Reconhecimento histórico da contribuição dos povos afrodescendentes da América Latina e do Caribe para a proteção da biodiversidade deve passar pela educação dentro dos territórios
A COP16 das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, realizada durante o mês de outubro em Cali, na Colômbia, já entrou para a História como um marco na luta dos povos afrodescendentes da América Latina e do Caribe pelo reconhecimento de seu papel na conservação da diversidade biológica e nas decisões multilaterais tomadas sobre o tema. A CONAQ, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Brasil, foi uma das articuladoras deste processo, ao lado de lideranças como a vice-presidente e Ministra da Igualdade e Equidade da Colômbia, Francia Elena Márquez Mina, o PCN (Proceso de Comunidades Negras) e outras organizações afrodescendentes da região.
Esta conquista sem precedentes, alcançada por meio do trabalho incessante dessas organizações, representa o reconhecimento do que já sabemos há anos: os povos afrodescendentes são detentores de conhecimentos ancestrais de manejo sustentável da natureza, hoje imprescindíveis no combate à crise climática.
Passado o momento histórico, uma das questões mais prementes é encontrar meios para transmitir este conhecimento de forma a iniciar efetivamente o longo trabalho que temos pela frente. Não foi por acaso a escolha do tema da redação do ENEM de 2024, “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”, que aponta a importância dos saberes e tradições afrodescendentes. Também não foi à toa que a vice-presidente da Colômbia abriu seu discurso no Fórum Internacional Afrodescendente da COP 16 fazendo uma saudação especial aos estudantes.
Eles são parte fundamental neste processo de transmissão de conhecimento, mas os desafios ainda são muitos.
No Brasil, os próprios quilombolas enfrentam dificuldades para educar as novas gerações dentro de seus saberes. Além do racismo estrutural e da falta de titulação dos territórios, que muitas vezes impede o acesso das comunidades a políticas públicas, muitos estudantes precisam sair dos quilombos para completar a educação escolar e perdem, assim, a oportunidade de aprender com os seus.
O direito à educação quilombola está previsto nas Diretrizes Nacionais Curriculares da Educação Escolar Quilombola – DNCEEQ (Resolução n. 08/2012 – CNE/CEB), bem como na Resolução CONANDA número 181/2016, que garante que a educação “deve ser ofertada por estabelecimentos de ensino localizados em comunidades reconhecidas pelos órgãos públicos responsáveis como quilombolas, rurais e urbanas, bem como por estabelecimentos de ensino próximos a essas comunidades e que recebem parte significativa dos estudantes oriundos dos territórios quilombolas.” Este direito também está previsto no novo Plano Nacional de Educação, criado com o projeto de Lei 2614/24 do Poder Executivo, mas a Câmara dos Deputados ainda não marcou data para votação. Por enquanto, ainda vale o plano estabelecido para o período 2014-2024, que deve ser prorrogado até o próximo ano e não faz qualquer referência a educação de comunidades tradicionais.
Para os estudantes quilombolas, são gritantes as diferenças da educação dentro e fora dos quilombos. É o que contam as meninas quilombolas Maria Leontina Nunes Freitas, 18 anos, de Conceição das Crioulas (PE), e Rhuanny Batista Albernaz, 19 anos, de São Judas Tadeu (PA), em artigo publicado no site Alma Preta. As duas acabaram de concluir o curso da Escola Nacional de Formação de Meninas Quilombolas, uma iniciativa do Coletivo Nacional de Educação da CONAQ com apoio do Fundo Malala. “Concluir os estudos dentro da própria comunidade é uma experiência única porque, além de estarmos rodeadas por pessoas que entendem a cultura, a história e as tradições da população quilombola, também permite a construção de laços fortes com os professores e colegas, que se tornam uma rede de apoio para as estudantes”, diz um trecho do artigo.
As meninas lembram também que ter professores especializados em conteúdo quilombola é fundamental, já que eles levam para a sala de aula a história e os saberes de seus antepassados: “Aprendemos sobre a resistência do povo que nos originou e que nos inspira a lutar pela preservação de tudo o que envolve essa ancestralidade”, afirmam elas, lembrando ainda que estudar dentro dos quilombos contribui para a continuidade das ações de preservação da biodiversidade praticadas há séculos pelos seus ancestrais: “A cultura e a agricultura quilombolas estão enraizadas em práticas sustentáveis de manejo da natureza.”
Lideranças quilombolas assinam embaixo desta necessidade de uma educação diferenciada para as crianças dos territórios. Considerado um guardião dos saberes ancestrais quilombolas, Mestre Naldo, líder da comunidade Custaneira, no Piauí, e coordenador estadual da CONAQ, acredita que a educação sobre a cultura afro-brasileira é fundamental para o aumento da representatividade dos povos afrodescendentes no Brasil. Bisneto de escravizados, Mestre Naldo faz questão de ensinar aos mais jovens, dentro do quilombo, os saberes, as artes ancestrais e a prática das religiões de matriz africana. Para ele, esses ensinamentos são um instrumento de resistência e preservação da cultura ancestral afrodescendente.
https://www.mpma.mp.br/arquivos/CAOPIJ/docs/res-181.pdf
https://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Projetos/Ato_2023_2026/2024/PL/pl-2614.htm
Arte: Conaq