Movimento indígena pelo bem viver do planeta

Movimento indígena pelo bem viver do planeta

Por Eliane Xunakalo*

Estamos no abril indígena, mês que marca a luta dos povos originários. Este ano, com nossa imensa diversidade – somos 305 povos no Brasil, falantes de 274 línguas – representada nos principais espaços de poder do país. Com 86 territórios indígenas, Mato Grosso é um pequeno reduto dessa diversidade: aqui vivem 43 povos diferentes, que representam nada menos que 14% de todas as etnias do país. 

Essa diversidade se reflete também na sociedade. Nossos traços, nossos cabelos, nosso sangue estão presentes em cada cidadão mato-grossense, para não falar da vasta herança cultural. Apesar disso, Mato Grosso não elegeu indígenas para o parlamento e pouco tem contribuído com a principal luta de seus povos originários: o bem viver. E, por bem viver, a gente entende a proteção das florestas, dos rios, da biodiversidade e da nossa cultura; a proteção do nosso território. 

Quando alcançarmos nosso bem viver, o planeta estará salvo. Afinal, os povos indígenas são guardiões de 80% da biodiversidade do planeta, apesar de serem 5% da população mundial. Em Mato Grosso a gente também vem tentando defender o nosso bem viver, por uma questão de sobrevivência – nossa e do planeta. Uma análise do ICV com base em dados do Prodes, mostrou que, entre agosto de 2021 e julho de 2022, menos de 3% do desmatamento no Cerrado aconteceram em terras indígenas, o que reforça aquilo que todos já sabemos: que reconhecer e proteger territórios tradicionais é a melhor estratégia contra crimes ambientais e a favor do clima do planeta.  

Mas manter essa proteção não tem sido nada fácil, ainda mais quando não se tem apoio dos governos e parlamentos. Nos três primeiros meses de 2023, Mato Grosso foi o estado que mais desmatou a Amazônia, contribuindo e muito para a devastação no bioma atingir o segundo maior índice desde 2015. Sozinho, o estado destruiu 89% do que Amazonas e Pará desmataram juntos. O cenário afasta Mato Grosso do compromisso assumido em 2015, na Conferência do Clima, em Paris, de reduzir o desmatamento para 571 km² por ano até 2030: só nos três primeiros meses de 2023 foram desmatados 311 km². 

Nos últimos anos, a cobiça por nossas riquezas só cresceu, enquanto os mecanismos de garantia de nossos direitos foram, cada vez mais, fragilizados. O exemplo mais recente é o Projeto de Lei Complementar (PLC) 17, de 2023, em tramitação na Assembleia Legislativa, que exclui a representação indígenas no Conselho Estadual de Educação, medida considerada inconstitucional pela Defensoria Pública da União (DPU).   

O PLC 17 é o caso mais recente, mas está longe de ser a única ameaça aos povos de Mato Grosso. Direitos indígenas são atropelados por empreendimentos minerários, agropecuários e hidrelétricos, que avançam mesmo sem consulta prévia e apesar dos impactos. É o que vem acontecendo na sub-bacia do Juruena, onde vivem 20 povos indígenas, e que ajuda a dar vida ao majestoso Tapajós. Um estudo recente da OPAN revelou que, dos 167 projetos de empreendimentos hidrelétricos pensados para a região, 36 são de alto risco, sendo 27 de risco altíssimo por estarem a menos de 5 km de TIs ou comunidades tradicionais. E isso inclui as PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) e CGHs (Centrais Geradoras Hidrelétricas) que, da forma que estão sendo planejadas, geram um impacto enorme na vida dos povos tradicionais. 

Além dos indígenas, existem mais de uma centena de territórios de quilombolas e ribeirinhos que lutam pelos rios em completa invisibilidade. E sabe quem perde com isso? Todo mundo, até quem acha que saiu lucrando.

É por isso que a FEPOIMT decidiu promover o primeiro Acampamento Terra Livre (ATL) de Mato Grosso, com quatro dias de troca de saberes e audiências públicas no centro político e administrativo de Cuiabá: a Praça Ulisses Guimarães. O ATL-MT nasce como a representação da força do movimento indígena e como um espaço de escuta, intercâmbio cultural e diálogo entre todos – indígenas, sociedade em geral, parlamentares e os governos – para debater medidas e projetos que impactam nossos territórios, violam nossos direitos e afetam nossas vidas. 

Estamos levando nossa luta para a praça pública porque vamos precisar de reforços não só nas ruas e redes, mas nos poderes Executivo e Legislativo, para transformar a garantia de direitos em políticas públicas. Precisamos dar visibilidade às questões que afetam os povos indígenas porque, se impacta nossos territórios, cedo ou tarde impactará sua vida também. Quando lutamos por nossas terras ancestrais, lutamos pela Mãe Terra e pelo futuro de todos os seus filhos, sem distinção. 

Por isso, é preciso que todos conheçam nossa diversidade e se reconheçam como parte dela. Esse é o caminho que precisamos tecer para transformar o dissenso, comum a toda diversidade, em um consenso: o bem do planeta para o bem viver de todos os povos. É como nos dizia nossa grande liderança Aritana Yawalapiti: ‘Estivemos semeando e, agora, precisamos regar’.

*Eliane Xunakalo é presidente da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT)

Novos caminhos para o futuro

Novos caminhos para o futuro

Eliane Xunakalo é uma mulher do seu tempo. Percebeu que para manter sua cultura viva e as terras de seus ancestrais intocadas era preciso estar atenta à contemporaneidade e aos movimentos do mundo. Ultimamente, tem se dedicado a estudar créditos de carbono – algo que até outro dia não lhe diria respeito e que muita gente boa desconhece. “Em 2016, já tinha feito pós em Direito Administrativo e Administração Pública, porque entendo que a gente precisa compreender como funciona a estrutura do poder público para poder cobrar. Não basta saber os direitos, tem que conhecer os caminhos”, diz ela, mais uma liderança feminina emergente do movimento indígena e uma fé no futuro. Anotem o nome.

Mãe de três filhos, de 10, 5 e 3 anos, e quatro cachorros, Eliane é Bakairi. Esse povo originário do Cerrado mato-grossense está no meio do maior fogo cerrado: o direto, que vem destruindo o segundo maior bioma brasileiro com incêndios cada vez maiores e constantes; e o que ricocheteia na Amazônia, ao abrir caminho para invasores – os Bakairi vivem em duas terras nos arredores do Parque Nacional do Xingu. Depois de uma eleição difícil, em que enfrentou uma oposição violenta, Eliane foi eleita a primeira presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt). Uma vitória histórica.

A votação foi apertada e deixou sequelas. Guerreira que usa a doçura como arma, Eliane prega a conciliação. “Nós, povos indígenas não podemos ser inimigos. Estamos pregando diálogo, união e consenso. Não vamos excluir nenhum povo que pensa diferente da gente, pelo contrário. Foi com essa proposta que nos apresentamos, que fomos eleitos e que vamos trabalhar. Nossa palavra é consulta transparência, protagonismo e força”, diz ela, demonstrando grande maturidade para os seus 36 anos, um contraste com autoridades mais velhas, que perecem crianças.

A Fepoimt foi criada em 2017, representa os 43 povos indígenas do estado. O próprio Cacique Kayapó Raoni se empenhou na campanha. Eliane Xunakalo irá enfrentar pedreiras à frente da federação. O poder mudou de mãos a nível federal, mas permaneceu nas mesmas em Mato Grosso. O governador, um senador e 18 dos 24 deputados estaduais mato-grossenses foram reeleitos. Ela tentou uma vaga na assembleia estadual, mas não foi eleita. “Tive 4.046 votos. São votos importantes porque são limpos e abrem caminhos. Pela falta de recursos e de experiência analiso como um resultado positivo. E sou a primeira indígena eleita como suplente na Assembleia. É um resultado histórico”, analisa.

O fato de ter ao seu lado outras mulheres corajosas como ela é outro motivo de otimismo: Eliane é vice-presidente da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileiras (Amiab) e cofundadora da Articulação Nacional Das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), além de ser sou assessora de articulação política e para questões climáticas da Takná, instituição que tem 13 anos e trabalha com os direitos das mulheres indígenas no Mato Grosso.

Mas Eliane nunca esteve sozinha. O marido apoia seu trabalho desde o começo e ela também foi incentivada a estudar por seu povo, pelas lideranças e anciões da sua aldeia. Quando estudou em Cuiabá, aprendeu com o movimento estudantil que era preciso levar a voz do movimento indígena a todos os recantos do planeta. “Nós não somos o atraso. Nós somos os guardiões do bioma, somos os guardiões do futuro. Precisamos que quem está no poder entenda isso”, diz Eliane Xunakalo. O Mato Grosso é a nossa primeira linha de defesa contra a destruição da Amazônia. A tarefa está em boas mãos, mas a Fepoimt precisa do apoio de todos nós.

 

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