‘Play’ no futuro indígena

‘Play’ no futuro indígena

Por Vinícius Leal 

Uma câmera na mão e 305 ideias na cabeça, que serão contadas em 274 línguas diferentes. Este Acampamento Terra Livre (ATL) não vai ser igual àqueles 18 que passaram: agora, os povos indígenas fazem parte do governo. Com lideranças como Sonia Guajajara, Joênia Wapichana, Weibe Tapeba e Célia Xakriabá, eles têm o seu próprio ministério, o comando da Funai e da Sesai e uma representação forte no Congresso. Depois de 523 anos conquistaram, finalmente, o direito de escolherem seus papéis. Caberá às novas gerações não só registrá-la e contá-la ao mundo, como garantir que ela não seja passageira.

Em meio a tantas conquistas e diante de velhos (e novos) desafios, qual será o futuro do movimento indígena? A resposta está no presente, representado por sua juventude, parte da construção deste novo hoje e protagonista do amanhã. Usando as lentes de seus celulares, câmeras e drones esses jovens vêm revolucionando e reinventando o movimento indígena, não apenas ao se apropriarem de ferramentas das novas tecnologias, mas também se apoderando do direito de narrar suas próprias histórias, culturas e reivindicações, antes filtradas por olhares estrangeiros. E essa produção vem circulando mundo afora.

Uma nova turma de cineastas, roteiristas, fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas, produtores culturais, artistas e, acima de tudo, ativistas, aposta no audiovisual e nas ferramentas de monitoramento territorial como instrumentos para alçar, definitivamente, os povos originários a protagonistas do debate político, socioeconômico e climático global. Afinal, eles são os guardiões de 80% da biodiversidade da Terra. São novas formas de lutar, com o olho no futuro e os pés na ancestralidade. O caminhar dessa luta será determinante não apenas para as próximas gerações de indígenas, mas para todos os seres vivos do planeta.

As novas tecnologias e a determinação dessa juventude têm ajudado de forma decisiva a ecoar pelo mundo afora a importância da luta pela proteção dos direitos e dos modos de vida dos povos tradicionais, e o papel da demarcação dos territórios para essa luta. É o que vêm fazendo os jovens Munduruku da região do Médio Tapajós para proteger a Terra Indígena Sawré Muybu, no Pará. Eles não apenas retomaram a autodemarcação de suas terras, como criaram métodos revolucionários de proteção e vigilância, que viraram referência para outras iniciativas semelhantes. Tudo devidamente documentado no curta-metragem “Autodemarcação Já!”. 

Aldira Akai, Beka Saw e Rilcelia Akay, do Coletivo Audiovisual de Mulheres Munduruku Daje Kapap Eypi, fizeram um registro da atuação dos indígenas de seu povo para percorrer e monitorar sua terra ancestral, desde a autodemarcação do território – um trabalho que começou em 2018 –, com placas de sinalização, até o trabalho constante de inspeção para expulsar invasores e desmatadores. O curta mostra como a junção das tecnologias de monitoramento e audiovisual podem contribuir para a luta dos Munduruku, e destaca a importância da demarcação para a proteção dos direitos e do bem viver dos povos indígenas. Não à tôa, a demarcação dos territórios é o tema central do ATL deste ano, que defende que, ‘sem demarcação, não há democracia’.

A defesa territorial também é o objetivo dos jovens indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, que, armados não mais apenas com arcos e flechas, mas com GPS, drones e câmeras, ajudam a proteger suas terras ancestrais de invasores. A luta dos Uru-Eu-Wau-Wau em defesa das suas terras ganhou o mundo por meio do documentário “O Território” (2022). Coproduzido pela jovem liderança indígena brasileira Txai Suruí e a National Geographic, o filme foi premiado em alguns dos principais festivais de cinema, como o Sundance, e hoje é exibido na plataforma de streaming Disney+. 

E não para por aí: da viagem em realidade virtual conduzida pela cacica Raquel Tupinambá, que guia o espectador por entre as florestas e rios da região do Tapajós na obra “Amazônia Viva” – ganhadora do prêmio de melhor filme no Festival Planeta, em Barcelona, este ano –, aos conflitos de terra envolvendo Guarani Kaiowá e fazendeiros em Mato Grosso do Sul, pano de fundo do premiado documentário “Vento na Fronteira”, a assinatura originária está presente.  

Essa nova estratégia de ocupação de espaços é uma das tantas conquistas que alçaram o movimento indígena a este novo patamar, e um instrumento crucial no processo de derrubar preconceitos, fazendo com que todo o mundo possa conhecer a luta dos povos originários através de uma nova lente: a da juventude indígena. Se os caminhos do porvir cabem a essa geração, os primeiros passos anunciam uma jornada promissora rumo a um futuro que, bem nos disseram antes, é ancestral. Olho na terra e na tela.

Movimento indígena pelo bem viver do planeta

Movimento indígena pelo bem viver do planeta

Por Eliane Xunakalo*

Estamos no abril indígena, mês que marca a luta dos povos originários. Este ano, com nossa imensa diversidade – somos 305 povos no Brasil, falantes de 274 línguas – representada nos principais espaços de poder do país. Com 86 territórios indígenas, Mato Grosso é um pequeno reduto dessa diversidade: aqui vivem 43 povos diferentes, que representam nada menos que 14% de todas as etnias do país. 

Essa diversidade se reflete também na sociedade. Nossos traços, nossos cabelos, nosso sangue estão presentes em cada cidadão mato-grossense, para não falar da vasta herança cultural. Apesar disso, Mato Grosso não elegeu indígenas para o parlamento e pouco tem contribuído com a principal luta de seus povos originários: o bem viver. E, por bem viver, a gente entende a proteção das florestas, dos rios, da biodiversidade e da nossa cultura; a proteção do nosso território. 

Quando alcançarmos nosso bem viver, o planeta estará salvo. Afinal, os povos indígenas são guardiões de 80% da biodiversidade do planeta, apesar de serem 5% da população mundial. Em Mato Grosso a gente também vem tentando defender o nosso bem viver, por uma questão de sobrevivência – nossa e do planeta. Uma análise do ICV com base em dados do Prodes, mostrou que, entre agosto de 2021 e julho de 2022, menos de 3% do desmatamento no Cerrado aconteceram em terras indígenas, o que reforça aquilo que todos já sabemos: que reconhecer e proteger territórios tradicionais é a melhor estratégia contra crimes ambientais e a favor do clima do planeta.  

Mas manter essa proteção não tem sido nada fácil, ainda mais quando não se tem apoio dos governos e parlamentos. Nos três primeiros meses de 2023, Mato Grosso foi o estado que mais desmatou a Amazônia, contribuindo e muito para a devastação no bioma atingir o segundo maior índice desde 2015. Sozinho, o estado destruiu 89% do que Amazonas e Pará desmataram juntos. O cenário afasta Mato Grosso do compromisso assumido em 2015, na Conferência do Clima, em Paris, de reduzir o desmatamento para 571 km² por ano até 2030: só nos três primeiros meses de 2023 foram desmatados 311 km². 

Nos últimos anos, a cobiça por nossas riquezas só cresceu, enquanto os mecanismos de garantia de nossos direitos foram, cada vez mais, fragilizados. O exemplo mais recente é o Projeto de Lei Complementar (PLC) 17, de 2023, em tramitação na Assembleia Legislativa, que exclui a representação indígenas no Conselho Estadual de Educação, medida considerada inconstitucional pela Defensoria Pública da União (DPU).   

O PLC 17 é o caso mais recente, mas está longe de ser a única ameaça aos povos de Mato Grosso. Direitos indígenas são atropelados por empreendimentos minerários, agropecuários e hidrelétricos, que avançam mesmo sem consulta prévia e apesar dos impactos. É o que vem acontecendo na sub-bacia do Juruena, onde vivem 20 povos indígenas, e que ajuda a dar vida ao majestoso Tapajós. Um estudo recente da OPAN revelou que, dos 167 projetos de empreendimentos hidrelétricos pensados para a região, 36 são de alto risco, sendo 27 de risco altíssimo por estarem a menos de 5 km de TIs ou comunidades tradicionais. E isso inclui as PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) e CGHs (Centrais Geradoras Hidrelétricas) que, da forma que estão sendo planejadas, geram um impacto enorme na vida dos povos tradicionais. 

Além dos indígenas, existem mais de uma centena de territórios de quilombolas e ribeirinhos que lutam pelos rios em completa invisibilidade. E sabe quem perde com isso? Todo mundo, até quem acha que saiu lucrando.

É por isso que a FEPOIMT decidiu promover o primeiro Acampamento Terra Livre (ATL) de Mato Grosso, com quatro dias de troca de saberes e audiências públicas no centro político e administrativo de Cuiabá: a Praça Ulisses Guimarães. O ATL-MT nasce como a representação da força do movimento indígena e como um espaço de escuta, intercâmbio cultural e diálogo entre todos – indígenas, sociedade em geral, parlamentares e os governos – para debater medidas e projetos que impactam nossos territórios, violam nossos direitos e afetam nossas vidas. 

Estamos levando nossa luta para a praça pública porque vamos precisar de reforços não só nas ruas e redes, mas nos poderes Executivo e Legislativo, para transformar a garantia de direitos em políticas públicas. Precisamos dar visibilidade às questões que afetam os povos indígenas porque, se impacta nossos territórios, cedo ou tarde impactará sua vida também. Quando lutamos por nossas terras ancestrais, lutamos pela Mãe Terra e pelo futuro de todos os seus filhos, sem distinção. 

Por isso, é preciso que todos conheçam nossa diversidade e se reconheçam como parte dela. Esse é o caminho que precisamos tecer para transformar o dissenso, comum a toda diversidade, em um consenso: o bem do planeta para o bem viver de todos os povos. É como nos dizia nossa grande liderança Aritana Yawalapiti: ‘Estivemos semeando e, agora, precisamos regar’.

*Eliane Xunakalo é presidente da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT)

Estética ancestral

Estética ancestral

Por Vinícius Leal

Desde que o Brasil foi ‘des-coberto’ vê-se toda nudez ser castigada sem ter consciência a respeito de quem, de fato, está nu. O ato de existir vem sendo elaborado, até então, em cima de diversos aspectos da vida social: político, econômico, cultural… A moda como expressão da necessidade humana de afirmar sua identidade coloca-se em um local estratégico, uma vez que se situa entre o indivíduo e o meio no qual ele está inserido.

Dessa relação desnudam-se inúmeros sentidos de ser e estar no mundo. O que para a sociedade não-indígena se manifesta como uma identificação com grupos culturais, tendências ou estéticas construídas, para os povos originários é uma afirmação política de resistência em uma sociedade que homogeneiza tudo; é parte de uma relação profunda com seu passado ancestral. Sabe-se de onde vem e isto guia o sentido para onde se quer ir. 

Funciona como um espelho de quem se é. A estética e a arte estão na essência e no âmago da existência dos povos. Por isso são tão verdadeiras. Darcy Ribeiro dizia que toda tecnologia desenvolvida a partir do pensar e do fazer indígena tem um sentido de ser estético e artístico muito forte. Tudo é criado como manifestação da existência indígena. 

Seja a arte plumária dos Kamaiurá, ou os grafismos dos Sateré-Mawé, passando pelo cuidado com os cabelos característico das indígenas Kayapó, até os adornos circulares usados na cabeça  pelos Ashaninka, percebe-se que cada povo expressa sua própria estética e sua arte em uma amplitude de cores e formas, o que torna a moda indígena fundamentalmente diversa, na proporção à variedade de nações e povos existentes no Brasil: 305 para ser mais exato. 

Com a recente e histórica ocupação dos povos originários em inúmeros espaços de poder, seja nas aldeias, nas cidades, na política, nas telas – incluindo as digitais –, nos palcos ou passarelas, a estética e a moda indígenas alcançam um novo patamar de significado para os brancos: seus elementos se transmutam em sinônimo de empoderamento, manifestação política e marca de resistência de um Brasil ancestral.

“Antes, nós tínhamos receio [de usar a moda indígena na cidade] por causa do preconceito. De andar pintado também. Mas, hoje em dia, não”. A estilista e artesã indígena Yrá Tikuna, que vem despontando no mercado da moda do Amazonas para o resto do país, mostra que essa virada de chave é parte de uma história que vem sendo consolidada. 

Após quatro anos de um governo extremamente nocivo aos povos originários, como foi o do ex-presidente Jair Bolsonaro, a retomada desta terra indígena chamada Brasil passa pela comunicação estética que somente a moda pode proporcionar: espalhar uma ideia capaz de ‘reflorestar corações e mentes’, parafraseando Sônia Guajajara, de forma orgânica e coerente com o que se é. 

Os vestidos com mangas esvoaçantes de liberdade da deputada federal Célia Xakriabá; os brincos de penas que se assemelham a flores que adornam o rosto da ativista e influenciadora digital Sâmela Sateré-Mawé; ou as pinturas com tinta natural de jenipapo que desenham o corpo da cantora e compositora Kaê Guajajara em suas apresentações musicais, são ocupação potente destes novos tempos.  

Célia, Sâmela e Kaê carregam consigo texturas, cores e formatos que estão para além da roupa, maquiagem e acessórios. A moda indígena é amuleto que alimenta seu empoderamento. Em seus diferentes espaços de poder, elas fazem do próprio corpo território de expressão artística de poder, política e resistência. E mais: da possibilidade de transformação da realidade a que pertencem. 

 

O Brasil Yanomami: um povo em muitos

O Brasil Yanomami: um povo em muitos

A designação Yanomami carrega consigo a ideia de território da mesma forma que a expressão Amazônia remete a uma imensidão verde que ocupa quase toda a porção Norte do Brasil. Esse imaginário é o máximo que uma sociedade que não se enxerga como parte da natureza consegue materializar. 

Quantas amazônias cabem em um bloco de massa verde que se espalha ao longo de nove estados brasileiros? Quando se fala em Terra Indígena Yanomami compara-se, frequentemente, o tamanho da área – que chega a ser maior que o território de Portugal ou duas vezes o tamanho da Suíça – mas esquece-se que, justamente por essa magnitude, há uma diversidade étnica e linguística não dimensionada. Somos um Brasil que não se dá conta de sua riqueza. E não estamos falando de ouro.

A TI Yanomami (TIY) é a maior área indígena do Brasil, o primeiro território demarcado e uma das mais importantes áreas de floresta contínua do país. Localizada na fronteira com a Venezuela, espalha-se pelos estados de Amazonas e Roraima e abriga povos que ali se articulam desde sempre em trocas, circulação de pessoas, cultivos agrícolas, saberes, narrativas, línguas.  

Por trás do que imaginamos como povo Yanomami está um conjunto de sete subgrupos já identificados: Ŷaroamë, Yanomamö/Yanonami, Yanomami/Yanomam, Yanomae, Yanomama, Sanöma e Ninam ou Yanam (Xiriana e Xirixana). Uma diversidade expressa em uma população de 31.007 indígenas, conforme dados recentes do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana.  

Talvez estejamos longe de abarcar a complexidade deste povo que é um e que são muitos, um pequeno Brasil dentro do Brasil. Talvez porque sequer saibamos o que venha a ser o Brasil.  

O povo Yanomami sabe que a terra não é um mero espaço geográfico recheado de minério. Hoje, o território concentra 448 pedidos de requerimentos de todo o tipo junto à Agência Nacional de Mineração (AMN). É a área com maior número de petições. 

A terra Yanomami é uma entidade viva: a Urihi ou terra-floresta é a morada de uma riqueza cultural incalculável, onde vivem falantes de seis línguas e dezesseis dialetos; onde cada comunidade é independente, mas as decisões são tomadas por consenso, frequentemente após longos debates. Onde todos têm o direito à palavra e onde vivem ainda os Ye’kwana, grupo pertencente a outra família linguística, a karíb. Onde a diferença não representa desigualdade. 

Essa imagem sequer consegue ser materializada em nossa sociedade em sua completa profundidade. Dessa fina teia de respeito e convivência, estabeleceu-se um modelo de governança próprio. 

Em seu arranjo identitário, os Yanomami se organizam em sete associações próprias, além de uma organização Ye’kwana, que se mostraram fundamentais como articuladoras de suas regiões de abrangência para a construção do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). Desse processo nasceu o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, responsável pela tomada de decisão em toda a TIY, reunindo lideranças comunitárias, os perioma – os mais experientes – e xamãs. 

A trajetória de construção do PGTA deu origem também ao Protocolo de Consulta dos Povos Yanomami e Ye’kwana, publicado em 2019. Uma jornada que afirma a habilidade e o refinamento da governança yanomami em meio à sua complexidade logística, linguística, cultural e territorial. Um esforço que começou em 2015 e terminou em 2018.   

“A organização política yanomami e ye’kwana funciona como uma malha, em que as comunidades são nós e se interconectam diretamente apenas com os nós mais próximos. A percepção local sobre toda a extensão dessa malha só se faz necessária na relação com os não indígenas, de onde surge o desafio de ampliar a unidade de governança do nível local para toda a TIY”, diz trecho do artigo da bióloga Marina A. R. de Mattos Vieira, doutoranda em Ciência Política da Unicamp, que explica essa complexidade para que os napëpë – brancos, o outro ou inimigo, segundo os Yanomami – consigam entender. 

Em um território vasto e ditado pela dinâmica dos ciclos da natureza é possível conviver com quantas maneiras de viver? A identificação de pelo menos seis grupos indígenas isolados dentro do território yanomami mostra que a multiplicidade pode ser a maior força de um povo que entende a sua unidade como algo maior do que as diferenças. Talvez a TI Yanomami seja o Brasil que deu certo, apesar de todas as tragédias.

Saiba Mais: 

Quais são e quando nasceram as associações indígenas Yanomami? 

Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca) – 1998

Hutukara Associação Yanomami (HAY) – 2004 

Associação Wanaseduume Ye’kwana (Seduume) – 2006

Associação Yanomami do Rio Marauiá e do Rio Preto (Kurikama) – 2013; 

Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima (Taner) – 2015 

Associação das Mulheres Kumirãyõma (Amyk) – 2015 

Hwenama Associação dos Povos Yanomami de Roraima (Hapyr), atual Urihi – 2016 

Lavar as mãos com água suja

Lavar as mãos com água suja

Bastou a gente demonstrar um pingo de bom senso para sermos eleitos os novos salvadores da pátria – melhor dizendo, do mundo. Foi só o governo tomar medidas óbvias, como retomar o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), criar um ministério para os povos originários e lhes entregar o comando da Funai para que uns e outros acreditassem que resolveríamos nosso sufoco ambiental sozinhos. Se esqueceram que boa parte dos problemas que enfrentamos na área têm cúmplices fora de nossas fronteiras.

O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU vem sendo tratado há anos como aquele profeta de rua que caminha carregando um cartaz escrito “O fim do mundo está próximo”; ninguém parece lhe dar bola. A cada ano ele lança um relatório mais apocalíptico que o outro, porque nenhuma ação efetiva é tomada. O deste ano, divulgado no último dia 20, é de arrepiar as sobrancelhas: temos até 2030 para reduzir pela metade as emissões por queima de combustíveis fósseis, ou vamos encarar uma elevação de 3°C na temperatura média global até o fim do século. Tá tranquilo por que até lá já terá desencarnado? Pois lembre-se que esse aumento será gradual, um verão mais sufocante que o outro. 

Com 2ºC a mais na temperatura média do planeta, 99% dos recifes de coral vão ouvir a Marcha Fúnebre de Chopin; chuvas fortes, que costumavam cair uma vez por década, já são 30% mais comuns e, com 3°C de aquecimento, vão desabar até três vezes a cada dez anos. A continuar essa insanidade, as secas serão quatro vezes mais frequentes e as ondas de calor, quase três. Isso sem falar de outros fenômenos climáticos extremos, como a temporada de furacões que varrem o Atlântico Norte. Nostradamus era um otimista perto disso.  

Quando em campanha, o presidente Joe Biden prometeu mundos e fundos. Mas já descumpriu a promessa de proibir “novas licenças de petróleo e gás em terras e águas públicas”: ele acaba de liberar novas explorações no Alasca. Christy Goldfuss, que foi diretora executiva do Conselho de Qualidade Ambiental do governo Obama e hoje é diretora de impacto de políticas da ONG internacional Conselho de Defesa dos Recursos Naturais, calcula que, em 30 anos de concessão, o chamado Projeto Willow deve emitir 239 milhões de toneladas de gases do efeito estufa: “Essa decisão é ruim para o clima, ruim para o meio ambiente e para as comunidades da população nativa do Alasca, que eram contrárias a isso, e sentem que suas vozes não foram ouvidas”.

A boa notícia é que ainda dá para adiar o fim do mundo; mas, para isso, os países mais ricos e que mais contribuem com as mudanças climáticas precisam realmente fazer a sua parte. E isso vai exigir meter a mão no bolso. Tirar pessoas de zonas de risco é uma prioridade. “Temos que reduzir as emissões em 50% até 2030 e 100% até 2050, e isso é possível com a tecnologia que a gente tem hoje”, afirma o físico Paulo Artaxo, professor da USP e membro do IPCC, entre dezenas de outras credenciais. “Há cerca de 3,5 bilhões de pessoas que vivem em condições extremamente vulneráreis, como vimos recentemente em São Sebastião. Essas populações têm 15 vezes mais chances de morrerem devido a eventos climáticos extremos”, conclui.

Ninguém tem tanto conhecimento como os povos originários para preservar a Amazônia; também não há dúvidas sobre a importância da maior floresta tropical do planeta para a regulação do clima global. Logo, protegê-los é outra prioridade. Todos se sensibilizaram com as condições desumanas a que os Yanomami vinham sendo submetidos; mas muitos dos que emitiram notas de repúdio são parte do problema. 

Segundo um relatório do Instituto Escolhas, divulgado no mês passado, metade do ouro comercializado pelo Brasil entre 2015 e 2020 foi extraído de terras indígenas. Os principais compradores são empresas do Canadá (42%), Suíça (20%) e Reino Unido (11%). “Esse ouro chega aqui na Suíça cheio de sangue. O Estado brasileiro é culpado pelas mortes que ocorrem em nossos territórios, e vocês que compram também são”, desabafou Maria Leusa Munduruku, presidente da Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn, em visita ao país. 

No dia 2 de fevereiro, a Comissão Europeia aprovou novas regras que diminuem os níveis permitidos de resíduos de dois agrotóxicos em alimentos: a clotianidina e o tiametoxam, substâncias mortais para as abelhas e usadas pelo Brasil, um dos principais exportadores de comida para a Europa. E o fizeram como se eles não tivessem nada a ver com isso. Essas substâncias são proibidas naquele continente desde 2018, mas os europeus continuam a fabricá-los e exportá-los. O “Atlas dos Pesticidas 2022”, produzido pela Fundação Heinrich Böll, registra que o uso de pesticidas no mundo aumentou 80% desde 1990. Pode ser coincidência, mas daquele ano até 2019, houve 75% a mais de mortes causadas pelo câncer.

Os maiores fabricantes de pesticidas do planeta são Syngenta (Suíça/China), Bayer e BASF (Alemanha). O Brasil compra a maior parte de seu veneno deles. “Em 2019 estiveram entre eles pelo menos 14 ingredientes ativos altamente perigosos que não são mais permitidos na União Europeia”, diz o texto. Foram proibidos por causarem efeitos neurológicos e prejudicarem a função sexual e a fertilidade, mas ainda são livremente comercializados no Brasil. Segundo o Atlas, o fato de a legislação brasileira ser excessivamente tolerante é a principal causa desse absurdo. OK, a gente assume a nossa parcela de culpa. Mas não seria mais fácil proibir a fabricação dessas substâncias? Assim, o problema seria resolvido de vez.

Enquanto o mundo não entra nessa luta pra valer, o mínimo que um país candidato a retomar a liderança global no enfrentamento à crise do clima precisa fazer é o dever de casa. A Frente Parlamentar Agropecuária – nome da fantasia da bancada ruralista – mantém seu apetite insaciável e conta com mais de 300 representantes no Congresso Federal. Eles já deixaram claro que vão defender bandeiras como o PL do Veneno e o PL 191, que abre terras indígenas para o agronegócio e a mineração, e barrar iniciativas como Projeto de Lei 2159/22, de Joênia Wapichana, que cria regras para rastrear a comercialização e o transporte de ouro no país. 

A luta contra o desmatamento e o uso abusivo de agrotóxicos vai ser dura. Da mesma forma, combater o garimpo ilegal se torna uma tarefa ainda mais árdua quando a freguesia é grande. Não temos como vencer essa batalha sozinhos, e uma forcinha do resto do mundo cairia bem. Nosso futuro depende de a própria Humanidade perceber que, além da união dos povos em torno de metas sustentáveis e belos discursos, precisamos de ação efetiva sem pensar nos ganhos, mas sim nas perdas e danos. Afinal, o planeta é mais importante do que qualquer empresa ou país. É desse tipo de cumplicidade que precisamos.

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