Estética ancestral
Por Vinícius Leal
Desde que o Brasil foi ‘des-coberto’ vê-se toda nudez ser castigada sem ter consciência a respeito de quem, de fato, está nu. O ato de existir vem sendo elaborado, até então, em cima de diversos aspectos da vida social: político, econômico, cultural… A moda como expressão da necessidade humana de afirmar sua identidade coloca-se em um local estratégico, uma vez que se situa entre o indivíduo e o meio no qual ele está inserido.
Dessa relação desnudam-se inúmeros sentidos de ser e estar no mundo. O que para a sociedade não-indígena se manifesta como uma identificação com grupos culturais, tendências ou estéticas construídas, para os povos originários é uma afirmação política de resistência em uma sociedade que homogeneiza tudo; é parte de uma relação profunda com seu passado ancestral. Sabe-se de onde vem e isto guia o sentido para onde se quer ir.
Funciona como um espelho de quem se é. A estética e a arte estão na essência e no âmago da existência dos povos. Por isso são tão verdadeiras. Darcy Ribeiro dizia que toda tecnologia desenvolvida a partir do pensar e do fazer indígena tem um sentido de ser estético e artístico muito forte. Tudo é criado como manifestação da existência indígena.
Seja a arte plumária dos Kamaiurá, ou os grafismos dos Sateré-Mawé, passando pelo cuidado com os cabelos característico das indígenas Kayapó, até os adornos circulares usados na cabeça pelos Ashaninka, percebe-se que cada povo expressa sua própria estética e sua arte em uma amplitude de cores e formas, o que torna a moda indígena fundamentalmente diversa, na proporção à variedade de nações e povos existentes no Brasil: 305 para ser mais exato.
Com a recente e histórica ocupação dos povos originários em inúmeros espaços de poder, seja nas aldeias, nas cidades, na política, nas telas – incluindo as digitais –, nos palcos ou passarelas, a estética e a moda indígenas alcançam um novo patamar de significado para os brancos: seus elementos se transmutam em sinônimo de empoderamento, manifestação política e marca de resistência de um Brasil ancestral.
“Antes, nós tínhamos receio [de usar a moda indígena na cidade] por causa do preconceito. De andar pintado também. Mas, hoje em dia, não”. A estilista e artesã indígena Yrá Tikuna, que vem despontando no mercado da moda do Amazonas para o resto do país, mostra que essa virada de chave é parte de uma história que vem sendo consolidada.
Após quatro anos de um governo extremamente nocivo aos povos originários, como foi o do ex-presidente Jair Bolsonaro, a retomada desta terra indígena chamada Brasil passa pela comunicação estética que somente a moda pode proporcionar: espalhar uma ideia capaz de ‘reflorestar corações e mentes’, parafraseando Sônia Guajajara, de forma orgânica e coerente com o que se é.
Os vestidos com mangas esvoaçantes de liberdade da deputada federal Célia Xakriabá; os brincos de penas que se assemelham a flores que adornam o rosto da ativista e influenciadora digital Sâmela Sateré-Mawé; ou as pinturas com tinta natural de jenipapo que desenham o corpo da cantora e compositora Kaê Guajajara em suas apresentações musicais, são ocupação potente destes novos tempos.
Célia, Sâmela e Kaê carregam consigo texturas, cores e formatos que estão para além da roupa, maquiagem e acessórios. A moda indígena é amuleto que alimenta seu empoderamento. Em seus diferentes espaços de poder, elas fazem do próprio corpo território de expressão artística de poder, política e resistência. E mais: da possibilidade de transformação da realidade a que pertencem.