O Brasil Yanomami: um povo em muitos
A designação Yanomami carrega consigo a ideia de território da mesma forma que a expressão Amazônia remete a uma imensidão verde que ocupa quase toda a porção Norte do Brasil. Esse imaginário é o máximo que uma sociedade que não se enxerga como parte da natureza consegue materializar.
Quantas amazônias cabem em um bloco de massa verde que se espalha ao longo de nove estados brasileiros? Quando se fala em Terra Indígena Yanomami compara-se, frequentemente, o tamanho da área – que chega a ser maior que o território de Portugal ou duas vezes o tamanho da Suíça – mas esquece-se que, justamente por essa magnitude, há uma diversidade étnica e linguística não dimensionada. Somos um Brasil que não se dá conta de sua riqueza. E não estamos falando de ouro.
A TI Yanomami (TIY) é a maior área indígena do Brasil, o primeiro território demarcado e uma das mais importantes áreas de floresta contínua do país. Localizada na fronteira com a Venezuela, espalha-se pelos estados de Amazonas e Roraima e abriga povos que ali se articulam desde sempre em trocas, circulação de pessoas, cultivos agrícolas, saberes, narrativas, línguas.
Por trás do que imaginamos como povo Yanomami está um conjunto de sete subgrupos já identificados: Ŷaroamë, Yanomamö/Yanonami, Yanomami/Yanomam, Yanomae, Yanomama, Sanöma e Ninam ou Yanam (Xiriana e Xirixana). Uma diversidade expressa em uma população de 31.007 indígenas, conforme dados recentes do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana.
Talvez estejamos longe de abarcar a complexidade deste povo que é um e que são muitos, um pequeno Brasil dentro do Brasil. Talvez porque sequer saibamos o que venha a ser o Brasil.
O povo Yanomami sabe que a terra não é um mero espaço geográfico recheado de minério. Hoje, o território concentra 448 pedidos de requerimentos de todo o tipo junto à Agência Nacional de Mineração (AMN). É a área com maior número de petições.
A terra Yanomami é uma entidade viva: a Urihi ou terra-floresta é a morada de uma riqueza cultural incalculável, onde vivem falantes de seis línguas e dezesseis dialetos; onde cada comunidade é independente, mas as decisões são tomadas por consenso, frequentemente após longos debates. Onde todos têm o direito à palavra e onde vivem ainda os Ye’kwana, grupo pertencente a outra família linguística, a karíb. Onde a diferença não representa desigualdade.
Essa imagem sequer consegue ser materializada em nossa sociedade em sua completa profundidade. Dessa fina teia de respeito e convivência, estabeleceu-se um modelo de governança próprio.
Em seu arranjo identitário, os Yanomami se organizam em sete associações próprias, além de uma organização Ye’kwana, que se mostraram fundamentais como articuladoras de suas regiões de abrangência para a construção do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). Desse processo nasceu o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, responsável pela tomada de decisão em toda a TIY, reunindo lideranças comunitárias, os perioma – os mais experientes – e xamãs.
A trajetória de construção do PGTA deu origem também ao Protocolo de Consulta dos Povos Yanomami e Ye’kwana, publicado em 2019. Uma jornada que afirma a habilidade e o refinamento da governança yanomami em meio à sua complexidade logística, linguística, cultural e territorial. Um esforço que começou em 2015 e terminou em 2018.
“A organização política yanomami e ye’kwana funciona como uma malha, em que as comunidades são nós e se interconectam diretamente apenas com os nós mais próximos. A percepção local sobre toda a extensão dessa malha só se faz necessária na relação com os não indígenas, de onde surge o desafio de ampliar a unidade de governança do nível local para toda a TIY”, diz trecho do artigo da bióloga Marina A. R. de Mattos Vieira, doutoranda em Ciência Política da Unicamp, que explica essa complexidade para que os napëpë – brancos, o outro ou inimigo, segundo os Yanomami – consigam entender.
Em um território vasto e ditado pela dinâmica dos ciclos da natureza é possível conviver com quantas maneiras de viver? A identificação de pelo menos seis grupos indígenas isolados dentro do território yanomami mostra que a multiplicidade pode ser a maior força de um povo que entende a sua unidade como algo maior do que as diferenças. Talvez a TI Yanomami seja o Brasil que deu certo, apesar de todas as tragédias.
Saiba Mais:
Quais são e quando nasceram as associações indígenas Yanomami?
Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca) – 1998
Hutukara Associação Yanomami (HAY) – 2004
Associação Wanaseduume Ye’kwana (Seduume) – 2006
Associação Yanomami do Rio Marauiá e do Rio Preto (Kurikama) – 2013;
Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima (Taner) – 2015
Associação das Mulheres Kumirãyõma (Amyk) – 2015
Hwenama Associação dos Povos Yanomami de Roraima (Hapyr), atual Urihi – 2016