu assim em relação aos alertas de que a Amazônia deverá enfrentar em 2020 uma temporada de incêndios ainda mais dantesca do que a do ano passado. Na iniciativa privada, seria caso de demissão.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) avalia que o poder destrutivo das chamas aliado à penetração do novo coronavírus mata adentro pode resultar numa “catástrofe”. A instituição está realizando um estudo para avaliar os efeitos que o encontro da Covid-19 com as queimadas poderá causar na saúde da população local. Em 2019, cidades de Amapá, Pará, Maranhão e Mato Grosso tiveram o maior número de casos já registrados de doenças respiratórias. Segundo dados preliminares, morar em cidades próximas a incêndios florestais aumenta em 36% a possibilidade de a pessoa ser internada. “A exposição à fumaça fragiliza o sistema imunológico, a pessoa fica mais vulnerável às infecções em geral, como a pneumonia. O sistema imunológico fragilizado e com a Covid pode ser uma catástrofe”, disse o pesquisador Christovam Barcellos, um dos coordenadores da pesquisa. Não se trata apenas (sic) do meio ambiente, são mais vidas que serão perdidas.
O inevitável fogaréu é resultado direto das sucessivas quebras de recordes de desmatamento que o país vem batendo desde o início de 2019, causadas não só pelo descaso e por uma política ambiental primitiva, como também pelo mau uso do dinheiro público. Por exemplo: enquanto gastou-se migalhas com prevenção, o Ministério da Defesa acaba de pagar mais de R$ 145 milhões, aparentemente sem licitação, num satélite para monitorar o desmatamento na Amazônia. Este trabalho já é feito, com tecnologia e know-how superiores, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O órgão, criado em 1961, tem sido fonte constante de dor de cabeça para o governo, simplesmente por fazer o seu trabalho – assim como Ibama e ICMBio. Talvez por isso, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações tenha reduzido a zero o seu orçamento para pesquisa em 2021. Depois se o povo chamar o novo satélite de Caô I, não venham reclamar.
A salvação da Amazônia não virá do espaço, tampouco de operações pontuais com nomes escolhidos pelo pessoal do marketing. É preciso tratá-la de forma diferente. Em 2017, um incêndio monstruoso destruiu a região do Pedrógão Grande, em Portugal. Um pequeno sítio foi poupado das chamas, formando uma ilha verde cercada de cinzas e a Intervenção Divina não teve nada a ver com o ocorrido. O fogo parou nas castanheiras, nos carvalhos e nas oliveiras, árvores nativas de Portugal, que cercavam a propriedade. Elas formaram uma barreira natural, pois armazenam água no solo e têm copa volumosa, o que ajuda a baixar a temperatura substancialmente. Incêndios florestais têm sido cada vez mais comuns na Europa e pesquisadores da Universidade do Porto fizeram um estudo que defende o uso das chamadas “paisagens inteligentes” para controlar incêndios. No Brasil, temos os maiores especialistas do mundo nessa área: os povos originários.
Em 1975, quando o Inpe começou a fazer o monitoramento da ocupação da Amazônia, só 0,5% da floresta tinha sido desmatado. Em 1988, essa porcentagem subiu para 5,5% e hoje está em 20%. A história da ocupação humana na região data de 8 mil anos. Neste longo período, só uma parte ínfima da floresta foi abaixo, enquanto em pouco mais de 40 anos nós a reduzimos a 80% do seu tamanho original. A Amazônia desmatada é altamente inflamável, mas de pé é úmida, só queima se alguém tacar fogo. Incêndio na mata é crime. Os indígenas não vivem na floresta, fazem parte dela. Eles conhecem as propriedades de todas as árvores, sabem usar o manejo florestal para combater fogo. É um conhecimento milenar. No momento, a pandemia os obrigou a se recolherem, então pouco podem fazer. Mas depois que isso tudo passar, devemos ter juízo e lhes devolver a direção da Amazônia.
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julho 2020 | Desenvolvimento Sustentável
Ema não é de falar muito; na verdade só o macho abre o bico e, mesmo assim, exclusivamente para passar cantada na gente em época de acasalamento. Por isso até agora eu não tinha dado um pio. Mas não vou esconder a cabeça num buraco como a prima avestruz: sou emancipada – aqui em casa é meu companheiro quem toma conta dos filhotes – e arco com as consequências de meus atos. Biquei, biquei outra vez e bico de novo se for preciso. Já tínhamos recebido hóspedes inoportunos no Alvorada, mas nenhum tão declaradamente hostil à natureza. E ainda vem me oferecer agradinho? Isso me ofende. Quer minha simpatia? Mude de atitude. Não sou pra qualquer bico.
Nós, emas, somos a elegância em forma de bípede, as maiores, mais majestosas e modestas aves da América do Sul. Chegamos aqui quando era tudo mato e vivemos do Pampa à Caatinga. Mas enquanto eu desabafo e tiro onda, uma de nossas casas mais belas, o Pantanal, a maior planície alagada do planeta, arde em chamas como nunca. Entre 1º de janeiro e o último dia 28 foram detectadas 3.415 queimadas na região. É o maior número registrado desde 1998, quando o monitoramento começou a ser feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e 189% maior que o do mesmo período no ano passado. Mais de 300 mil hectares já pegaram fogo.
É vero que o Pantanal foi incluído, junto com a Amazônia, no decreto do governo federal que proibiu as queimadas por 120 dias. Mas logo nos primeiros 15 dias de julho, já com a moratória valendo, houve um aumento de 12% em relação ao mesmo período de 2019, em Mato Grosso. O governador do estado decretou situação de emergência ambiental. Os incêndios são criminosos, mas dados do Inpe mostram que o volume de chuvas no bioma foi metade do normal no período de janeiro a maio. E a vegetação seca faz o fogo se alastrar com mais facilidade. O engenheiro agrônomo e doutor em Geografia Física Felipe Dias, diretor executivo do Instituto SOS Pantanal, explica que os rios também não inundaram a região como costuma acontecer nesta época do ano: “Deveríamos estar no nível de cheia máxima, principalmente no Rio Paraguai. Agora, a área sem inundação está vulnerável a incêndios, especialmente diante da atual condição de baixa umidade do solo e do ar”. Segundo Dias, esta situação pode ser comum no futuro, já que o regime de chuvas foi completamente zoado pelas mudanças climáticas.
Amazônia (com 60,93%), Cerrado (30,95%) e Pantanal (8,12%) concentram o maior número de queimadas no primeiro semestre. Isso não acontece por acaso: os três biomas estão intimamente ligados. É a Amazônia que rega o Cerrado, por meio das nuvens que se formam na floresta e que são carregadas para lá pelo vento, os chamados “rios voadores”; e é o Cerrado, a “caixa d’água do Brasil”, que inunda o Pantanal. As emas não vivem na Amazônia – preferimos desfilar nossa graça por planícies de vegetação baixa – mas, assim como acontece com todo mundo, somos afetadas pelo que acontece lá. O país vem batendo sucessivos recordes de desmatamento desde 2019. Piscou e lá se foi um campo de futebol abaixo. Em carta aberta divulgada no dia 27, mais de 600 servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirmam que o desmatamento neste ano na Amazônia pode ser 28% maior que no ano anterior – e que na comparação com 2018, o aumento é de 72%. Ou seja, a situação tende a piorar. Vou abrir o bico aqui de novo: a missiva foi dirigida ao vice-presidente Hamilton Mourão, que ora preside o ex-extinto Conselho Nacional da Amazônia. Já sabem de quem cobrar.
Ainda não é possível afirmar com certeza a origem deste coronavírus, mas é consenso que o desequilíbrio climático, a destruição do meio ambiente e o tráfico de animais silvestres são a porta de entrada para pandemias – e a Covid-19 tem servido de base para novas pesquisas nesta área. Acusado sem provas, o morcego chinês estava na dele, vocês é que foram chegando cada vez mais perto de sua casa – assim como o presidente veio parar na minha. “A relação entre desmatamento e tráfico de animais silvestres e o surgimento de doenças emergentes é muito bem estabelecida. Mesmo assim, ações ambientais estão essencialmente fora da agenda de prevenção de pandemias”, disse Mariana Vale, professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Até agora nenhuma ema contraiu a Covid-19, mas vou dar minha bicada: Mariana participou de um estudo recém-publicado na revista “Science”, feito por cientistas de Brasil, Quênia, China e Estados Unidos. Ele concluiu que combater o contrabando de animais e frear a degradação de florestas tropicais sairia muito mais barato que combater doenças, uma economia entre US$ 22 bilhões e US$ 31 bilhões por ano. O estudo compara este valor com os US$ 2,6 trilhões perdidos até agora para a Covid-19, além das mais de 600 mil vidas humanas.
O presidente outro dia veio me oferecer cloroquina – sorte dele que eu estava bem-humorada – e, segundo foi divulgado em entrevista coletiva do Ministério da Saúde no dia 24, o governo federal distribuiu 100.500 comprimidos do medicamento para nossos irmãos indígenas. Como a transparência nas contas públicas não é o forte deste governo, sabe-se lá quanto essa medida inadequada custou aos cofres públicos; mas é quase certo que o remédio não tem nenhuma eficácia contra a doença além de provocar graves efeitos colaterais. Que tal prevenir em vez de remediar? Bom, já disse tudo o que estava entalado aqui no meu gogó. Depois não adianta gemer no tronco do juremá.
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julho 2020 | Desenvolvimento Sustentável
O filme do Brasil está carbonizado no exterior e não será fácil recuperar a imagem de outrora. Já tínhamos um histórico acumulado e o artigo recém-publicado na revista “Science”, que afirma que 20% da soja e 17% da carne que exportamos para os europeus vêm de áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia e no Cerrado, nos queimou mais ainda. O avanço da destruição da floresta e, por consequência, das sanções econômicas, não será detido com palavras. “Queremos ver dados sobre queda do desmatamento”, disse o embaixador da União Europeia (UE) no Brasil, Ignacio Ibáñez. “Acho que as ações que os investidores e atores internacionais estão fazendo estão começando a dar resultado nas declarações. Mas queremos ver que essa vontade vá se converter em dados mais positivos do que os tivemos até agora, porque até agora os dados não são positivos”, continuou.
A chegada do coronavírus deixou ainda mais claro que será preciso um esforço global para deter o avanço das mudanças climáticas. Os boletins do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) são o termômetro que mede nosso empenho no combate à febre que acomete o planeta. Com o Ministério do Meio Ambiente desacreditado, a solução encontrada foi recriar o Conselho Nacional da Amazônia – extinto por este mesmo governo – e dar ao vice-presidente Hamilton Mourão a tarefa de convencer a comunidade internacional de que vamos fazer o dever de casa. Mas de pouco adianta anunciar que as Forças Armadas vão ficar na Amazônia até 2022 e, ao mesmo tempo, contrariar os protocolos de segurança e permitir que militares levem suas esposas a aldeias indígenas em plena pandemia. O governo proibiu as queimadas na Amazônia por 120 dias, mas criminosos não seguem leis. O próprio Mourão admitiu que o Ibama está destroçado e, como o Exército não é especialista no ramo, a catástrofe ainda está anunciada.
A publicação da “Science” deixou os europeus indignados com a possibilidade de serem cúmplices de crime ambiental – e os maus agricultores, revoltados por serem pegos em flagrante. O artigo “As maçãs podres do agronegócio brasileiro” foi escrito pelo cientista brasileiro Raoni Rajão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com 12 pesquisadores de Brasil, Alemanha e Estados Unidos. A pesquisa usa dados da safra 2016 e 2017 e comparou informações de 815 mil propriedades rurais. O texto não só dimensiona o problema, mas também sugere soluções: como o número de infratores é relativamente pequeno, então bastaria focar a fiscalização neles. “O resultado do artigo mostra não só o problema, mas identifica quais são aqueles que estão trabalhando certo e os que estão trabalhando errado. O estudo mostra que o governo pode atuar de forma precisa para evitar que 100% do nosso agronegócio seja punido por conta de um número limitado de produtores que atuam de forma ilegal”, explicou Rajão. Caso use dessa informação para combater o desmatamento, o governo ainda pode transformar prejuízo inevitável em lucro e sair por cima.
A crise do pós-pandemia não vai ser boa para ninguém. Tanto que na quarta-feira (22/7), executivos dos três principais bancos brasileiros sugeriram a Mourão medidas para conter o desmatamento da Amazônia. Entre os dez pontos da proposta estão estimular monoculturas sustentáveis, como cacau, açaí e castanha, por meio de linhas de financiamento especiais, e atrair investimentos que incentivem a bioeconomia. “É imprescindível que este modelo seja sustentável e impulsionado por investimentos públicos e privado que construa uma economia de baixas emissões, inclusive e direcionado para o futuro”, diz um artigo assinado pelos presidentes das empresas.
E nós, cidadãos, o que podemos fazer? Também cabe à população limpar a barra do Brasil e mostrar que o país não se limita a seus governantes, que são transitórios. “Você sabe de onde vem sua comida?”, pergunta o Greenpeace em sua nova campanha. Nela, uma série de vídeos, apresentados pela atriz Alice Braga e produzidos por Bianca Comparato, mostram como funciona o sistema da agricultura industrial; a relação entre o que a gente come, a crise climática e a destruição de florestas, além de, assim como o artigo da “Science”, sugerir formas de aperfeiçoar as cadeias produtivas de alimento. A informação é a arma mais poderosa do cidadão.
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