Ferrogrão é atalho para o colapso

Ferrogrão é atalho para o colapso

O debate sobre a Ferrogrão voltou ao centro da agenda nacional. Apresentada como uma solução logística para o escoamento da produção de grãos, a ferrovia que ligaria Sinop (MT) a Miritituba (PA) representa, na prática, um projeto de alto risco socioambiental: ameaça de desmatamento em larga escala, invasão de territórios e contaminação dos rios amazônicos. Às vésperas da COP30 em Belém, a discussão sobre a Ferrogrão expõe a contradição entre o discurso climático do Brasil e os interesses do agronegócio. No artigo publicado originalmente em O Globo, Alessandra Munduruku e Renata Utsunomiya analisam como o projeto pode se transformar em um verdadeiro atalho para o colapso climático e agrícola.

Ferrogrão é atalho para o colapso

Ferrovia é vendida como solução logística, mas, na prática, significa mais desmatamento, invasões e veneno

Por Renata Utsunomiya e Alessandra Munduruku*

Na beira do Rio Tapajós, onde barcaças de soja e minério já rasgam malhadeiras e deixam peixes mortos, vemos uma amostra do que a Ferrogrão pode multiplicar. A ferrovia de 933 quilômetros entre Sinop (MT) e Miritituba (PA) é vendida como solução logística, mas, na prática, significa mais desmatamento, invasões e veneno sobre territórios e florestas.

Defensores dizem que a Ferrogrão reduziria as emissões em relação ao transporte rodoviário. Mas a conta não fecha: os impactos cumulativos — desmatamento, monocultura e agrotóxicos — mostram que não basta comparar combustíveis. Estudos da UFMG apontam que os municípios afetados concentram 9,8 milhões de hectares de florestas e savanas ainda intactas, sob risco de conversão em lavouras, fragilizando o equilíbrio das bacias dos rios Xingu e Tapajós.

O povo mundurucu já sente esses impactos. Nas terras Praia do Índio e Praia do Mangue, em Itaituba (PA), portos de soja contaminam a água e restringem a pesca. Se a ferrovia avançar, o transporte de grãos pelo Tapajós poderá aumentar sete vezes, agravando esse cenário.

Nem a lógica econômica sustenta o projeto. Estudo do Amazônia 2030 mostra que o retorno financeiro realista é até sete vezes menor que o projetado, significando mais subsídios pagos pela população para beneficiar Cargill, Bunge e Amaggi. Além disso, o mercado internacional exige rastreabilidade e desmatamento zero; produtos ligados à destruição podem ser barrados, inviabilizando o escoamento que o agronegócio diz querer facilitar.

A Ferrogrão é a espinha dorsal de um corredor que transforma a Amazônia em rota de commodities e condena o país a papel subalterno. Arrasta consigo mais portos e a conversão dos rios em hidrovias.

Em agosto, o governo incluiu os rios Madeira, Tocantins e Tapajós no Programa Nacional de Desestatização, permitindo que grandes empresas os transformem em hidrovias. No Tocantins, querem explodir o Pedral do Lourenção, berço de peixes e espécies únicas. Tudo em flagrante violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que garante a consulta livre, prévia e informada. E, às vésperas da COP30 em Belém, esse retrocesso fragiliza a credibilidade do Brasil diante do mundo.

É nesse contexto que o STF julgará a ADI 6.553 (sobre o trajeto da Ferrogrão) em 1º de outubro. A decisão não trata apenas de uma ferrovia, mas da autoridade da Constituição e da capacidade do país de limitar a pressão do agronegócio.

A ciência e a ancestralidade advertem que o desmatamento já compromete os “rios voadores” que sustentam as chuvas no Centro-Sul e que, sem floresta em pé, não há agricultura que sobreviva. E, com rios mortos, como veias abertas para os lucros do agro, qualquer futuro e soberania se esvai.

Mas há alternativas. Com regularização fundiária, demarcação e titulação de territórios, podemos garantir floresta viva, renda e equilíbrio climático. Em vez de beneficiar empresas estrangeiras, devemos fortalecer economias locais, diversificar a produção e valorizar a sociobiodiversidade. A Ferrogrão não é solução. É um atalho para o colapso climático, agrícola, alimentar e econômico do Brasil.

*Alessandra Korap Munduruku , líder indígena do Médio Tapajós, é presidente da Associação Indígena Pariri e vencedora do Prêmio Goldman

*Renata Utsunomiya , analista de políticas públicas de transporte na Amazônia do Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental, é doutora em ciência ambiental pela Universidade de São Paulo

Nós, as pessoas

Nós, as pessoas

Os primeiros estudos sobre o potencial hidrelétrico da Bacia do Tapajós datam de 1986, no governo José Sarney. Em 6 de novembro de 2009, em carta dirigida ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o povo Munduruku rechaçou completamente a ideia de construir barragens no rio: “Onde vamos morar? No fundo do rio ou em cima da árvore? Aximãyugu oceju tibibe ocedop am. Nem wasuyu, taweyugu dak taypa jeje ocedop am”. (“Não somos peixes para morar no fundo do rio, nem pássaros, nem macacos para morar nos galhos das árvores”). Os Munduruku se autodenominam Wuy jugu, “Nós, as pessoas”.

E esse espírito continua vivo: “A gente não negocia território, porque a gente não negocia a vida de nossos filhos e nem de nossos antepassados”, diz Alessandra Korap, vencedora do Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, em 2020. A liderança Munduruku lembrou que o problema não é só de seu povo: “Todos que vivem na Bacia do Tapajós podem ser prejudicados. O que aconteceu em Alter do Chão foi causado pelo garimpo no Jamanxim”, conta ela, referindo-se à lama que turvou as águas do balneário do Tapajós, vinda de um afluente a 300 km de distância, no fim do mês passado.

Mais de 15 mil Munduruku vivem em cerca de cem aldeias na região que já foi conhecida como Mundurukânia. Eles têm o direito constitucional de preservar o seu modo de vida tradicional, e este é totalmente baseado na ordem natural do rio. “Parece que somos só nós que bebemos água”, provoca Alessandra. De que adianta ter a maior reserva de água doce do planeta, o seu bem mais valioso, e tratá-la como esgoto? É ano de eleição. Por que nós, todas as pessoas, não exigimos de nossos candidatos à Presidência que se comprometam a enterrar de vez esse projeto? Tapajós livre! Cada eleitor é uma gota e cada gota conta.

A ideia de transformar a Amazônia numa central de energia vem dos tempos da ditadura. De lá para cá ela assombra a população que vive às margens de seus rios – e nenhum governo do pós-redemocratização a exorcizou definitivamente. Nem mesmo o cadáver insepulto de Belo Monte foi capaz. No fim de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) deu mais uma colher de chá de dois anos à Eletrobras, para que apresente novos estudos de viabilidade técnica e econômica para a construção de três grandes hidrelétricas na bacia do Tapajós. Só que esse prazo vem sendo sistematicamente prorrogado desde 2009, pois os anteriores sempre são reprovados. É como um pênalti que o juiz manda repetir até a bola entrar.

Em nome de quê? Ou de quem? O Rio Tapajós é o último grande afluente da margem direita do Amazonas a correr livre e o seu entorno, uma das áreas mais preservadas – e, portanto, valiosas – da Amazônia. Recentemente, outro elemento foi adicionado à trama: também no fim de janeiro, o Tribunal de Contas da União (TCU) sinalizou que deve dar sua bênção à privatização da Eletrobras. Assim não há como espantar essa pulga de trás da orelha.

De acordo com a – até segunda ordem – estatal, a Usina de Jamanxim teria uma potência de 881 mil kW; a de Cachoeira do Caí, 802 mil kW; e a de Cachoeira dos Patos, 528 mil kW. As três juntas atenderiam 5,5 milhões de famílias. A capacidade alardeada de Belo Monte é de 11.233 MW por mês, o suficiente para abastecer 60 milhões de pessoas; mas, no mundo real, a média mensal é de 4.571 MW. Quem compraria este carro usado?

 

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