O sol e a peneira

O sol e a peneira

O ministro do Meio Ambiente usou uma foto do bicho símbolo da Mata Atlântica para mostrar que não havia desmatamento na Amazônia e pagou um mico-leão-dourado. Já o vice-presidente Hamilton Mourão, que ora também preside o Conselho Nacional da Amazônia – uma espécie de segundo ministério para a área ambiental –, disse que o Brasil devia parar de “tapar o sol com a peneira” quando o assunto é a abertura das terras indígenas à mineração. Ele argumenta que a regulamentação da atividade ajudaria a coibir ilegalidades e crimes ambientais. A política de legalizar terras públicas invadidas, sobretudo na Amazônia, vem sendo insistentemente defendida pelo governo; essa insistência vem estimulando mais invasões. Ainda não há dados consolidados deste ano, mas segundo o último o relatório “Violência contra os povos indígenas do Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nos nove primeiros meses de 2019, 153 territórios foram invadidos em 19 estados, contra 76 em 13 estados em todo ano anterior.

Um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), com base em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), aponta que o desmatamento disparou em terras indígenas na Amazônia – na Trincheira-Bacajá, no sudoeste do Pará, aumentou 870% entre março e julho deste ano. Hoje há tantos garimpeiros quanto indígenas na Terra Yanomami, mais de 40 mil de cada lado. Enquanto isso, repousam nas gavetas da Agência Nacional de Mineração (ANM) quase 3,5 mil pedidos de pesquisa mineral nessas áreas. Mourão também admitiu que o governo perdeu o controle da narrativa sobre a floresta. Segundo ele, para adversários políticos do presidente, empresas estrangeiras e ambientalistas. O vice-presidente vice-presidente Hamilton Mourão, que ora também preside o Conselho Nacional da Amazônia, acusou o golpe, dado pela campanha internacional #DefundBolsonaro (“não financie Bolsonaro”), acusando o governo brasileiro de espalhar desinformação e não combater o desmatamento. Narrativas sólidas se constroem com verdades.

Como presidente do Conselho Nacional da Amazônia, Mourão podia dar mais atenção à divulgação de um robusto relatório da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). A pesquisa apontou um crescimento 129% no número de barragens em condições críticas em 2019 – 156 contra 68 do ano anterior. A maior parte (63%) pertence à iniciativa privada. A ANA credita o crescimento de registros ao aumento de 135% das ações de inspeção entre 2018 e 2019. Os dados indicam duas coisas: que a ameaça é considerável e que vale a pena investir em fiscalização. Então, em nome de que correr esse risco? Ou de quem? A Bacia Amazônica é um tesouro do povo brasileiro, mas sofre há décadas com o garimpo ilegal, em benefício de uns poucos.

Em fevereiro completou-se dois anos que a mineradora norueguesa Hydro Alunorte deixou vazar metais pesados, como chumbo, arsênio e mercúrio, no Rio Murucupi, no Pará. A Agência Pública denunciou em reportagem que a ANM contratou uma empresa que presta serviços a mineradoras para fiscalizar barragens. Como explicar isso? A americana Aecom, contratada sem licitação pela ANM, uma autarquia do Ministério de Minas e Energia, tem negócios com as multinacionais BHP Billiton, Kinross, Rio Tinto e Anglo American. Como não enxergar esse evidente conflito de interesses?

O vice-presidente também disse que o Exército só entrou na Amazônia porque os órgãos ambientais não tinham “pernas” para agir. Foi uma entrada triunfal: a Operação Verde Brasil chegou à região com 3.815 militares, 110 veículos terrestres, 20 embarcações e 12 aeronaves. Isso custou R$ 60 milhões aos cofres públicos em maio, pouco menos que o orçamento de R$ 76 milhões do Ibama para este ano. Nada disso impediu que a Amazônia tivesse o segundo pior agosto dos últimos dez anos em relação ao número de queimadas, com 29.307 focos. Mas num ponto o vice-presidente tem razão: faltam pernas aos órgãos ambientais. Em dez anos, o Ibama perdeu mais de metade de seus fiscais. Hoje são 591 agentes, contra 1.311 em 2010 – o menor número desde a fundação do instituto, em 1989. Só em 2019, a redução foi de 24% em relação a 2018. O órgão também vem perdendo dinheiro: o orçamento de 2020 foi 25% menor que o de 2019 e em 2021, sofrerá um corte de 33,6%. A Operação Lava Jato criou um fundo de R$1 bilhão para combater o desmatamento na Amazônia; o Ministério da Defesa vai abocanhar R$ 520 milhões, enquanto o Ibama vai receber R$50 milhões, quase dez vezes menos. É impossível não pensar em desastres como os causados pela Samarco, em Mariana, e pela Vale, em Brumadinho, repetindo-se num grande rio amazônico. Enquanto Mourão só se preocupa com narrativas, o passado recente, esse inconveniente, nos joga a realidade na cara.

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#Amazônia #Pantanal #MeioAmbiente #Queimadas #Desmatamento #Indígenas #Barragens #Bolsonaro #CadaGotaConta

Unidos da Democracia

Unidos da Democracia

Quem ainda acredita que o Carnaval é sinônimo de alienação não sabe da missa a metade. Desde que se chamava entrudo, ainda no Brasil Império, a maior manifestação popular do país vem servindo de válvula de escape da população contra os desmandos das autoridades. Mas a festa deste ano foi especial. O chamado mais vibrante veio do Sambódromo do Rio de Janeiro. A maioria das escolas de samba que desfilaram pela Marquês de Sapucaí contaram histórias inspiradoras de resistência de minorias. Neste momento conturbado pelo qual passa o Brasil, elas cantaram a liberdade, a fraternidade e a igualdade, as bases da democracia moderna. E o seu canto ecoou.

A campeã, a Viradouro, entrou e saiu de alma lavada da passarela. Seu enredo falou de um episódio histórico pouco conhecido: o das ganhadeiras do Abaeté, bairro de Salvador, Bahia. Essas mulheres de origem africana, aqui escravizadas, conquistaram sua liberdade e, com o suor de seus rostos – a maioria trabalhava como lavadeira às margens do Lagoa do Abaeté –, juntavam dinheiro para comprar a alforria de outras pessoas. Elas são consideradas as primeiras feministas do Brasil. E luta é um substantivo feminino.

A segunda colocada, a Grande Rio, criticou a intolerância religiosa, o racismo e a homofobia cantando Joãozinho da Gomeia. Nascido na Bahia, o babalorixá, veio para o Rio de Janeiro em 1948 e abriu seu terreiro em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Uma história deliciosa resume bem o seu espírito libertário. No carnaval de 1956, vestiu-se de vedete. Em entrevista à revista “O Cruzeiro”, ao ser questionado se sua fantasia feria as regras do candomblé, respondeu: “O fato de eu ter me fantasiado de mulher não implica desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de democracia. Os orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram, superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do livre arbítrio”.

A luta pela democracia é a mãe de todas as lutas. Não existe defesa do meio ambiente sem democracia. Num momento em que o governo ameaça as terras indígenas com a PL 191 e com a construção de 40 novas hidrelétricas, é preciso se inspirar na resistência dos povos tradicionais e das comunidades que levam as escolas de samba cariocas à avenida. “A falange está formada / Um coral cheio de amor”, diz o samba da Viradouro. Vamos entrar de alma lavada nessa luta?

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A ciência salva

A ciência salva

Cansado de esperar providências, o povo nordestino está arriscando a própria saúde para limpar as praias da região. As universidades e instituições científicas também entraram em ação. Ainda não se tem certeza sobre a procedência do óleo, mas graças a pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) já se sabe em que ponto do Atlântico ele foi despejado: da fronteira entre Sergipe e Alagoas, a uma distância de 600 km a 700 km da costa. Com essa informação é possível traçar planos de contenção. O importante é impedir que a poluição chegue ao litoral.

A Universidade Federal da Bahia (UFBA) começa a fazer as contas do prejuízo. Biólogos da instituição examinaram a fauna marinha de praias do estado e detectaram metais pesados em peixes, crustáceos e moluscos. A população prefere não se arriscar, fazendo a renda de pescadores e marisqueiros cair 80%. “Ninguém compra nada. Nada. É um desespero. Eu preciso botar comida em casa, alimentar minhas filhas. Vou ter que comer esse marisco. Vou jogar fora? Não. Mas ninguém quer. O mar é um só, né?”, diz a catadora de mariscos Fabiana França, de Salvador. Mesmo que se limpe todo o litoral, só em 10 anos a região voltará ao normal. E mesmo que se contenha e se recolha todo o óleo derramado, resta um problemão: o que fazer com ele?

Marinha, Ibama e Petrobras não têm um plano definido. O governo de Pernambuco contratou uma empresa que está armazenando os resíduos num aterro em Igarassu, a cerca de uma hora do Recife. Até agora foram 1,3 mil toneladas de óleo e objetos contaminados pela substância, como baldes, luvas e máscaras. O material passa por uma triagem e em seguida é triturado e vendido como combustível para indústrias de cimento. Mas a UFBA está desenvolvendo um projeto para dar um destino mais ecológico ao óleo. A ideia é reusá-lo como material de construção. A técnica desenvolvida pela universidade consiste em transformar o petróleo num tipo de carvão granulado que pode ser usado como mistura para asfalto ou blocos de construção.

Há 3 anos, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) encarou um desafio parecido e uma solução semelhante. Além de toda destruição e das mortes que causou na região de Mariana, o rompimento da barragem da Samarco deixou 35 milhões de m³ de rejeitos tóxicos de saldo. O que fazer com esse lixo? Pesquisadores da instituição criaram uma técnica para fazer tijolos e cimento a partir da lama. A Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) desenvolveu um estudo paralelo e calculou que com 500 toneladas de resíduos seria possível construir 40 casas de 40 m². E a Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da USP e da Universidade Federal do ABC (UFABC) conseguiram fazer o que parecia impossível: transformar os resíduos em solo para a agricultura. O melhor é aprender com os erros para não repeti-los, mas é preciso ter um bom estoque de planos B na manga também. Por isso é tão importante investir em pesquisa.

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#ÓleoNoNordeste #CombustíveisFósseisNão #CadaGotaConta #Ciência #Universidade #UmaGotaNoOceano #EmNomeDeQuê

Suíços em Davos querem proteção de terras indígenas

Suíços em Davos querem proteção de terras indígenas

Não existe futuro saudável para ninguém se não cuidarmos da Amazônia. Aproveitando a visita do presidente Jair Bolsonaro ao país para participar do Fórum Econômico Mundial de Davos, os suíços resolveram pedir que ele respeite as florestas e aqueles que cuidam delas. É que uma das primeiras ações de Bolsonaro como presidente foi parar todas as novas demarcações de terras indígenas.

O término deste processo estimula os grileiros, madeireiros e garimpeiros, sempre de olho nas terras protegidas pelos índios, a invadi-las.
Assine a petição e apoie o pedido do presidente suíço Ueli Maurer pela proteção da Amazônia e dos povos indígenas do Brasil.

Foto: Dominik Schraudolf

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