Guardiões do futuro

Guardiões do futuro

Os brasileiros costumam reverenciar com entusiasmo os japoneses, apesar de todos os contrastes culturais – ou por causa deles. Admiramos– quando não adotamos –suas tradições seculares e a forma como elas convivem harmoniosamente com a mais moderna tecnologia. Suas seriedade, disciplina e capacidade de inovação: se o Japão diz que vai fazer Olimpíada este ano, ninguém duvida; e basta o produto ser made in Japan para merecer confiança. Essa consideração é mútua, não à toa o Brasil tem a maior comunidade japonesa fora do Japão. Mas nem sempre foi assim: o brasileiro já achou que comer peixe cru era inconcebível e caçoou do jeito encabulado deles. Felizmente, a informação tem o poder de transformar preconceito em admiração. O mesmo está acontecendo em relação aos povos indígenas, por motivos parecidos. E eles ainda reservam muitas revelações. 

O Dia do Índio é uma ótima ocasião para relembrar essa construção de décadas. O movimento indígena brasileiro começa a se organizar em meados dos anos 1970, pressionado pela política expansionista agressiva da ditadura. Foi um ataque em massa na única região ainda praticamente intocada do território brasileiro e do mundo, a Amazônia. Essa mobilização ganha maturidade durante a Constituinte de 1988. Eles se fizeram ouvir sem intermediários, por meio de uma emenda popular assinada pela União das Nações Indígenas. O discurso de Ailton Krenak no Congresso entrou para a História, assim como nomes como Mário Juruna (cacique Xavante e o primeiro deputado federal indígena), Álvaro Tucano, Ângelo Kretã, Marçal de Souza, Raoni Mentuktire, Paulinho Paiakan e Domingos Veríssimo Terena. Os povos indígenas não só asseguraram o direito às suas terras, como à cidadania plena. 

Não é novidade para ninguém que esses direitos conquistados precisem ser defendidos até hoje. Isso só fortaleceu o movimento, que hoje mistura a experiência dos pioneiros com o conhecimento adquirido pelos mais jovens nas universidades. Hoje, os indígenas têm voz em importantes fóruns mundiais, como a ONU e a OEA, e a primeira mulher a representá-los na Câmara Federal, a deputada Joênia Wapichana (Rede). Estas três décadas também foram o período de criação, crescimento e amadurecimento da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), fundada no dia 19 de abril de 1989. Seu nascimento é resultado do processo de luta política dos povos indígenas pelo reconhecimento e exercício de seus direitos, em um cenário de transformações sociais e políticas ocorridas no Brasil após a assinatura da Constituição Cidadã de 1988. 

A Coiab é a maior organização indígena regional do Brasil. Ela é formada pela união de associações locais, federações regionais, organizações de mulheres, professores e estudantes indígenas. São 64 regiões de base espalhadas pelos nove estados da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Mas, espera! Ela é a maior, sim, mas é só uma das sete organizações regionais que compõem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ainda tem a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), o Conselho do Povo Terena, a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), a Grande Assembléia do povo Guarani (AtyGuasu), e a Comissão Guarani Yvyrupa. Ufa! Tanta gente organizada e coordenada, que cobre aldeias de todos os estados do país e tem desempenhado um papel fundamental durante a pandemia da Covid-19 – alimentando milhares de famílias, reforçando barreiras sanitárias e distribuindo equipamentos de segurança para profissionais de saúde. 

A Apib foi criada em 2005, no segundo Acampamento Terra Livre (ATL). No ano passado, ganhou o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, concedido pelo Instituto de Estudos Políticos de Washington, e teve sua representatividade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Até 2020, o ATL costumava ser literalmente um grande acampamento nos gramados de Brasília, onde milhares de lideranças de todo o país – e até do exterior se reuniam uma vez ao ano. A pandemia fez o evento migrar para plataformas virtuais, mas os povos permanecem unidos, agora através das telas. E a programação desse ano está intensa, viu? Está durando mês inteiro! 

Os indígenas não precisaram que um teórico lhes dissesse que culturas são dinâmicas. Eles assimilam conhecimento sem nenhum preconceito e têm usado a tecnologia moderna a seu favor. A gente só teria a ganhar se pensasse assim também. O Dia do Índio também é um bom momento para frisar que a sabedoria deles sempre foi de vanguarda – e, hoje, mais necessária do que nunca.“Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”, canta Caetano Veloso em “Um índio”. Hoje, a ciência, a medicina e até o design buscam inspiração na natureza. Não existe tecnologia mais avançada. O segredo dos povos indígenas é se reconhecerem parte desse grande mecanismo.  

Em 2018, arqueólogos do Brasil e do Reino Unido descobriram vestígios de uma civilização amazônica. Em suas cidadelas, construídas séculos antes da chegada dos europeus, viviam até 1 milhão de pessoas. Restaram poucos resquícios, justamente porque era uma cultura biodegradável. Somente 3% dos ecossistemas do mundo permanecem intactos, segundo um estudo recém-divulgado da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Entre as áreas que conservam a biodiversidade há 500 anos, boa parte está em terras indígenas. Num mundo à beira do colapso, ninguém tem mais know-how em sobrevivência do que eles. Os povos indígenas não só mantiveram praticamente intacta a maior floresta tropical do mundo por milhares de anos, como ajudaram a cultivá-la, e resistiram a 500 anos de perseguições. Os indígenas guardam o segredo de nossa sobrevivência. 

#povosindígenas #povosoriginários #abrilindígena #DiadaResistênciaIndígena #apib #coiab #amazônia #demarcaçãojá #EmNomeDeQuê #foragarimpo #marcotemporal

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A programação do ATL 2021

Só 2% a 3% do planeta permanece ecologicamente intacto

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Um estudo de 2018 revelou detalhes, até então desconhecidos, sobre culturas complexas que foram ofuscadas na História

Pelo direito de existir

Pelo direito de existir

“Decidimos não morrer”. Esse pacto silencioso, firmado pelos povos originários do Brasil há mais de 500 anos, ecoa forte com a chegada deste Abril Indígena, no ápice da pandemia. É um desafio e tanto, já que o governo tem se revelado o principal vetor do novo coronavírus – opinião compartilhada pelos jornais “Washington Post”, num editorial contundente, e o inglês “The Guardian” – e mais uma vez o Acampamento Terra Livre (ATL), que está chegando à sua 17ª edição, será realizado via internet.

Além da Covid-19, eles têm outras batalhas pela frente. Os ataques também vêm de invasores que levam a doença e a destruição às suas terras – com indisfarçável cumplicidade do Executivo –, da bancada ruralista do Congresso, do lobby das mineradoras. Não à toa, o tema escolhido pelo ATL 2021, que acontece até o próximo dia 30, foi “Nossa luta ainda é pela vida. Não é apenas um vírus”. E, como fica cada dia mais claro, essa luta não é só deles.

Já imaginaram se o SUS começasse a transmitir doenças ao invés de vacinar as pessoas? Pois é o que está acontecendo na Fundação Nacional do Índio (Funai). Criada em 1967 com o propósito de proteger e promover os direitos dos povos indígenas, a instituição vem servindo aos interesses de seus adversários. Logo em janeiro, sua diretoria colegiada publicou uma resolução estabelecendo novos critérios para a definição de identidade indígena – algo que nem a ditadura ousou fazer. Essas normas batem de frente com a Constituição, o Estatuto do Índio (decretado em 1973) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. As três instâncias reconhecem a autodeclaração como critério único. É fogo amigo que se chama.

Em fevereiro, a fundação se juntou ao Ibama, órgão que deveria zelar pela preservação do meio ambiente, para publicar uma instrução normativa que permitiria a exploração agrícola em territórios indígenas – inclusive para não indígenas. A medida é igualmente inconstitucional e escancarou seus desvios de função. Em 24 de março, o próprio Bolsonaro participou de uma ação típica da Funai de hoje. Ele se reuniu com o presidente da fundação, Marcelo Xavier, que é delegado da Polícia Federal, e com um madeireiro de nome João Gesse para aliciar lideranças Kayapó do sul do Pará.

O encontro não constou na agenda oficial da Presidência da República. Mas o que se sabe dele, a partir de relatos dos próprios indígenas e de uma gravação que vazou, é estarrecedor. Bolsonaro incitou os Kayapó a brigarem pela abertura de suas terras à exploração mineral e agropecuária e Xavier aconselhou Gesse a processar uma associação indígena contrária à abertura de seu território ao garimpo. Em fevereiro do ano passado, Bolsonaro mandou para o Congresso um projeto de lei que abre as terras indígenas para a atividade; no início de 2021, com o país em meio à catástrofe humanitária em que vivemos, o governo definiu a pauta como prioritária. E não mediu esforços para eleger os presidentes da Câmara Federal e do Senado para que ela entre em votação o quanto antes. Mesmo proibido, o garimpo abriu novas frentes e pôs abaixo 330 hectares de floresta no território dos Kayapó em 2019, o dobro do ano anterior.

Engana-se, porém, quem acredita que os indígenas estão esperando soluções caírem do céu enquanto são obrigados a se manter em isolamento social. O ATL virtual do ano passado os deixou ainda mais conectados e ativos; tanto que a duração do evento passou de uma semana, quando presencial, para um mês, agora que é online. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vem fortalecendo e aprimorando suas ações e estratégias. A entidade, que teve sua representatividade oficialmente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, quando este acatou e deu ganho de causa à sua Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ajuizada contra do governo federal, criou o plano Emergência Indígena. A entidade está fortalecendo barreiras sanitárias em centenas de territórios, vem alimentando mais de 10 mil famílias e distribuiu mais de 300 mil equipamentos de proteção a equipes de saúde indígena em todo o país – mais uma obrigação negligenciada pelo governo.

O coronavírus encontrou na destruição da natureza, promovida pelo homem, o ambiente ideal para proliferar. No Brasil, ainda tem o governo como aliado. A cada dia batemos recordes de mortos. Acompanhar o noticiário é para os fortes. Quando seguiremos o exemplo dos povos indígenas e decidiremos que não vamos morrer também?

#AbrilIndigena #Apib #PovosIndigenas #Kayapó #ATL #Covid #Coronavirus #Amazônia

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O passo do jabuti

O passo do jabuti

Está difícil, né? A gente sabe. Para todo lado que se olha parecem pipocar mil notícias ruins e, justo quando achávamos que estaria passando, o Brasil entra no pior momento da pandemia. Às vezes dá vontade de correr para as montanhas. Mas, espera. Dá uma parada rápida no home office, respira fundo, coloca uma música boa e vem que esse texto é sobre renovar as energias e fazer uma reflexão.

Você sabia que temos um exemplo super positivo de organização, planejamento e estratégia contra o coronavírus? Isso mesmo, aqui no Brasil! Difícil de acreditar, né? Mas não é fakenews. No interior do Mato Grosso, o povo Kuikuro se organizou para fazer isolamento com auxílio de médicos durante o último ano e agora eles estão finalmente sendo vacinados. A comunidade tem 600 pessoas, todas sobreviveram à pandemia e agora estão imunizadas.

Você pode até falar: “Ai, gotas, o que eu tenho a ver com um povo indígena do interior do Mato Grosso?”. Por isso, te convidamos a olhar mais de perto. Você conhece os Kuikuro? Então nos permita contar um pouquinho sobre eles. Pesquisas arqueológicas encontraram registros de que este povo vive desde os anos 950 DC na região que hoje se chama Mato Grosso. A jornada dos Kuikuro vem de longe. Ao longo desses séculos, eles enfrentaram muitos problemas e a Covid-19 não é o primeiro vírus a cruzar o caminho deles.

Mil anos depois dos primeiros registros, nos anos de 1950, os Kuikuro enfrentaram uma epidemia de sarampo que dizimou metade de sua população. Foi tão catastrófico que eles precisaram abandonar uma aldeia. Seu nome era Lahatuá ótomo, e até hoje alguns anciãos ainda lembram deste triste capítulo em sua história. Mas, como prometido, esse texto é para falar de coisa boa. Isso tudo é para explicar que os Kuikuro sobreviveram ao sarampo. Sabe como? Com organização, coordenação, trabalho em equipe e… acreditando na ciência.

Na década de 1960 foram feitas campanhas de vacinação e o povo não apenas sobreviveu, como se fortaleceu e cresceu. Eles começaram a reocupar seus territórios tradicionais, que de fato nunca tinham sido abandonados, já que eram continuamente visitados e utilizados por conterem importância histórica e espiritual. E, já nos anos 1980, o crescimento populacional permitiu o surgimento de novas aldeias.

Quarenta anos depois, um novo vírus aparece. Mas agora os Kuikuro já têm todo o conhecimento que os anciãos traziam da experiência de Lahatuá ótomo. Em comum acordo entre todos, eles se isolaram e construíram uma casa para manter o distanciamento daqueles que apresentassem os sintomas. Também fizeram contato com especialistas em saúde indígena, compraram alimentos, álcool em gel, máscaras, cilindros de oxigênio e remédios para febre. Feito o estoque, eles se fecharam em suas aldeias até a chegada da vacina. Ela chegou este mês. Os Kuikuro receberam a segunda dose da vacina e a liderança Yanama Kuikuro deu o recado no Jornal Nacional: “O povo kuikuro não acredita em fake news. Acreditamos na ciência e tomamos a vacina”. E o técnico de enfermagem da aldeia, Kauti Kuikuro, explicou o segredo do sucesso: “Graças a nossa organização ninguém saiu para cidade, ninguém precisou fazer oxigênio, ninguém foi a óbito também”.

Ser Kuikuro — ou Kayapó, ou Guajajara, ou quilombola — passa por um conceito muito importante: a vida em comunidade, em busca do bem comum. Viver numa comunidade tradicional envolve essa noção de que as decisões são pelo bem do todo e que todos têm sua parcela de contribuição. Talvez seja difícil para uma pessoa que vive na grande cidade absorver completamente essa ideia, ainda mais quando estamos distantes fisicamente uns dos outros. Mas esse é um ensinamento muito importante que as comunidades tradicionais passam: para alcançar o bem comum é preciso um esforço conjunto e coordenado de todos.

E é porque tanto indígenas quanto quilombolas entendem que é preciso o todo, que eles foram ao Supremo Tribunal Federal no ano passado. Não adianta apenas as aldeias e os quilombos fazerem sua parte, os governos precisam fazer a parte deles também. E assim, as lideranças nacionais dessas duas comunidades foram ao Supremo para cobrar do governo federal um plano, o que gerou uma ação para indígenas e outra para quilombolas. Ora, os caciques conseguiram traçar e executar um plano em suas aldeias. Por que um presidente – e toda a equipe de inteligência que ele dispõe – não conseguiria?

Esse tipo de ação que foi aberta se chama Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O nome é complexo e o processo também. Preceitos fundamentais são questões intrinsecamente conectadas aos valores mais profundos da sociedade, são como os alicerces da Constituição. Mexer em alicerces é algo muito difícil, delicado, que deve ser feito com paciência e atenção para que as coisas não desmoronem. Mas vamos combinar que, para quem veio lá de 950 dC e já enfrentou outras pandemias, a visão de tempo não é a mesma do imediatismo cibernético da maioria das pessoas.

“A gente é igual ao passo do jabuti: observando, vendo nossa estratégia para poder avançar”, diz a liderança Munduruku Alessandra Korap, primeira mulher brasileira a receber o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, no ano passado, quando também recebeu o Taz Panter Preis, premiação alemã para defensores do meio ambiente.

Veja como realmente parecemos falar línguas diferentes num mesmo país: no dialeto do Congresso Nacional, jabuti é quando um parlamentar tenta inserir no texto de um projeto de lei um trecho completamente alheio, desconfigurando a lei. Mas nos idiomas milenares dos povos indígenas, jabuti significa persistência, e muitas vezes esse animal é retratado na espiritualidade como símbolo de astúcia, sabedoria. Se fosse uma entidade das religiões de matriz africana, muito respeitadas nos quilombos, ele seria um preto velho. Como canta o ponto: “Preto velho pisa no caminho devagar. Olha que o caminho tem espinho”.

Frente a situações muito difíceis, o pânico, a ansiedade e o medo têm o poder de nos paralisar momentaneamente. Ficamos chocados e queremos correr para as montanhas. Mas aqueles que há séculos mantêm a longa caminhada sabem o verdadeiro remédio: perseverança. É um pé depois do outro. É o passo do jabuti.

#PovosTradicionais #Indígenas #Quilombolas #Fakenews #Covid19 #Coronavírus

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Nossos saberes ao vento

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A Amazônia começou a ser povoada há cerca de 12 mil anos. Não é possível afirmar exatamente quando os Juma se instalaram na Bacia do Rio Purus e deram início à sua história; infelizmente, porém, testemunhamos a data que marcou o seu fim: 17 de fevereiro de 2021. Nesse dia, Aruká, o último homem de seu povo, foi ao encontro de seus ancestrais. Com ele se perdeu um conhecimento irrecuperável. Agoniza mais uma cultura, que não significa somente artes, tradições e costumes, mas também ciências, como a medicina tradicional. Oficialmente, a causa mortis foi a Covid-19; sabemos, entretanto, que Aruká foi vítima da negligência do governo.

Havia entre 12 e 15 mil Juma quando houve o primeiro contato com o autodenominado homem civilizado, no século XVIII. Desde então, eles vinham sendo paulatinamente encurralados em seu território e exterminados. Na década de 1960 tinham sobrado algumas dezenas deles; em 2002, só Aruká, três filhas e uma neta. Ele próprio foi um dos sete sobreviventes do último massacre de seu povo, em 1964, às margens do rio Assuã, no sul do Estado do Amazonas. Comerciantes de castanha da região mataram cerca de 60 pessoas, com requintes de crueldade, inclusive crianças. Os assassinos nunca foram incomodados pela Justiça.

Por terem sido reduzidos a uma família de apenas cinco pessoas, os Juma foram incluídos no grupo de povos de recente contato. Conforme determinou o Supremo Tribunal Federal (STF), deveriam receber atenção especial do governo durante a pandemia. Não foi o que aconteceu. Em setembro do ano passado, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra o Executivo, para que este cumprisse o seu dever constitucional de proteger os povos tradicionais. O ministro Roberto Barroso prescreveu medidas de urgência e ordenou a elaboração de um projeto detalhado. O Plano Geral de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros já teve três versões rejeitadas pelo ministro. Apib, Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Fundação Oswaldo Cruz já deram seu parecer contrário à quarta, recém-proposta.

Até o dia 22 deste mês, de acordo com a Apib, 970 indígenas tinham morrido e havia 49.060 contaminados pelo coronavírus; segundo dados do próprio governo, menos de 30% deles receberam vacina. A aldeia onde vivia Aruká fica no coração da floresta. Como a doença chegou lá? O governo não instalou as barreiras sanitárias e de contenção determinadas pelo STF, deixando o caminho livre para invasores. Os descendentes de Aruká hoje dividem seu território, demarcado em 1992 e homologado em 2005, com indígenas Uru-eu-wau-wau. O que não é incomum; a Raposa Serra do Sol, por exemplo, abriga os povos Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana. E como se não bastasse a omissão do poder público, ainda trataram Aruká com o coquetel de remédios indicado pelo Ministério da Saúde e não recomendado pela Organização Mundial da Saúde e pela Anvisa – incluindo a ivermectina, considerada ineficaz pelo próprio fabricante.

Sabemos que a situação da população em geral também é dramática, mas hoje há povos ainda mais vulneráveis que os Juma, alguns fadados à extinção. Dos Piripkura, restaram somente dois homens; dos Kanoê, sobraram três pessoas; dos Avá-canoeiro, cinco; e dos Akuntsu, seis. Segundo o Censo Indígena 2010 do IBGE, há mais de 30 povos com menos de 50 indivíduos. Hoje, é praticamente ponto pacífico que a biodiversidade é a maior riqueza do país. Mas temos outro tesouro tão valioso quanto: nossa diversidade cultural. É ela que faz com que boa parte do mundo ainda nos veja como sinônimo de esperança. Em nome que abrir mão dessa preciosidade?

#PovosIndígenas #Covid19 #Juma #STF #IBGE #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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Desembarque do trem fantasma

Desembarque do trem fantasma

Quer notícia ambiental boa em 2020? Vai pra Tasmânia! A ilha australiana hoje é 100% movida a energia renovável e os tasmanianos realizaram o feito dois anos antes do previsto. Dá até uma certa inveja, depois de um ano que, para nós, brasileiros, foi como dar uma volta num trem fantasma. Na primeira curva, descaso público com o coronavírus; em seguida, Pantanal reduzido a cinzas; logo adiante, 800 famílias quilombolas ameaçadas de despejo em plena pandemia no Maranhão; daí para frente, recordes de desmatamento e de emissões de gases do efeito estufa em zigue-zague até o grand finale: a exclusão do Brasil da Cúpula da Ambição Climática da ONU. Deu para ouvir daí a gargalhada assustadora de filme de terror?

São raros os anos como este em que todos têm, pelo menos, uma história triste para contar. Os povos originários são um exemplo. Eles viram a invasão às suas terras aumentar 135% e a Covid-19 já lhes tomou quase 900 vidas. Entre elas, as de lideranças históricas como Nelson Rikbaktsa, Dionito Macuxi, Amâncio Munduruku, Zé Carlos Arara e Aritana Yawalapiti.

Porém, apesar de doído, 2020 trouxe também conquistas importantes. A vitória de maior destaque aconteceu em 5 de agosto, quando o Supremo Tribunal Federal acatou, por unanimidade, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A medida solicitava à mais alta corte do país que determinasse o cumprimento por parte do governo federal de um dever constitucional: cuidar dos indígenas durante a pandemia. Sim, foi preciso pedir – caso você não tenha acreditado.

Como num jogo de futebol em que o placar é menos relevante do que o entrosamento do time, o mais importante neste caso não foi o resultado em si, mas o reconhecimento oficial da representatividade da Apib perante o Estado. “Durante muito tempo, os povos indígenas não foram tidos como sujeitos de direitos, não podiam falar por si só, não podiam acessar o judiciário em nome próprio; sempre tinham que depender de alguém. Então, isto tem um significado muito grande na superação da tutela, na superação da colonialidade do direito e também na reafirmação desse sujeito de direito que são os povos indígenas”, explica Eloy Terena, assessor jurídico da Apib. E os feitos da entidade não pararam por aí.

Em um caso único no mundo, a articulação está contando os casos de mortes e contaminações entre indígenas pela Covid-19. Afinal, a doença não é (nem nunca foi) uma gripezinha. Tanto trabalho tem resultado em um reconhecimento cada vez maior, não só dentro – conforme mostra a decisão do STF – como fora do Brasil. Em outubro, a Apib ganhou o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, do Instituto de Estudos Políticos de Washington, que existe há 44 anos. O que mais pesou na escolha foi outro gol de placa: a Jornada Sangue Indígena – Nenhuma Gota a Mais, campanha que percorreu 12 países europeus em 2019, denunciando violações de direitos cometidas pelo governo ou com seu incentivo.

É um problema de 500 anos, que os indígenas denunciam cada vez mais e melhor, e que todos nós precisamos resolver. “Nossa luta, por extensão, é por todas as pessoas que vivem neste planeta durante este tempo de crise climática”, disse Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, em agradecimento pela honraria concedida à entidade. Este ano, Sonia também levou sozinha o Prêmio Alceu Amoroso Lima de Direitos Humanos, concedido pela Universidade Cândido Mendes.

Outra que tem sido ouvida com muita atenção por esse mundão afora é Alessandra Korap Munduruku. Ela levou o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, que existe há 37 anos. Seguindo a máxima do ex-presidente americano que dá nome a homenagem, ela não se perguntou o que o Brasil podia fazer por ela, mas sim o que ela podia fazer pelo Brasil. “Como liderança, Alessandra defende os direitos indígenas, principalmente na luta pela demarcação dos territórios indígenas e contra grandes projetos que afetam terras indígenas e territórios tradicionais na região do Tapajós”, diz a justificativa da premiação. Nós, da Gota, ficamos muito felizes, já que Alessandra foi uma das inspirações para campanha “Em Nome de Quê?”, iniciativa que reuniu indígenas e demais brasileiros na luta pelo meio ambiente.

É claro que nem tudo são prêmios – ou flores, se preferir. Enquanto o resto do mundo entende perfeitamente o recado dos povos tradicionais, o atual mandatário da nação prefere ignorá-lo. É um comportamento menos parecido com o da ema, que o renegou no Alvorada, e mais similar ao de outra ave, o avestruz. Nada presidencial, esta conduta pode gerar consequências — como, aliás, já aconteceu. Este mês, a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia deu o seu O.K. para uma investigação inicial contra Bolsonaro por denúncias de violações contra o meio ambiente e os indígenas brasileiros. Nunca um presidente brasileiro tinha chegado a este estágio. E a primeira vez, como dizem por aí, a gente nunca esquece.

Brincadeiras à parte, é certo que 2020 será menos lembrado pelas coisas boas do que pelas péssimas lembranças que deixa. Mas nem tudo que aconteceu nos últimos 12 meses precisa ir direto para a lata de lixo. Veja, por exemplo, o caso do nosso guru Ailton Krenak, escolhido em setembro “intelectual do ano” pelo prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores. Com a honraria, ele se junta a nomes como Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda e Dom Paulo Evaristo Arns. Todos pensadores com uma ideia de Brasil muito diferente das que temos hoje e que não devemos desistir de tirar do papel.

Com Krenak, a sabedoria dos povos originários está chegando a muito mais gente. São pessoas que têm entrado em contato com valores importantes, como a preservação do meio ambiente. “A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”, diz o escritor. Por sorte, há sempre uma nova história a ser contada e cada ano novo é uma oportunidade para recomeçarmos. Que, em 2021, em vez de um filme de terror, escrevamos uma trama repleta de heróis, transformações e com final feliz. Para nós e para o planeta.

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