Enquanto o desmatamento ameaça a Amazônia, os quilombos da Calha Norte, no Pará, mostram um caminho diferente: são territórios de resistência, refúgio e biodiversidade. O artigo abaixo revela como essas comunidades se tornaram fundamentais para a proteção do clima, da floresta e da vida, um tema central para o Brasil rumo à COP30.
Quilombos na Calha Norte: criadores de refúgio e guardiões da biodiversidade
Enquanto o desmatamento avança sobre a Amazônia, comunidades quilombolas mostram que proteger territórios é proteger o futuro do planeta.
Por Monica Prestes *
No noroeste do Pará, um imponente bloco verde resiste. Formado por florestas preservadas e rios saudáveis, ele contrasta com o cenário de degradação que domina o sul do estado-sede da COP30: pastos abandonados, garimpos ilegais e rios feridos. É na Calha Norte do Rio Amazonas que se encontra o maior bloco contínuo de áreas protegidas do Brasil — uma área equivalente à soma dos estados do Paraná e Alagoas.
Esse cinturão de proteção ambiental reúne 11 Unidades de Conservação, seis Terras Indígenas e 39 comunidades quilombolas distribuídas em sete territórios. Juntas, essas áreas mantêm em pé mais de 27 milhões de hectares de floresta tropical. Para se ter uma ideia, a capacidade de reter carbono da Calha Norte supera a das florestas da Indonésia e do Congo, que, ao lado da Amazônia, formam o principal cinturão de florestas tropicais do planeta.
Mais do que um refúgio ecológico, esse território é um elo vital entre a Amazônia Central e o Corredor de Biodiversidade do Amapá, formando o maior corredor de biodiversidade em florestas tropicais do mundo. São essas florestas que alimentam os chamados “rios voadores”, responsáveis por levar umidade para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil — regiões que dependem dessas chuvas para o agronegócio e a geração de energia.
Mas a Amazônia que conhecemos hoje é também fruto da sabedoria ancestral dos povos indígenas e quilombolas. Eles manejam a floresta há séculos e continuam sendo a forma mais eficaz de proteção ambiental. Estudos do Instituto Socioambiental (ISA) mostram que os territórios quilombolas perderam apenas 4,7% de suas florestas entre 2003 e 2022, enquanto as áreas privadas ao seu redor perderam 17%. Além disso, esses territórios armazenam 48% mais carbono florestal.
No final de julho, um estudo publicado pela revista Nature reforçou essa evidência: os quilombos são verdadeiros guardiões da biodiversidade, com maior variabilidade de espécies e retenção de carbono. Em Oriximiná, município paraense que abriga o primeiro quilombo titulado do Brasil (Boa Vista) e o maior titulado da Amazônia (Cachoeira Porteira), mais de 80% das florestas estão protegidas. Ali vivem quase 10 mil quilombolas — 13% da população local, percentual bem acima da média nacional de 0,66%.
Essas comunidades construíram, ao longo das décadas, uma bioeconomia baseada em produtos florestais não madeireiros, como castanha, andiroba e copaíba, além de atividades sustentáveis como o artesanato e o turismo de base comunitária. Essa estratégia tem sido essencial para enfrentar as pressões da mineração, do agronegócio e dos grandes empreendimentos.
Proteger os territórios quilombolas é proteger o clima. É reconhecer que há saberes ancestrais que sustentam a vida e que, diante da emergência climática, podem ser nossa melhor esperança. Com a COP30 se aproximando, o Brasil tem a oportunidade de assumir um papel de liderança ambiental global — e isso passa, necessariamente, pelo reconhecimento dos direitos quilombolas.
A adesão da CONAQ à Coalizão Internacional CITAFRO marca um avanço decisivo rumo ao protagonismo afrodescendente nas negociações climáticas. Representando comunidades de 18 países da América Latina e Caribe, o bloco ganha força justamente na primeira COP a reconhecer formalmente essas populações nos debates sobre clima, com a criação de uma Comissão Internacional e a aprovação de uma carta-manifesto. É chegada a hora de escutar quem há séculos protege o que ainda resta da floresta — e de garantir que suas vozes influenciem os rumos do planeta.
*Monica Prestes é jornalista e correspondente da Gota na Amazônia