janeiro 2023 | Mudanças Climáticas, Povos Tradicionais
Eduardo Souza Lima
Jornalista e articulista
Maria Paula Fernandes
Jornalista e diretora da Uma Gota No Oceano
Bastou a Terra voltar a ser redonda para o mundo dar voltas. Lula e Raoni, que subiram a rampa do Planalto de braços dados, estavam em lados opostos em 2011, quando a gente começou a testemunhar essa história: o primeiro, como fiador da construção de Belo Monte, enquanto o segundo era uma das vozes mais ativas contra aquela monstruosidade. Coincidência ou não, as duas palavras que caracterizaram o movimento contra a usina, união e reconstrução, viraram mote do governo; e um conceito nascido na floresta, o socioambientalismo, foi adotado como inspiração.
União e reconstrução: milhares de cidadãos brasileiros que viviam às margens do Rio Xingu, um dos mais importantes afluentes do Amazonas, tiveram que refazer suas vidas por causa de Belo Monte, no Pará. A hidrelétrica não só tornou mais miserável as vidas dos povos indígenas que moram na região da Grande Volta, como as de ribeirinhos, extrativistas, quilombolas e até mesmo da população urbana da maior cidade local, Altamira. Unidos, os movimentos sociais se fortaleceram e acabaram se tornando determinantes na oposição mais eficaz contra o último governo, que já foi tarde e deixou muito estrago.
Que a usina, como ferida aberta na floresta, sirva de advertência para evitar novos erros; mas, passados mais de 10 anos, existem demandas mais urgentes. A devastação promovida na Amazônia nos últimos quatro anos é motivo mais que nobre para rever pensamentos e promover reconciliações. A paz é elemento fundamental para uma reconstrução sólida. “Eu decidi participar para mostrar para todo mundo que agora não é mais tempo de ódio”, disse Raoni sobre sua presença na cerimônia de posse. É uma causa acima de diferenças, mesmo que justificáveis. Hoje, os povos da floresta também governam.
“Ninguém conhece melhor nossas florestas nem é mais capaz de defendê-las do que os que estavam aqui desde tempos imemoriais. Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental”, reconheceu Lula em seu discurso de posse no Congresso Nacional, ao anunciar a criação do tão esperado Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Quem assume a pasta é ex-coordenadora executiva da Apib, candidata à vice-Presidência da República em 2018 e deputada federal recém-eleita Sonia Bone Guajajara. Guerreira de metro e meio que se agiganta diante do maior galalau, Sonia Guajajara foi uma voz fundamental para tornar a causa indígena brasileira conhecida em todo o mundo. Não à toa, foi eleita uma das cem pessoas mais influentes de 2022 pela revista “Time”.
A Funai agora se chama Fundação Nacional dos Povos Indígenas (e não mais “do Índio”) e foi vinculada ao MPI. Cabe à instituição demarcar territórios e Joênia Wapichana será, mais uma vez, pioneira, ao se tornar não só a primeira indígena, como também a primeira mulher a ocupar sua presidência. Ela também foi a primeira advogada indígena a exercer a profissão no Brasil e a primeira a ocupar uma cadeira na Câmara Federal. Mestre pela Universidade do Arizona (EUA), Joênia fez a defesa oral do caso da demarcação da Serra Raposa do Sol frente ao STF, um marco na luta pelos direitos dos povos originários.
Já o conceito de socioambientalismo nasceu a partir de ações de Chico Mendes (1944-1988). O Patrono Nacional do Meio Ambiente percebeu que, entre os milhões de seres vivos que compõem essa explosão de biodiversidade que é a Amazônia, está o Homo sapiens. Ele está por lá há pelo menos 14 mil anos, vivendo em harmonia como seus demais companheiros de ecossistema. Seres humanos e floresta são indissociáveis. Povos tradicionais não a prejudicam; ao contrário, cuidam dela.
Esta ideia chegou ao governo por sua conterrânea e discípula acreana Marina Silva, outra ambientalista reconhecida no mundo inteiro. Ainda na primeira gestão de Lula, como ministra do Meio Ambiente, ela se inspirou nesse pensamento para experimentar outro conceito, o da transversalidade. O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDam), que deve ser retomado, é o melhor exemplo de gestão transversal – pois atravessa ministérios, instituições diversas, governos estaduais e municipais – bem-sucedida: reduziu o desmatamento na região de 27 mil km² em 2004 para 4,5 mil km², em 2012.
A visão socioambiental de Marina a guiou também na criação do Fundo Amazônia, ainda na primeira passagem pelo Ministério do Meio Ambiente e, este ano, da novíssima Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável, no agora rebatizado Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Seu objetivo é apoiar os povos e comunidades da floresta em seu trabalho imprescindível de preservação do verde e, por conseguinte, ao equilíbrio climático. Já os quilombolas, que desenvolveram técnicas sustentáveis de regeneração de solos, terão secretarias próprias no Ministério da Igualdade Racial, comandado por Anielle Franco, e no de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, chefiado por Paulo Teixeira – que também vai abrigar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Nos últimos quatro anos a Amazônia foi devastada como nunca e não adianta fingir que nada aconteceu. É preciso regenerar, replantar, reconstruir, unir e pacificar. Os povos da floresta estão chegando ao poder neste governo, mas vão precisar de toda ajuda possível, pois os desafios são imensos. O povo brasileiro forma um ecossistema dos mais sofisticados, porque diverso, e tem que fazer parte dessa transversalidade. Não “tá tudo dominado” enquanto tudo não estiver interligado.
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maio 2022 | Amazônia, Desmatamento
A expressão “desvio de finalidade” está na moda, mas não explica adequadamente como vêm agindo algumas instituições no atual governo. O caso do Ministério do Meio Ambiente, então, é muito instrutivo. O último lance infeliz da pasta foi bater mais um recorde de desmatamento. Imagine que o zagueiro de seu time seja torcedor fanático do adversário e marque, de propósito, um gol contra na final?
O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou na última sexta-feira que foram abaixo 1.012 km² de floresta em abril – 75% a mais que no mesmo período em 2021. O número é particularmente impressionante porque chove muito nessa época na Amazônia, o que costuma dar um tempo na devastação. É a primeira vez na história que a área desmatada ultrapassa os 1.000 km² num mês de abril.
De acordo com um levantamento feito pelo MapBiomas, 97% dos alertas de desmatamento emitidos desde 2019 foram ignorados pelos órgãos de fiscalização ligados à pasta. Não foi por falta de disposição dos aguerridos jogadores do Ibama que, não custa lembrar, tem entrado em campo desfalcado; o seu técnico é que gosta de jogar recuado. E quem achar ruim vai pro banco de reservas.
Na última segunda-feira, a Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), que reúne funcionários do instituto, do ICMBio e do Serviço Florestal Brasileiro, divulgou uma nota na qual acusa o governo de dificultar suas ações: “Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade”. O texto também diz que “há ainda dezenas de casos de perseguições e assédio aos servidores do Ibama e ICMBio, especialmente àqueles que atuam na fiscalização ambiental. Por fim, mas não menos importante, temos queda drástica de servidores nas diversas autarquias ambientais”.
Quem quer jogar pra frente é tratado como pereba ou desequilibrado: “Muita gente louca e os loucos gostam de direito ambiental porque eles se sentem confortáveis na área, inventando coisas”, respondeu Eduardo Bim, presidente do Ibama. Não contente, ele emendou: “Tem gestor que se sente constrangido por reportagem de jornal. Eu não. Eu sou um psicopata”. No ano passado, Bim foi afastado do cargo por três meses pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando a Polícia Federal o investigava por suspeita de favorecimento a madeireiras ilegais. Coisa de perna de pau.
O Ministério do Meio Ambiente tem a missão de “formular e implementar políticas públicas ambientais nacionais de forma articulada e pactuada com os atores públicos e a sociedade para o desenvolvimento sustentável”. Para quem não se lembra, uma das primeiras jogadas do atual governo foi entrar de carrinho na participação da sociedade civil nas comissões da pasta; mas no último dia 28, o STF lhe deu cartão vermelho. Na primeira votação do chamado “Pacote Verde”, o Supremo restituiu sua representação no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).
No mesmo dia, o tribunal também declarou ilegal o decreto que que afastou governadores de estados da Amazônia legal do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) e o que extinguiu o Comitê Organizador do Fundo Amazônia (Cofa). Isso obrigou o governo a mudar sua tática: no dia 30 de abril, aumentou, voluntariamente, o número de representantes do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 23 para 36. Ainda faltam 60 para os 96 originais, mas o recuo mostra que o jogo ainda está longe de acabar.
A pasta do Meio Ambiente não é o único a jogar contra. O escrete da Funai, vinculado ao Ministério da Justiça, hoje é comandado por ruralistas. Sua missão institucional é “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. Essa regra é desrespeitada diariamente; mas em março a Polícia Federal interrompeu uma jogada especialmente desleal: desbaratou uma quadrilha chefiada pelo coordenador-geral do órgão em Ribeirão Cascalheira (MT), onde fica a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.
Militar inativo da Marinha, Jussielson Gonçalves Silva é acusado, junto com três PMs, de arrendar áreas protegidas para criadores de gado. Antes de ser pego no antidoping, chegou a ser elogiado por Marcelo Xavier, presidente da Funai: “Esse é o caminho. O coordenador regional Jussielson Gonçalves e a prefeitura de Canarana estão de parabéns. Isso pode ser reproduzido em outras aldeias. Pode servir de modelo”.
O jogo só termina quando o juiz apita; então, ainda dá para virar. Mas é preciso reforçar o time do meio ambiente, e as eleições de outubro são a nossa oportunidade de levar para Brasília gente que honre a camisa.
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abril 2022 | Direitos indígenas, Povos Tradicionais, Uncategorized
por Erisvan Guajajara*
O Dia do Índio (sic) nunca foi motivo de comemoração para nós, indígenas. Embora instituído pelo Estado para celebrar nossa existência, na prática serviu, no máximo, como alívio para a consciência de quem sempre nos perseguiu.
O 19 de abril, para os povos originários, é um dia de luta. Melhor dizendo: apenas mais um dia de uma luta que se arrasta desde que o invasor chegou aqui, há mais de cinco séculos. Essa guerra sem tréguas ganhou caráter decisivo este ano, pois o adversário reforçou seu paiol de munição. Mas resistimos desde 1500 e engana-se quem acredita que vai nos pegar desprevenidos. Aprimoramos nossas armas e estamos preparados como sempre.
Não é segredo que Bolsonaro nos considere seus inimigos – afinal, ele vive se gabando disso. Melhor assim; um oponente dissimulado seria mais difícil de enfrentar. O atual presidente tem poucos meses para levar a cabo seu projeto de aniquilação, e o desespero o leva a despejar sobre nós, de uma vez, todo o seu arsenal de armas de destruição em massa, na forma de projetos de lei. E ele conta com aliados impiedosos no Congresso Nacional. É um bombardeio que nos atinge por todos os lados – mas não só a nós, é bom lembrar; o Brasil como um todo poderá sair mortalmente ferido dele.
O PL 2.159/2021, que tramita no Senado, por exemplo, praticamente elimina a necessidade de licenciamento ambiental no país para obras de infraestrutura como hidrelétricas, rodovias, ferrovias e barragens. Nem parece que só em outubro passado foi encontrado o corpo da 261ª vítima de Brumadinho, dois anos e oito meses depois do desastre. E que ainda há nove pessoas desaparecidas lá. Ou que Mariana até agora não tenha se recuperado totalmente, seis anos depois do rompimento da Barragem do Fundão. Nem mesmo que em Minas Gerais existam, no momento, mais de 30 barragens em situação crítica, e que a Usina de Belo Monte tenha levado somente ruínas ao Rio Xingu e a Altamira, no Pará.
O mesmo vale para o PL 191/2020, que libera a mineração em nossas terras. Mas, assim como o povo Munduruku, 75% da população de Santarém, a terceira maior cidade paraense (com mais de 300 mil habitantes), carrega o mercúrio do garimpo ilegal em suas veias. E o Tapajós não é o único rio que banha tanto nossas terras, como grandes centros urbanos brasileiros. Só o fato de ter sido aprovada a urgência de sua votação na Câmara Federal, serviu como senha para que garimpeiros se sentissem à vontade para empreender novas invasões. A certeza da impunidade lhes serve de estímulo – os Xipaya, que tiveram seu território atacado na semana passada, que o digam.
No Pacote da Destruição tem até armamento químico. O Projeto de Lei 526/1999, conhecido como PL do Veneno, transfere da Anvisa para o Ministério da Agricultura a competência de liberar novos agrotóxicos – alguém pensou na raposa tomando conta do galinheiro? Ainda que pesticidas sejam, vez por outra, despejados de propósito em nossas aldeias, é o consumidor brasileiro em geral que vai pagar caro pela ganância alheia.
Ainda que não sejamos o alvo primário, o Projeto de Lei 2.633/2020, o PL da Grilagem, também pode nos vitimar. Essa bomba, já aprovada pela Câmara e encaminhada ao Senado em agosto passado, anistia invasores e incentiva novos roubos de terras públicas. Estamos no meio desse tiroteio, cujo maior prejudicado é um patrimônio de todos; territórios indígenas não homologados fazem crescer os olhos de muita gente.
E aí chegamos ao PL 490/2007, feito sob encomenda para nos prejudicar. O projeto tem como objetivo não só inviabilizar a demarcação de novas terras indígenas, como até anular muitas já demarcadas. O pretendido tiro de misericórdia institui o dispositivo do “marco temporal”. Segundo este, só teriam direito à posse de seus territórios os povos que os estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã. Isso valeria até para os que foram expulsos deles pelo uso da violência. O recém-falecido jurista Dalmo Dallari era seu opositor ferrenho, já que é inconstitucional. Mas sabemos que Bolsonaro costuma jogar fora do que chamam de “quatro linhas”. Ele pode até tentar, mas nós resistiremos.
Hoje, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) tem uma forte equipe jurídica, formada por advogados de origem indígena, que vem infligindo derrotas memoráveis ao governo, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF). Ajudamos a construir a Constituição de 1988 e, de lá para cá, temos nos preparado para defendê-la em todos os campos de batalha.
Continuaremos a ocupar espaços: queremos eleger uma bancada no Congresso do tamanho dos 900 mil que somos e formada pelos 305 povos que representamos. O Brasil é indígena, e não só por um dia, vamos aldear a política brasileira.
Que não nos destaque em um único dia, que nossa história não seja apagada, somos os primeiros, e seguimos na responsabilidade para salvar nossos territórios e o planeta. A luta pela terra, pela vida e direito dos povos indígenas é todos os dias.
*Erisvan Guajajara é jornalista do seu povo, no Maranhão. Atua no movimento indígena desde 2010, dentro de organizações políticas, e como ativista cultural, usando a comunicação e as novas tecnologias para o empoderamento da juventude indígena, para combater as mudanças climáticas e para registrar e denunciar, por meio de documentários e fotografias, a exploração ilegal de madeira em territórios indígenas. Fundou a rede “Mídia Índia” com mais dois jovens de seu povo, Edvan Guajajara e Flay Guajajara, para dar voz aos povos originários do Brasil e desenvolver uma rede de comunicação indígena na América Latina. Foi colaborador do jornal “Amazônia Real” e atualmente é repórter do Portal Terra, onde este artigo também foi publicado.
fevereiro 2022 | Alternativas Energéticas, Direitos indígenas
Os primeiros estudos sobre o potencial hidrelétrico da Bacia do Tapajós datam de 1986, no governo José Sarney. Em 6 de novembro de 2009, em carta dirigida ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o povo Munduruku rechaçou completamente a ideia de construir barragens no rio: “Onde vamos morar? No fundo do rio ou em cima da árvore? Aximãyugu oceju tibibe ocedop am. Nem wasuyu, taweyugu dak taypa jeje ocedop am”. (“Não somos peixes para morar no fundo do rio, nem pássaros, nem macacos para morar nos galhos das árvores”). Os Munduruku se autodenominam Wuy jugu, “Nós, as pessoas”.
E esse espírito continua vivo: “A gente não negocia território, porque a gente não negocia a vida de nossos filhos e nem de nossos antepassados”, diz Alessandra Korap, vencedora do Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, em 2020. A liderança Munduruku lembrou que o problema não é só de seu povo: “Todos que vivem na Bacia do Tapajós podem ser prejudicados. O que aconteceu em Alter do Chão foi causado pelo garimpo no Jamanxim”, conta ela, referindo-se à lama que turvou as águas do balneário do Tapajós, vinda de um afluente a 300 km de distância, no fim do mês passado.
Mais de 15 mil Munduruku vivem em cerca de cem aldeias na região que já foi conhecida como Mundurukânia. Eles têm o direito constitucional de preservar o seu modo de vida tradicional, e este é totalmente baseado na ordem natural do rio. “Parece que somos só nós que bebemos água”, provoca Alessandra. De que adianta ter a maior reserva de água doce do planeta, o seu bem mais valioso, e tratá-la como esgoto? É ano de eleição. Por que nós, todas as pessoas, não exigimos de nossos candidatos à Presidência que se comprometam a enterrar de vez esse projeto? Tapajós livre! Cada eleitor é uma gota e cada gota conta.
A ideia de transformar a Amazônia numa central de energia vem dos tempos da ditadura. De lá para cá ela assombra a população que vive às margens de seus rios – e nenhum governo do pós-redemocratização a exorcizou definitivamente. Nem mesmo o cadáver insepulto de Belo Monte foi capaz. No fim de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) deu mais uma colher de chá de dois anos à Eletrobras, para que apresente novos estudos de viabilidade técnica e econômica para a construção de três grandes hidrelétricas na bacia do Tapajós. Só que esse prazo vem sendo sistematicamente prorrogado desde 2009, pois os anteriores sempre são reprovados. É como um pênalti que o juiz manda repetir até a bola entrar.
Em nome de quê? Ou de quem? O Rio Tapajós é o último grande afluente da margem direita do Amazonas a correr livre e o seu entorno, uma das áreas mais preservadas – e, portanto, valiosas – da Amazônia. Recentemente, outro elemento foi adicionado à trama: também no fim de janeiro, o Tribunal de Contas da União (TCU) sinalizou que deve dar sua bênção à privatização da Eletrobras. Assim não há como espantar essa pulga de trás da orelha.
De acordo com a – até segunda ordem – estatal, a Usina de Jamanxim teria uma potência de 881 mil kW; a de Cachoeira do Caí, 802 mil kW; e a de Cachoeira dos Patos, 528 mil kW. As três juntas atenderiam 5,5 milhões de famílias. A capacidade alardeada de Belo Monte é de 11.233 MW por mês, o suficiente para abastecer 60 milhões de pessoas; mas, no mundo real, a média mensal é de 4.571 MW. Quem compraria este carro usado?
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janeiro 2022 | Belo Monte, Direitos indígenas
Há 10 anos um grupo de artistas, comunicadores, ativistas e cientistas convidou a população a desafinar o coro dos contentes e botar a boca no trombone por causa de Belo Monte. Nascia ali o Movimento Gota D’Água, que daria origem à Uma Gota no Oceano. Nossas vozes se juntaram às dos povos do Xingu, que há décadas lutavam para impedir a construção da usina, e o resultado desse clamor foram 2,5 milhões de assinaturas, arrecadadas em menos de dois meses. Já ouviram o som da pororoca? O ruído que vem de longe, levando tudo pelo caminho, e desagua num estrondo. Foi assim.
O resto é História, e ela provou que estávamos certos. A hidrelétrica custou mais do que o dobro do orçamento previsto e produz menos da metade da eletricidade apregoada; a crise energética que ela impediria de acontecer chegou com todo gás; e o Rio Xingu, um dos mais importantes da Bacia Amazônica, respira por aparelhos. Belo Monte só não parou de gerar denúncias de corrupção e problemas para o meio ambiente e para os moradores locais – o vídeo que acompanha este texto traz informações atualizadas. É um elefante branco no meio da maior floresta tropical do mundo.
Mas o que fazer com o monstrengo? “Sou partidário da ideia de transformar Belo Monte no Parque Nacional das Ruínas de Belo Monte, porque ela não tem absolutamente nenhuma utilidade”, sugeriu Tasso Azevedo, um dos criadores do projeto MapBiomas, no encontro que marcou os 10 anos do Movimento Gota D’Água. Foi uma oportunidade para membros fundadores e novos amigos da causa cruzarem visões, olhos nos olhos.
Continuamos de olho no Xingu, porque uma década se passou e a lição ainda não foi aprendida – basta ver o que está acontecendo em Minas Gerais, que não é obra apenas da Mãe Natureza. Por isso, os pecados de Belo Monte devem ser sempre lembrados por nós. Cada gota conta; e um monte de gotas gritando juntas vira pororoca.