COP30 na Amazônia: da COP Indígena ao freio do metano, futuro em disputa
Por Maria Paula Fernandes*
A Amazônia está perigosamente próxima de seu ponto de não retorno. Cientistas alertam que o desmatamento e a degradação já ameaçam colapsar os sistemas que regulam chuvas, temperatura e biodiversidade em todo o hemisfério sul. Esse risco torna urgente cada negociação climática: não se trata apenas de compromissos diplomáticos, mas da sobrevivência de um bioma que sustenta a vida no planeta.
Receber a COP30 em Belém significou reconhecer essa urgência. Foi admitir que não há futuro climático sem os povos que defendem a floresta e sem os territórios que sustentam a vida. Belém mostrou que a agenda climática não pode ser conduzida apenas por tecnocratas ou grandes corporações. A pluralidade de vozes foi incorporada como parte da solução: indígenas, quilombolas, juventudes, cientistas, movimentos sociais e sociedade civil tiveram espaço para moldar os caminhos da transição. A presidência da COP adotou a lógica de Mutirão, reforçando que democracia e participação coletiva não são apenas valores abstratos, mas ferramentas concretas para enfrentar a crise ambiental.
Para a Gota, participar desta edição representou a síntese de uma trajetória construída com coerência e convicção. Desde Paris, na COP21, sempre estivemos lado a lado com os povos da floresta, apoiando sua inserção nos espaços multilaterais. Belém foi o ponto de virada: a consolidação de uma presença indígena inédita e estruturada. Nossa missão é clara: irrigar informação consistente, independente e envolvente para semear reflexão e colher transformação.
A obstinação da ministra Sonia Guajajara garantiu 900 lideranças indígenas fossem credenciadas na Zona Azul, mesmo diante da redução de credenciais pela UNFCCC, a maior delegação indígena já registrada em uma COP. Nos textos oficiais, os direitos territoriais foram finalmente reconhecidos e o direito à consulta prévia, livre e informada reafirmado. Esse resultado não surgiu do acaso: foi fruto de uma preparação política consistente, que incluiu o programa Kuntari Katu, responsável por formar diplomatas indígenas, e o ciclo COParente, que percorreu os estados brasileiros fortalecendo a capacidade de incidência nos espaços multilaterais.
A presença quilombola também alcançou um novo patamar. Com a CONAQ, a trajetória iniciada no Egito e consolidada em Cali avançou em Belém, onde os documentos finais mencionaram pela primeira vez os afrodescendentes e a defesa de seus territórios. Esse reconhecimento representou um marco simbólico e político: os quilombos foram inscritos de forma inédita na agenda climática global, reforçando que seus saberes e territórios são parte essencial das soluções para a crise ambiental.
O metano, por sua vez, foi colocado no centro das negociações. Em parceria com o Global Methane Hub, a Gota defendeu o “Freio de Emergência Climática”, lembrando que esse gás é responsável por cerca de um terço do aquecimento global e possui um potencial de aquecimento 80 vezes maior que o dióxido de carbono nos primeiros 20 anos após sua emissão. Historicamente negligenciado, recebendo apenas 1% dos recursos globais de mitigação, o metano finalmente ganhou protagonismo em Belém. Mais de US$ 600 milhões em novos investimentos foram anunciados para acelerar ações nos setores de resíduos, agricultura e energia. O relatório global reafirmou que cortar 30% das emissões até 2030 é uma das medidas mais rápidas e custo-efetivas para reduzir o aquecimento no curto prazo.
Dois instrumentos complementares nasceram em Belém: o Tropical Forests Forever Fund (TFFF), internacional, que rompe com a lógica de mercantilização da natureza e garante que ao menos 20% dos recursos sejam destinados diretamente às populações da floresta; e o Fundo Vítuke, brasileiro, voltado à gestão ambiental e territorial indígena. Ainda assim, a Amazônia se fez presente sob a sombra de contradições: mesmo diante da ameaça de exploração de petróleo na margem equatorial, os documentos oficiais não trataram da redução de combustíveis fósseis. Da mesma forma, a questão do desmatamento foi deixada de fora, revelando os limites da negociação multilateral diante de interesses econômicos persistentes.
A COP30 demonstrou que ciência e política precisam caminhar juntas. No caso do metano, os dados apresentados foram inequívocos: cortar emissões é não apenas possível, mas urgente e custo-efetivo. Os compromissos anunciados — desde aceleradores de pesquisa agrícola até a integração de ações de mitigação em portfolios de bancos multilaterais — não são apenas promessas, mas respostas concretas a uma base científica consolidada. A diplomacia climática, ao reconhecer o metano como prioridade, acionou um verdadeiro “freio de emergência” capaz de salvar milhões de vidas e evitar pontos de não retorno nos sistemas climáticos.
Belém não foi apenas sede da COP30. Foi o lugar onde se reafirmou que sem Amazônia não há futuro, e sem os povos que a defendem não há solução. Para a Gota, esse é o verdadeiro legado da conferência: enfrentar a crise climática exige democracia, participação e respeito aos saberes que há séculos cuidam da floresta, mas também rigor científico e financiamento consistente. Só assim será possível transformar compromissos em resultados e garantir que o futuro em disputa seja, de fato, um futuro possível.
*Maria Paula Fernandes é Diretora e Fundadora da Gota
A Uma Gota no Oceano é uma organização de comunicação estratégica, membro observador da ONU para clima e biodiversidade, dedicada a garantir que as vozes das organizações socioambientais estejam presentes nos espaços que definem o futuro do planeta.
Desde 2019, nossas delegações nas COPs contam com representantes indígenas e quilombolas, reafirmando nosso compromisso com a justiça climática e a diversidade de vozes.
Há mais de uma década, atuamos de forma colaborativa com lideranças amazônicas, acadêmicos, indígenas e quilombolas. Nosso objetivo é integrar suas narrativas aos debates públicos por meio de estratégias que irrigam informação consistente e independente — em escala regional, nacional e global.
Na COP30, a Gota está presente em três frentes fundamentais:
1. CONAQ – Criadores de Refúgios, Guardiões do Futuro
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) é a entidade que reúne mais de 6 mil comunidades quilombolas do Brasil. Presente em 24 estados, ela representa mais de 1,3 milhão de brasileiros — segundo o IBGE.
Na COP30, a CONAQ é a organização anfitriã das populações afrodescendentes, sob o guarda-chuva da Coalizão Internacional de Territórios Afrodescendentes (CITAFRO), que reúne organizações de 18 países da América Latina e Caribe. Juntas, essas comunidades protegem cerca de 205 milhões de hectares de áreas verdes com uma imensa biodiversidade fundamental para o equilíbrio climático global.
A Gota apoia a CONAQ há mais de uma década, fortalecendo sua comunicação estratégica e presença internacional. Na COP30, reafirmamos essa parceria com a campanha “Criadores de refúgios, guardiões do futuro”, que valoriza o papel dos quilombolas como protagonistas na defesa da vida e da justiça climática.
2. Global Methane Hub – Freio de Emergência Climática
Em parceria com o Global Methane Hub (GMH), a Gota impulsiona a campanha “Freio de Emergência Climática”, que convida governos, empresas e sociedade civil a transformar compromissos em ações concretas.
O foco está na redução dos chamados superpoluentes de curta duração, como o metano (CH₄), responsável por cerca de um terço do aquecimento global desde a Revolução Industrial.
Mitigar o metano é uma medida de alívio imediato para o clima — com impacto rápido, escalável e essencial para conter o avanço da crise climática.
O GMH atua com parceiros como o Institute for Governance & Sustainable Development (IGSD), o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), o Instituto Pólis e o Observatório do Clima.
3. Ministério dos Povos Indígenas – A Resposta Somos Nós
A Gota também apoia o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), liderado pela ministra Sonia Guajajara. Desde 2014 nossa trajetória caminha ao lado da ministra, com presença conjunta em todas as COPs, desde Paris.
Em apenas dois anos e meio, o MPI consolidou avanços estruturantes para os direitos indígenas no Brasil, colocando esses povos no centro da formulação de políticas públicas.
Na COP30, o ministério recebe a maior delegação indígena da história das Conferências do Clima da ONU: são esperados cerca de 3 mil representantes de povos de várias regiões brasileiras e de outros países.
Sonia Guajajara é um exemplo de liderança que representa e envolve os semeadores da Amazônia na defesa do futuro da humanidade. É a Amazônia pela Amazônia, com os povos indígenas no centro das soluções climáticas.
A delegação da Gota na COP30 terá uma agenda intensa em Belém, onde acompanharemos os parceiros da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) – que integra a Coalizão Internacional de Territórios Afrodescendentes (Citafro); do Global Methane Hub (GMH), com a campanha ‘Mutirão Freio de Emergência Climática’, voltada à redução das emissões de metano; e do Ministério dos Povos Indígenas, como coautor do Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), proposta do Brasil para desbloquear o principal gargalo do enfrentamento à crise do clima: o financiamento climático.
Esses são alguns dos assuntos que serão discutidos em uma maratona de seminários, paineis, mesas, debates e encontros que devem acontecer ao longo da Conferência na Zona Azul, na Zona Verde e em outros espaços em Belém, como o Museu das Amazônias, localizado no Complexo Porto Futuro II.
Conheça alguns destaques da programação de nossos parceiros na COP30 para salvar na agenda:
10 de novembro
Iniciativa Low-m: Capacitando as cidades a implementar e ampliar soluções para o metano residual
Local: Pavilhão de Soluções para Superpoluentes
Horário: 15h às 16h
11 de novembro
Painel ‘O Brasil cumpriu sua promessa para 2025?’
Local: Zona Azul, Sala Oficial de eventos paralelos nº 7
Hora: 15h às 16h30
12 de novembro
Acelerando a implementação e financiamento da mitigação de metano no setor de resíduos: caminhos para a transição justa e circular
Local: Zona Azul
Hora: 16h15 às 17h15 (horário de Brasília)
Os impactos das mudanças climáticas para os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (PIIRC) e seus territórios, e as políticas públicas brasileiras de proteção e garantia dos direitos destes povos
Local: Zona Verde, auditório Jandaíra
Hora: 11h15 às 12h15 (horário de Brasília)
13 de novembro
Parceria de Baixo Metano em Ação: Ampliando Soluções Equitativas de Resíduos de Metano Lideradas pela Comunidade
Local: Zona Azul
Hora: 11h30 às 13h (horário de Brasília)
14 de novembro
Dos aterros sanitários aos meios de subsistência: uma transição justa para a redução do metano
Local: Zona Azul
Hora: 11h30 às 13h (horário de Brasília)
17 de novembro
A resposta somos nós: contribuições dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais extrativistas à ação climática global
Local: Zona Azul, auditório Sumaúma
Hora: 11h15 às 12h15 (horário de Brasília)
O elo perdido: alinhando políticas e finanças com a ciência emergente
Local: Zona Azul, sala de eventos paralelos 2
Hora: 11h30 às 13h (horário de Brasília)
Seminário Freio de Emergência Climática – lançamento do ‘Mutirão Freio de Emergência Climática’,
Local: Museu das Amazônias – Complexo Porto Futuro II, Armazém 4A
Hora: 13h às 17h (horário de Brasília)
Gestão Territorial e Ambiental Quilombola: Contribuições para a Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas no Cerrado e na Mata Atlântica
Local: Zona Verde, auditório Uruçu
Hora: 13h45 às 14h45 (horário de Brasília)
18 de novembro
PNAGTI e Justiça Climática: a importância da gestão ambiental e demarcação de Terras Indígenas no Brasil
Local: Zona Azul, auditório Sumaúma
Hora: 12h30 às 13h30 (horário de Brasília)
Seminário ‘Criadores de Refúgios, Guardiões do Futuro’, da CONAF e Citafro)
Local: Museu das Amazônias – Complexo Porto Futuro II, Armazém 4A
Hora: 13h às 17h (horário de Brasília)
19 de novembro
Trilha do Bem Viver e Reparação: Povos Afrodescendentes rumo à COP30
Local: Zona Verde, auditório Uruçu
Hora: 10h às 11h (horário de Brasília)
Do Compromisso à Implementação: Acelerando a Mitigação do Metano no Brasil
Local: Pavilhão de Soluções para Superpoluentes
Horário: 15h às 16h
NDC Indígena: Nossos Povos e Territórios são a Resposta à Crise Climática
Local: Zona Azul, auditório Cumaru
Hora: 15h às 16h (horário de Brasília)
20 de novembro
Pela reparação e pelo bem viver: povos afrodescendentes rumo à COP 30
Local: Zona Azul, auditório Cumaru
Hora: 13h45 às 14h45 (horário de Brasília)
21 de novembro
Direito internacional e a emergência climática: diálogo sobre os pareceres consultivos dos tribunais internacionais
A luta contra a crise climática não é apenas uma questão de tecnologia, metas ou acordos internacionais: é, sobretudo, uma questão de justiça. No coração dessa luta estão os povos afrodescendentes rurais, que há séculos preservam florestas, cultivam alimentos de forma sustentável e mantêm vivas as águas e os solos — muitas vezes sem reconhecimento ou apoio. O artigo abaixo traz à tona essa contradição: quem mais protege o planeta segue invisível nos espaços onde se decide o futuro climático da humanidade.
Justiça Climática é Preta — e começa no chão da vida
Por Thaís Rodrigues*
Enquanto o mundo debate metas de carbono e transições energéticas, há quem já esteja fazendo, há séculos, o que muitos ainda estão prometendo: proteger a natureza, cultivar alimentos de forma sustentável, manter florestas em pé e rios vivos. São os povos afrodescendentes rurais — quilombolas no Brasil, palenques na Colômbia, garífunas em Honduras, cimarrones em Cuba e tantos outros — que seguem cuidando da terra com sabedoria ancestral e resistência cotidiana.
Mas esses mesmos povos, que tanto fazem pelo planeta, seguem invisíveis nas decisões que moldam o futuro climático da humanidade. A exclusão que começou com a escravidão e a colonização ainda se reflete hoje nas políticas ambientais e nos espaços internacionais de negociação. E é justamente essa contradição que precisa ser enfrentada com coragem e urgência na COP30, que será realizada em Belém do Pará.
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) foi criada em 1992 com o discurso da justiça climática e da participação inclusiva. Mas, mais de 30 anos depois, os povos afrodescendentes ainda não têm assento formal, nem mecanismos próprios de financiamento ou consulta. Ou seja: quem menos poluiu, quem mais protege, continua fora da sala onde se decide o futuro do planeta.
Essa ausência não é técnica. É política. E é injusta.
Em 2024, durante a COP16 da Biodiversidade, realizada em Cali, na Colômbia, lideranças étnico-territoriais conquistaram um marco histórico: a inclusão dos afrodescendentes no artigo 8J da Convenção sobre Diversidade Biológica. Agora, o desafio é outro: garantir presença efetiva nas negociações climáticas. Para isso, mais de 16 países da América Latina e Caribe se uniram na Coalizão Internacional dos Povos Afrodescendentes (Citafro), que entregou em maio uma carta ao presidente da COP30, André Corrêa do Lago, com reivindicações que representam mais de 180 milhões de afrodescendentes no continente.
Enquanto isso não se concretiza, quilombolas, palenques, garífunas, cimarrones e demais povos seguem plantando, pescando e defendendo seus territórios. Eles mostram, na prática, que a luta pelo clima começa no chão da vida — e que as soluções mais eficazes muitas vezes vêm de quem o mundo insiste em não ouvir.
No Brasil, os quilombos são barreiras vivas contra o colapso ambiental. Em Furnas do Dionísio, no Mato Grosso do Sul, a agroecologia quilombola fortalece a soberania alimentar e a resiliência diante das secas. No Vale do Ribeira, em São Paulo, comunidades produzem alimentos sem monocultura, enquanto enfrentam ameaças de barragens e mineração. Nos mangues, sistemas de pesca artesanal mantêm vivos os ecossistemas e reduzem emissões. Onde há quilombo, há floresta em pé.
Biko Rodrigues, quilombola de Ivaporunduva e coordenador da CONAQ, resume com clareza: “A maioria dos países da Amazônia Legal e da Pan-Amazônia têm grande presença da população negra, fundamental na preservação do maior bioma tropical do planeta. Garantir a titulação dos territórios quilombolas é assegurar que a balança climática continue favorecendo o mundo. Onde estamos, tem floresta em pé. Nada mais justo do que garantir o direito à terra para que possamos seguir preservando a biodiversidade e construindo um planeta mais justo.”
A COP30 precisa ouvir essas vozes. A titulação dos territórios quilombolas é uma ferramenta concreta de mitigação. Segundo estudo do MapBiomas, entre 1985 e 2022, a perda de vegetação nativa em territórios quilombolas foi de apenas 4,7%, contra 17% em áreas privadas. Quilombolas já enfrentam secas, inundações e erosão, mas sem reconhecimento formal na UNFCCC, não têm acesso a reparações. E mesmo quando há recursos disponíveis, a burocracia impede que eles cheguem diretamente às comunidades. Projetos precisam passar por governos ou intermediários que nem sempre priorizam os territórios negros.
Fran Paula, engenheira agrônoma da CONAQ, alerta: “O atual plano de transição ecológica ainda reproduz uma lógica excludente e racista, centrada nos grandes setores econômicos. Não garante mecanismos concretos de escuta, participação e financiamento direto às populações quilombolas. O futuro climático só será justo com a participação quilombola.”
Na Colômbia, José Absalón Suárez Solís, presidente do Processo de Comunidades Negras (PCN), reforça: “Queremos que os instrumentos ambientais reconheçam os afrodescendentes como sujeitos coletivos de direitos, valorizando nossos conhecimentos ancestrais como fundamentais para a adaptação, mitigação e preservação florestal.”
Não há espera passiva. Os povos afrodescendentes já estão agindo. Preservam florestas, cultivam alimentos sustentáveis, defendem rios e constroem alternativas reais à crise climática. A exigência é que essas práticas sejam reconhecidas e apoiadas de forma justa e direta e que incluam:
Reconhecimento dos povos afrodescendentes como sujeitos de direitos dentro da UNFCCC;
Mecanismos específicos para financiamento climático direto;
Participação plena nos órgãos e instrumentos da Convenção;
Segurança jurídica dos territórios;
Visibilidade dos afrodescendentes na Amazônia, que historicamente habitam e preservam esse bioma.
O que os povos afrodescendentes reivindicam não é favor. É o que lhes é devido. Durante séculos, cuidam de florestas, águas e solos. Agora, exigem que o mundo reconheça que sua contribuição é parte fundamental da solução para a crise climática.
*Thaís Rodrigues é jornalista quilombola, correspondente da Gota na CONAQ
Enquanto o desmatamento ameaça a Amazônia, os quilombos da Calha Norte, no Pará, mostram um caminho diferente: são territórios de resistência, refúgio e biodiversidade. O artigo abaixo revela como essas comunidades se tornaram fundamentais para a proteção do clima, da floresta e da vida, um tema central para o Brasil rumo à COP30.
Quilombos na Calha Norte: criadores de refúgio e guardiões da biodiversidade Enquanto o desmatamento avança sobre a Amazônia, comunidades quilombolas mostram que proteger territórios é proteger o futuro do planeta.
Por Monica Prestes *
No noroeste do Pará, um imponente bloco verde resiste. Formado por florestas preservadas e rios saudáveis, ele contrasta com o cenário de degradação que domina o sul do estado-sede da COP30: pastos abandonados, garimpos ilegais e rios feridos. É na Calha Norte do Rio Amazonas que se encontra o maior bloco contínuo de áreas protegidas do Brasil — uma área equivalente à soma dos estados do Paraná e Alagoas.
Esse cinturão de proteção ambiental reúne 11 Unidades de Conservação, seis Terras Indígenas e 39 comunidades quilombolas distribuídas em sete territórios. Juntas, essas áreas mantêm em pé mais de 27 milhões de hectares de floresta tropical. Para se ter uma ideia, a capacidade de reter carbono da Calha Norte supera a das florestas da Indonésia e do Congo, que, ao lado da Amazônia, formam o principal cinturão de florestas tropicais do planeta.
Mais do que um refúgio ecológico, esse território é um elo vital entre a Amazônia Central e o Corredor de Biodiversidade do Amapá, formando o maior corredor de biodiversidade em florestas tropicais do mundo. São essas florestas que alimentam os chamados “rios voadores”, responsáveis por levar umidade para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil — regiões que dependem dessas chuvas para o agronegócio e a geração de energia.
Mas a Amazônia que conhecemos hoje é também fruto da sabedoria ancestral dos povos indígenas e quilombolas. Eles manejam a floresta há séculos e continuam sendo a forma mais eficaz de proteção ambiental. Estudos do Instituto Socioambiental (ISA) mostram que os territórios quilombolas perderam apenas 4,7% de suas florestas entre 2003 e 2022, enquanto as áreas privadas ao seu redor perderam 17%. Além disso, esses territórios armazenam 48% mais carbono florestal.
No final de julho, um estudo publicado pela revista Nature reforçou essa evidência: os quilombos são verdadeiros guardiões da biodiversidade, com maior variabilidade de espécies e retenção de carbono. Em Oriximiná, município paraense que abriga o primeiro quilombo titulado do Brasil (Boa Vista) e o maior titulado da Amazônia (Cachoeira Porteira), mais de 80% das florestas estão protegidas. Ali vivem quase 10 mil quilombolas — 13% da população local, percentual bem acima da média nacional de 0,66%.
Essas comunidades construíram, ao longo das décadas, uma bioeconomia baseada em produtos florestais não madeireiros, como castanha, andiroba e copaíba, além de atividades sustentáveis como o artesanato e o turismo de base comunitária. Essa estratégia tem sido essencial para enfrentar as pressões da mineração, do agronegócio e dos grandes empreendimentos.
Proteger os territórios quilombolas é proteger o clima. É reconhecer que há saberes ancestrais que sustentam a vida e que, diante da emergência climática, podem ser nossa melhor esperança. Com a COP30 se aproximando, o Brasil tem a oportunidade de assumir um papel de liderança ambiental global — e isso passa, necessariamente, pelo reconhecimento dos direitos quilombolas.
A adesão da CONAQ à Coalizão Internacional CITAFRO marca um avanço decisivo rumo ao protagonismo afrodescendente nas negociações climáticas. Representando comunidades de 18 países da América Latina e Caribe, o bloco ganha força justamente na primeira COP a reconhecer formalmente essas populações nos debates sobre clima, com a criação de uma Comissão Internacional e a aprovação de uma carta-manifesto. É chegada a hora de escutar quem há séculos protege o que ainda resta da floresta — e de garantir que suas vozes influenciem os rumos do planeta.
*Monica Prestes é jornalista e correspondente da Gota na Amazônia