Mulheres indígenas em defesa da vida

Mulheres indígenas em defesa da vida

Por Vinícius Leal

Se não é fácil ser mulher nesse mundo cruel, imagina ser mulher indígena? Segundo a ONU, há 238,4 milhões delas espalhadas pelos cantos do globo. Elas são fundamentais para o bem-estar de suas famílias, das comunidades onde vivem e do próprio planeta: como estão na linha de frente da preservação da natureza, formam, junto com os biomas que protegem, a principal barreira contra as mudanças climáticas. Como além de cruel o mundo é ingrato, em geral elas recebem em troca descaso e opressão. Mas jamais fogem à luta. E suas armas são muitas.

Foi num período especialmente dramático para os povos originários do Brasil que muitas mulheres indígenas encararam mais um desafio: o da reinvenção. Durante a onda da Covid-19 em Manaus, no coração do Parque das Tribos, o maior bairro indígena do país, onde vivem mais de 700 famílias de 35 etnias, surgiu um novo jeito de gerar renda e resistir à necessidade. Impossibilitadas de saírem de casa para vender suas obras artesanais ou trabalhar como empregadas domésticas – atividade que a maioria exercia –, elas começaram a costurar máscaras de proteção contra o coronavírus. Usaram de uma velha arte para combater um novo inimigo.

Vanda Witoto, coordenadora do Ateliê Derequine, faz parte desse grupo de empreendedoras. “Antigamente fazíamos nossas produções de roupa a partir das cascas de pau, como o tururi. A minha mãe costurou a vida inteira, aprendeu com minha avó, que foi ensinada pelas freiras. Mas foi na pandemia que começamos a estruturar o nosso ateliê com a produção de máscaras. Muitas mulheres receberam formação para produzir peças de roupa. Isso nos motivou”, explica ela, que também é profissional da saúde, professora e liderança política. Nas últimas eleições, recebeu mais de 25 mil votos para deputada federal, mas não se elegeu por conta do coeficiente partidário.

Foi quando faziam esse trabalho que a virada de chave para o mundo da moda se deu. A partir de então, formou-se um coletivo de criação e de empreendedorismo feminino indígena. “A primeira peça que criamos foi um poncho com a representação do topo da maloca do povo Witoto. A gente fez aplicação de todos os grafismos de triângulo da maloca na peça e isso fez um estalo na cabeça. Eu falei ‘mãe, a gente tem um potencial, essas mulheres não têm renda fixa, vamos nos organizar’. Aí articulamos parcerias para doação de máquinas de costura e oficinas, o que qualificou a gente”, conta Vanda.

Naquela época também nascia uma cena de moda cada vez mais forte em Manaus, que começou a ascender no mercado nacional. Foi aí que o Ateliê Derequine estabeleceu parcerias, ganhou impulso e vem se consolidando como marca, transformando a ancestralidade em traços únicos que traduzem a resistência dos povos e geram renda. O Ateliê é um dos 32 projetos de organizações indígenas da Amazônia financiados pelo Fundo Podáali, o primeiro fundo comunitário indígena, criado e administrado totalmente por indígenas, para indígenas.

Seguindo o mesmo propósito de fortalecimento da autonomia da mulher indígena através da arte e da economia, o projeto Kywagâ – Contrução da Casa de Artesanato, Arte e Moda das Mulheres Kurâ – Bakairi, também é apoiado pelo Podáali. Na parceria, os recursos vêm sendo utilizados para a construção da sede do projeto, o que incentiva a profissionalização. As condições de trabalho e a geração de renda também ganham melhorias a olhos vistos para 20 mulheres do Kywagâ e suas famílias, beneficiando, direta e indiretamente, 300 indígenas das comunidades Aki Ety, Paikum, Aturua, Pakuera e Kuiakware, em Mato Grosso.

Para Rosi Meire Apurinã, vice-diretora do Podáali, o fato de ser um fundo de financiamento que arrecada e aplica recursos em iniciativas geridas por mulheres indígenas, reforça a missão de transformar o presente e o futuro dos povos originários através da descolonização da economia e de ações de sobrevivência protagonizadas por eles próprios. 

“O Podáali tem como uma de suas premissas  fazer com que os recursos cheguem no território respeitando as formas próprias de organização social de cada povo, e é um processo incidir na filantropia, incidir nos doadores, que geralmente têm processos burocráticos que não conversam com as diferentes formas de organização social. ⁹⁹A nossa primeira chamada, que apoiou projetos de até R$ 50 mil, é reflexo disso”, afirmou, referindo-se às iniciativas apoiadas pela 1ª Chamada do Podáali, “Amazônia Indígena Resiste”.

O resultado dessas potências em gestão, financiamento, empreendedorismo e arte produzida por mulheres indígenas esteve representado em Brasília (DF) durante a 3ª Marcha das Mulheres Indígenas, o maior evento de mobilização indígena feminina do país. Os dois coletivos, Ateliê Derequine e o projeto Kywagâ, participaram do Desfile das Originárias da Terra, realizado durante a programação cultural do evento, e que contou com a presença de inúmeras lideranças, artistas de moda e personalidades indígenas.

O nosso desfile ancestral, que conta com mulheres de vários biomas, descoloniza a moda. Quantas vezes nos perguntaram se passamos batom? Passamos batom para não deixar a boiada passar, passamos batom e acertamos os tons para não deixar o marco temporal passar”, bradou a deputada federal Célia Xariabá (PSOL-MG) na abertura do desfile.

Sob o tema “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais” e organizado pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e pelo movimento “Mulheres Biomas do Brasil”, a marcha reuniu mais de 5 mil mulheres indígenas de todas as regiões do país para debater soluções e encontrar caminhos para os desafios vividos pelos povos originários. Entre eles, o combate à violência de gênero e violência política e o empoderamento feminino nos espaços de poder e pela luta de direitos. Com criatividade, coragem, batom ou urucum, elas seguem em frente, seja nas passarelas ou no ‘front’

Foto: Nathalie Brasil / Ateliê Derequine

Saiba mais:

https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia/2023/09/dia-internacional-da-mulher-indigena-por-que-a-data-e-celebrada-em-5-de-setembro 

https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/dia-internacional-da-mulher-indigena-2013-entenda-a-importancia-da-data 

https://amazoniareal.com.br/terceira-marcha-mulheres-indigenas/ 

https://anmiga.org/iii-marcha-das-mulheres-indigenas-2023/ 

Nós demos à luz esta terra

Nós demos à luz esta terra

Puyr Tembé, presidente da Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa) e secretária dos Povos Indígenas do Pará

A mãe do Brasil é indígena. Foi uma de nós quem deu à luz esta terra. Nossa ligação com ela é verdadeiramente ancestral. O mundo inteiro se comoveu com o martírio dos Yanomami e correu para ajudá-los. Sou mãe: consigo imaginar, como se fosse minha, a dor de quem perde o filho ou que não pode amamentá-lo; ou das mulheres que sofreram violência sexual e abortaram por espancamento. Infelizmente, os Yanomami não são os únicos que correm o risco de serem dizimados por causa da cobiça alheia: eu, por exemplo, vivo num estado tão ou mais ameaçado pelo garimpo ilegal que Roraima. Por isso dediquei minha vida à luta pela defesa de nossas terras.   

Nasci há 44 anos na aldeia São Pedro, na Terra Indígena Alto Rio Guamá, no sudoeste do Pará. Sou mãe de três filhas, avó e milito desde muito jovem; só que nos últimos quatro anos, nós, mulheres e lideranças indígenas, tivemos que decidir entre lutar para viver, ou esperar pela morte. A forma como fomos (des)tratadas durante a pandemia acendeu definitivamente o alerta. Hoje, presido a Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa) e fui convidada para assumir a recém-criada Secretaria dos Povos Indígenas do Pará. Além disso, faço parte da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira e sou cofundadora da Associação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).

Mais da metade das áreas de garimpo do país ficam no Pará, muitas delas em unidades de conservação e em nossos territórios. Estima-se que 60 mil garimpeiros atuam só na Bacia do Rio Tapajós. Na mesma região, vivem 13 mil Munduruku; ou seja, eles estão em minoria em suas próprias terras. Os efeitos já podem ser sentidos: a Polícia Federal calcula que foram despejados cerca de 7 milhões de toneladas de rejeitos tóxicos na bacia hidrográfica, enquanto um estudo da Fundação Oswaldo Cruz revelou que mais da metade da população de três aldeias (Sawré Muybu, Sawré Aboy e Poxo Muybu) tem mercúrio no organismo acima do recomendado. 

É por isso que temos muitas frentes de batalha, mas a maior delas é lutar pela vida. E quando dizemos isso, falamos de demarcação e desintrusão de terras indígenas. Protegendo nossas terras, preservamos sua biodiversidade e nossas próprias vidas, e ajudamos a proteger a própria Humanidade. Os povos indígenas agora falam de igual para igual com a sociedade como um todo. Hoje estamos no governo, devemos executar em vez de solicitar.  Mas eu continuo sendo Tembé. 

Estamos lutando pelas que já não estão mais aqui, levadas pela pandemia ou pelo mercúrio, por nossa ancestralidade; e pelas nossas que ainda estão por vir, o nosso futuro. Só que nós, mulheres do movimento indígena, não vamos conseguir fazer isso sozinhas. Ainda precisamos do Estado, dos parceiros, dos aliados, das entidades que sempre nos deram apoio, colaboradores e simpatizantes. Toda a população brasileira deve assumir conosco a maternidade/paternidade deste país.

 

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