‘Play’ no futuro indígena

‘Play’ no futuro indígena

Por Vinícius Leal 

Uma câmera na mão e 305 ideias na cabeça, que serão contadas em 274 línguas diferentes. Este Acampamento Terra Livre (ATL) não vai ser igual àqueles 18 que passaram: agora, os povos indígenas fazem parte do governo. Com lideranças como Sonia Guajajara, Joênia Wapichana, Weibe Tapeba e Célia Xakriabá, eles têm o seu próprio ministério, o comando da Funai e da Sesai e uma representação forte no Congresso. Depois de 523 anos conquistaram, finalmente, o direito de escolherem seus papéis. Caberá às novas gerações não só registrá-la e contá-la ao mundo, como garantir que ela não seja passageira.

Em meio a tantas conquistas e diante de velhos (e novos) desafios, qual será o futuro do movimento indígena? A resposta está no presente, representado por sua juventude, parte da construção deste novo hoje e protagonista do amanhã. Usando as lentes de seus celulares, câmeras e drones esses jovens vêm revolucionando e reinventando o movimento indígena, não apenas ao se apropriarem de ferramentas das novas tecnologias, mas também se apoderando do direito de narrar suas próprias histórias, culturas e reivindicações, antes filtradas por olhares estrangeiros. E essa produção vem circulando mundo afora.

Uma nova turma de cineastas, roteiristas, fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas, produtores culturais, artistas e, acima de tudo, ativistas, aposta no audiovisual e nas ferramentas de monitoramento territorial como instrumentos para alçar, definitivamente, os povos originários a protagonistas do debate político, socioeconômico e climático global. Afinal, eles são os guardiões de 80% da biodiversidade da Terra. São novas formas de lutar, com o olho no futuro e os pés na ancestralidade. O caminhar dessa luta será determinante não apenas para as próximas gerações de indígenas, mas para todos os seres vivos do planeta.

As novas tecnologias e a determinação dessa juventude têm ajudado de forma decisiva a ecoar pelo mundo afora a importância da luta pela proteção dos direitos e dos modos de vida dos povos tradicionais, e o papel da demarcação dos territórios para essa luta. É o que vêm fazendo os jovens Munduruku da região do Médio Tapajós para proteger a Terra Indígena Sawré Muybu, no Pará. Eles não apenas retomaram a autodemarcação de suas terras, como criaram métodos revolucionários de proteção e vigilância, que viraram referência para outras iniciativas semelhantes. Tudo devidamente documentado no curta-metragem “Autodemarcação Já!”. 

Aldira Akai, Beka Saw e Rilcelia Akay, do Coletivo Audiovisual de Mulheres Munduruku Daje Kapap Eypi, fizeram um registro da atuação dos indígenas de seu povo para percorrer e monitorar sua terra ancestral, desde a autodemarcação do território – um trabalho que começou em 2018 –, com placas de sinalização, até o trabalho constante de inspeção para expulsar invasores e desmatadores. O curta mostra como a junção das tecnologias de monitoramento e audiovisual podem contribuir para a luta dos Munduruku, e destaca a importância da demarcação para a proteção dos direitos e do bem viver dos povos indígenas. Não à tôa, a demarcação dos territórios é o tema central do ATL deste ano, que defende que, ‘sem demarcação, não há democracia’.

A defesa territorial também é o objetivo dos jovens indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, que, armados não mais apenas com arcos e flechas, mas com GPS, drones e câmeras, ajudam a proteger suas terras ancestrais de invasores. A luta dos Uru-Eu-Wau-Wau em defesa das suas terras ganhou o mundo por meio do documentário “O Território” (2022). Coproduzido pela jovem liderança indígena brasileira Txai Suruí e a National Geographic, o filme foi premiado em alguns dos principais festivais de cinema, como o Sundance, e hoje é exibido na plataforma de streaming Disney+. 

E não para por aí: da viagem em realidade virtual conduzida pela cacica Raquel Tupinambá, que guia o espectador por entre as florestas e rios da região do Tapajós na obra “Amazônia Viva” – ganhadora do prêmio de melhor filme no Festival Planeta, em Barcelona, este ano –, aos conflitos de terra envolvendo Guarani Kaiowá e fazendeiros em Mato Grosso do Sul, pano de fundo do premiado documentário “Vento na Fronteira”, a assinatura originária está presente.  

Essa nova estratégia de ocupação de espaços é uma das tantas conquistas que alçaram o movimento indígena a este novo patamar, e um instrumento crucial no processo de derrubar preconceitos, fazendo com que todo o mundo possa conhecer a luta dos povos originários através de uma nova lente: a da juventude indígena. Se os caminhos do porvir cabem a essa geração, os primeiros passos anunciam uma jornada promissora rumo a um futuro que, bem nos disseram antes, é ancestral. Olho na terra e na tela.

InfrAmazônia S.A.

InfrAmazônia S.A.

Caso exista um futuro distante, os arqueólogos teriam que escavar quilômetros de lixo até encontrarem um esqueleto. O biólogo americano Eugene F. Stoermer e o químico holandês Paul Crutzen lançaram no ano 2000 o conceito de “antropoceno” para denominar uma nova era geológica, que teria surgido do impacto da atividade humana. Em 2020, o Instituto Weizmann da Ciência, de Israel, confirmou a teoria: naquele ano, a massa dos artefatos produzidos pelo homem havia superado a de todos os seres vivos do planeta pela primeira vez na História.

Por outro lado, existiu uma civilização que só muito recentemente começou a ser descoberta pelo motivo oposto: desaparecer sem praticamente deixar vestígios. Ela ficava na Amazônia e aponta para o futuro da região – e, não, não era Ratanabá. Calcula-se que essa cultura, totalmente integrada à natureza – por assim dizer, biodegradável –, chegou a ter uma população de mais de 8 milhões de pessoas. “A principal infraestrutura da Amazônia é a floresta em pé”, reafirma essa ideia Maura Arapiun, secretária do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns, provável descendente desse povo. Seus rios são suas estradas e a mata é capaz de prover alimento e até energia para os que lá vivem. É uma lição do passado que deve voltar a ser posta em prática se quisermos salvá-la, e dar uma importante contribuição para que todos os habitantes do planeta tenham um futuro melhor.

“Precisamos de projetos para a Amazônia e não apenas na Amazônia”, diz a Carta de Alter, destinada aos candidatos à Presidência da República, lançada no último dia 6, elaborada pelo GT Infraestrutura – grupo formado por ONGs ambientalistas, movimentos sociais e organizações indígenas e quilombolas. O Brasil vem adotando um modelo econômico em que despreza os mais valiosos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo – suas imensas reservas de água, biodiversidade e multiculturalidade – para tratá-la como mina de ouro, futuro pasto ou lavoura, ou mera rota de commodities, que não beneficiam a população local, hoje estimada em 38 milhões de habitantes.

“Infraestrutura não pode ser sinônimo de estradas, portos para o trânsito de commodities, minérios e produção de energia, como tem sido até aqui. É necessária uma infraestrutura para a vida das pessoas e suas atividades econômicas”, diz Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia Ambiente da USP e autor do livro “Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”. Para se ter uma ideia, quatro das cinco maiores hidrelétricas do país ficam na Amazônia, enquanto 70% da população sem acesso à energia mora na região. Para esses brasileiros sobra apenas o bagaço da laranja.

Um dos efeitos colaterais da Usina de Belo Monte, por exemplo, foi fazer de esgoto a céu aberto o Rio Xingu em Altamira. Somente 58,9% da população da Região Norte têm água tratada e apenas 13,1% têm acesso a saneamento básico. Por que não investir mais nessa área? “Considerar o desenvolvimento urbano como processo fundamental para a sustentabilidade e bem-estar humano na Amazônia, com infraestruturas adequadas ao contexto local” é uma das propostas da Carta de Alter. “A proposta da Ferrogrão, por exemplo, a questão não é se o projeto é bom ou ruim, se pode melhorar, mas é anterior: por que o caminho é esse? Por que essa soja não pode sair por outro porto, como o de Santos?”, indaga o engenheiro civil especialista em políticas ambientais Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura.

Para o grupo, é fundamental que a participação da sociedade civil no processo que decide a necessidade de implementar novos megaempreendimentos na região. “Discutir um modelo novo de logística para a Amazônia, repensando prioridades e institucionalizando o processo decisório, resultando em boas práticas de planejamento, incluindo a avaliação de alternativas, ampla participação da sociedade em todas as etapas e o atendimento às demandas de promoção dos produtos da sociobiodiversidade”.

O que os amazônidas de hoje – e, por consequência, o Brasil e o planeta – precisam é de energia renovável sustentável, que não barre ou polua seus rios; investimento melhores condições de vida e em biotecnologia, que será a ponta-de-lança da nova economia; e de internet, para se conectarem com o resto do mundo para espalhar as boas novas que certamente virão da floresta.

 

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