Quem tem direito à memória? Quem pode figurar em um museu? Que histórias um país conta em seus panteões? Decisões políticas apontam quem será lembrado e quem será apagado. Decidem que cara e cor de pele terão heroínas, heróis, algozes, e qual lado da força terá sua versão perpetuada, cultuada, conhecida e reconhecida.
Por sorte, decisões políticas também são tomadas fora dos palácios. Em chão batido. Em território quilombola. E uma delas fez surgir o Museu Rústico Mãe Bernadete, a ser inaugurado em Pitanga dos Palmares, na Bahia, como parte da programação do 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola, entre os dias 16 e 18 de agosto.
Por mais de 50 anos vivenciado como Lavagem de São Gonçalo, o evento que celebra tradições ancestrais foi interrompido e voltou com nome de festival por ideia dela. A matriarca. A Ialorixá. Dos Palmares. Tal qual Zumbi, ela lutou. Lutou contra gananciosos, contra poderosos, contra injustiças. Lutou pelo bem-viver. Segurança alimentar. Saúde. Educação. E, o mais importante para seu povo, lutou pelo direito à terra.
Com acervo composto por objetos pessoais, roupas, premiações e comendas recebidas por Bernadete Pacífico, o museu será lugar de permanência da cultura afro-quilombola e do legado de todos que contribuíram, até mesmo com a vida, para a manutenção dos saberes e fazeres ancestrais em Pitanga dos Palmares. É o que me conta o filho dela, Jurandy Wellington Pacífico.
Mãe Bernadete foi uma dessas que contribuíram com a vida. Até o dia 17 de agosto de 2023, quando foi assassinada. Enquanto descansava com os netos. À noite. Foram vinte e dois tiros. Doze deles atingiram seu rosto. O que corrobora com o alerta que a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) vem fazendo: há um aumento assustador no número de lideranças mulheres assassinadas Brasil afora. E a Bahia, terra de Bernadete, lidera as estatísticas. Elas morrem torturadas. Morrem com laivos de humilhação e desdém. Morrem odiadas.
Morrem por exercer papel de destaque. Por serem mulheres. Ou os dois. Vulnerabilizadas pela ausência de políticas públicas que as protejam. Ou pela morosidade da implementação de políticas públicas que lhes garantam a regularização de seus territórios.
Mãe Bernadete. Viva em lembrança. Presente em cada palavra dita. Em cada gesto. Em cada conquista. Sua existência gigante salvaguardada no Museu Rústico de 25 metros quadrados. Uma construção de taipa. Erguida em mutirão.
Recebo fotos e vídeos da obra. Ninguém parece cansado. Há sol quente no céu de Simões Filho. Mas há mais calor, o humano, entre os que se unem em torno da estrutura. Entre 12 e 20 pessoas – trabalhando juntas dia após dia, até que o último naco de barro fosse posto nas entranhas das toras de madeira unidas e arranjadas em trama que lembra o xadrez do tecido. “É tudo feito à mão. Do jeito que eram nossas casas há 50 anos. É saber ancestral que estamos resgatando”, conta Jurandy.
Anos antes, em 2017, Mãe Bernadete perdeu um dos filhos, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, Binho do Quilombo. Ele também terá suas memórias abarcadas pelo Museu Rústico, entre outras lideranças do território, como Mestre Nilo e Matias dos Santos.
Binho foi assassinado a tiros como a mãe, tombada antes de ver o caso desvendado. Em julho, a Polícia Federal anunciou a prisão de dois suspeitos do crime. Mas para Jurandy ainda resta a pergunta: quem mandou matar Binho do Quilombo?
Não há respostas. E enquanto se espera por elas, no luto do verbo lutar, é urgente dar continuidade ao que vinha sendo feito. Com festival, arte e cultura. Com celebrações – a alegria é tecnologia ancestral. A religiosidade também. Jurandy se desdobra para organizar o evento que a mãe idealizou, ainda que lhe doa a saudade. É o primeiro sem tê-la como força de trabalho. O primeiro em que será homenageada, emprestando seu nome e o simbolismo nele contido a museu, prêmio e ao próprio evento.
Para que se conheça, respeite e beba da sua fonte, um legado precisa ser preservado. É o que o Museu Rústico vai assegurar daqui para a frente. Pitanga dos Palmares forja, com a mão na massa, ou melhor, no barro, o direito à memória, soprando aos quatro ventos do território negro: Mãe Bernadete – o legado continua.
*Waleska Barbosa é escritora, jornalista e correspondente da Uma Gota no Oceano em Brasília. Apresentadora do programa Quilombo de Wal, na TV Comunitária do DF, integra também a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF).
Pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos, segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). Uma delas foi Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete, morto em 2017. A matriarca do quilombo Pitanga dos Palmares foi assassinada na semana passada por lutar por justiça e pela proteção do território tradicional. Mãe Bernadete sabia que a regularização fundiária, com a titulação dos quilombos, é o primeiro passo para combater a violência contra a população quilombola. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.
Depois de ser adiado duas vezes seguidas, o novo Censo do IBGE finalmente revelou o tamanho de nosso coração quilombola:são 1,32 milhão de pessoas que pulsam em 1.696 municípios, em todas as regiões do Brasil – e em todos os estados, exceto Acre e Roraima. O instituto identificou 494 territórios oficialmente delimitados, que abrigam 203.518 moradores. Ou seja, a imensa maioria deles (87,4%) ainda reside no limbo da burocracia e da ganância de alguns. A Constituição de 1988 reconheceu sua existência e seus direitos, mas só agora eles começam a entrar na sala das decisões. Eles devem entrar.
É verdade que hoje há representantes quilombolas no Executivo e o Censo os localizou no mapa. Essa população e o Estado nunca tiveram tais ferramentas nas mãos: informação e a possibilidade de realizar. Chegou a hora de os quilombos se inserirem definitivamente no centro das decisões. Um exemplo prático: com esses dados detalhados sobre a localização das comunidades e o tamanho exato dessa a população – antes apontados como a razão de que para que as políticas públicas voltadas para eles estivessem absurdamente defasadas no orçamento federal – os recursos teriam mais chance de chegar aonde são mais necessários. A começar pelas ações de reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios quilombolas.
Para que isso aconteça, é preciso incluir políticas públicas exclusivamente voltadas à população quilombola no Plano Plurianual. Conhecido como PPA, ele define critérios e objetivos de longo prazo do governo. Uma prioridade é óbvia: a legalização da posse da terra, primeiro passo para garantir o acesso dos quilombolas a outros direitos constitucionais. De outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição, até agora, menos de 200 das cerca de 6 mil comunidades foram tituladas – o ponto final de um longo processo de regularização fundiária que passa por dois órgãos: Fundação Palmares e Incra. Nesse ritmo, só daqui a dois mil anos as 1.896 ações de ações em andamento serão concluídas.
A segunda maior concentração de quilombolas do país, cerca de 430 mil pessoas (32,1% do total), está na Amazônia Legal, que tem 148 quilombos titulados e outros 583 em processo de titulação. Nas terras que ocupam, o desmatamento é próximo do zero há 13 anos; sua importância no combate à crise climática é sabido. Mas as comunidades precisam ser legalizadas para que possam ser melhor protegidas pelo Estado. O tráfico e seus pistoleiros de aluguel são apenas mais uma ameaça. A maior é aquela desde sempre: a invasão de terras. Não se trata apenas de proteger a natureza, mas também de se salvar vidas humanas, como a de Mãe Bernadete Pacífico.
Mãe Bernadete era mulher no quinto país que mais pratica o feminicídio no mundo, um número que cresceu 6,1% em 2022, chegando a 1.437 mortas. É negra, e pessoas com a mesma cor de pele que ela têm três vezes mais chances de serem assassinadas, além de serem as que mais morrem pelas mãos do Estado: em média, cinco pessoas negras foram mortas, por dia, em ações policiais, em 2021. Em números totais: os negros representam 65% dos 2.154 óbitos registrados na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo estados monitorados pela Rede de Observatórios em Segurança Pública.Ela também era ialorixá, em tempos em que a intolerância contra religiões de matriz africana dispara: em 2020, foram registrados 86 casos de violência, enquanto, em 2021, eles chegaram a 244, um aumento de 183%. Mas foi covardemente assassinada aos 72 anos por questões fundiárias, dentro da associação do Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia.
Os assassinatos no campo tiveram um aumento de 30% entre 2021 (35 mortos) e 2022 (47, com nove adolescentes e uma criança entre eles), aponta a Comissão Pastoral da Terra. E as lideranças comunitárias são os alvos mais frequentes dessa violência. Mãe Bernadete exercia uma liderança natural, tanto religiosa como política, na sua comunidade, localizada na região metropolitana de Salvador (BA). Cerca de 290 famílias vivem no local de 8,54 km². A associação de moradores local reúne 120 agricultores que produzem farinha, frutas e verduras. Foi certificado em 2004, mas ainda não foi titulado. Por isso, é mais cobiçado.
De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos. A própria Bernardete pedia Justiça por seu filho, Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, morto por um grupo de homens armados em 2017. Ao legalizar territórios, a violência diminuirá. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.
Marco temporal é racismo fundiário (artigo de Biko Rodrigues)