Justiça Climática é Preta — e começa no chão da vida

Justiça Climática é Preta — e começa no chão da vida

A luta contra a crise climática não é apenas uma questão de tecnologia, metas ou acordos internacionais: é, sobretudo, uma questão de justiça. No coração dessa luta estão os povos afrodescendentes rurais, que há séculos preservam florestas, cultivam alimentos de forma sustentável e mantêm vivas as águas e os solos — muitas vezes sem reconhecimento ou apoio. O artigo abaixo traz à tona essa contradição: quem mais protege o planeta segue invisível nos espaços onde se decide o futuro climático da humanidade.

Justiça Climática é Preta — e começa no chão da vida

Por Thaís Rodrigues*

Enquanto o mundo debate metas de carbono e transições energéticas, há quem já esteja fazendo, há séculos, o que muitos ainda estão prometendo: proteger a natureza, cultivar alimentos de forma sustentável, manter florestas em pé e rios vivos. São os povos afrodescendentes rurais — quilombolas no Brasil, palenques na Colômbia, garífunas em Honduras, cimarrones em Cuba e tantos outros — que seguem cuidando da terra com sabedoria ancestral e resistência cotidiana.

Mas esses mesmos povos, que tanto fazem pelo planeta, seguem invisíveis nas decisões que moldam o futuro climático da humanidade. A exclusão que começou com a escravidão e a colonização ainda se reflete hoje nas políticas ambientais e nos espaços internacionais de negociação. E é justamente essa contradição que precisa ser enfrentada com coragem e urgência na COP30, que será realizada em Belém do Pará.

A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) foi criada em 1992 com o discurso da justiça climática e da participação inclusiva. Mas, mais de 30 anos depois, os povos afrodescendentes ainda não têm assento formal, nem mecanismos próprios de financiamento ou consulta. Ou seja: quem menos poluiu, quem mais protege, continua fora da sala onde se decide o futuro do planeta.

Essa ausência não é técnica. É política. E é injusta.

Em 2024, durante a COP16 da Biodiversidade, realizada em Cali, na Colômbia, lideranças étnico-territoriais conquistaram um marco histórico: a inclusão dos afrodescendentes no artigo 8J da Convenção sobre Diversidade Biológica. Agora, o desafio é outro: garantir presença efetiva nas negociações climáticas. Para isso, mais de 16 países da América Latina e Caribe se uniram na Coalizão Internacional dos Povos Afrodescendentes (Citafro), que entregou em maio uma carta ao presidente da COP30, André Corrêa do Lago, com reivindicações que representam mais de 180 milhões de afrodescendentes no continente.

Enquanto isso não se concretiza, quilombolas, palenques, garífunas, cimarrones e demais povos seguem plantando, pescando e defendendo seus territórios. Eles mostram, na prática, que a luta pelo clima começa no chão da vida — e que as soluções mais eficazes muitas vezes vêm de quem o mundo insiste em não ouvir.

No Brasil, os quilombos são barreiras vivas contra o colapso ambiental. Em Furnas do Dionísio, no Mato Grosso do Sul, a agroecologia quilombola fortalece a soberania alimentar e a resiliência diante das secas. No Vale do Ribeira, em São Paulo, comunidades produzem alimentos sem monocultura, enquanto enfrentam ameaças de barragens e mineração. Nos mangues, sistemas de pesca artesanal mantêm vivos os ecossistemas e reduzem emissões. Onde há quilombo, há floresta em pé.

Biko Rodrigues, quilombola de Ivaporunduva e coordenador da CONAQ, resume com clareza: “A maioria dos países da Amazônia Legal e da Pan-Amazônia têm grande presença da população negra, fundamental na preservação do maior bioma tropical do planeta. Garantir a titulação dos territórios quilombolas é assegurar que a balança climática continue favorecendo o mundo. Onde estamos, tem floresta em pé. Nada mais justo do que garantir o direito à terra para que possamos seguir preservando a biodiversidade e construindo um planeta mais justo.”

A COP30 precisa ouvir essas vozes. A titulação dos territórios quilombolas é uma ferramenta concreta de mitigação. Segundo estudo do MapBiomas, entre 1985 e 2022, a perda de vegetação nativa em territórios quilombolas foi de apenas 4,7%, contra 17% em áreas privadas. Quilombolas já enfrentam secas, inundações e erosão, mas sem reconhecimento formal na UNFCCC, não têm acesso a reparações. E mesmo quando há recursos disponíveis, a burocracia impede que eles cheguem diretamente às comunidades. Projetos precisam passar por governos ou intermediários que nem sempre priorizam os territórios negros.

Fran Paula, engenheira agrônoma da CONAQ, alerta: “O atual plano de transição ecológica ainda reproduz uma lógica excludente e racista, centrada nos grandes setores econômicos. Não garante mecanismos concretos de escuta, participação e financiamento direto às populações quilombolas. O futuro climático só será justo com a participação quilombola.”

Na Colômbia, José Absalón Suárez Solís, presidente do Processo de Comunidades Negras (PCN), reforça: “Queremos que os instrumentos ambientais reconheçam os afrodescendentes como sujeitos coletivos de direitos, valorizando nossos conhecimentos ancestrais como fundamentais para a adaptação, mitigação e preservação florestal.”

Não há espera passiva. Os povos afrodescendentes já estão agindo. Preservam florestas, cultivam alimentos sustentáveis, defendem rios e constroem alternativas reais à crise climática. A exigência é que essas práticas sejam reconhecidas e apoiadas de forma justa e direta e que incluam:

  • Reconhecimento dos povos afrodescendentes como sujeitos de direitos dentro da UNFCCC;
  • Mecanismos específicos para financiamento climático direto;
  • Participação plena nos órgãos e instrumentos da Convenção;
  • Segurança jurídica dos territórios;
  • Visibilidade dos afrodescendentes na Amazônia, que historicamente habitam e preservam esse bioma.

O que os povos afrodescendentes reivindicam não é favor. É o que lhes é devido. Durante séculos, cuidam de florestas, águas e solos. Agora, exigem que o mundo reconheça que sua contribuição é parte fundamental da solução para a crise climática.

*Thaís Rodrigues é jornalista quilombola, correspondente da Gota na CONAQ

Quilombos na Calha Norte: criadores de refúgio e guardiões da biodiversidade

Quilombos na Calha Norte: criadores de refúgio e guardiões da biodiversidade

Enquanto o desmatamento ameaça a Amazônia, os quilombos da Calha Norte, no Pará, mostram um caminho diferente: são territórios de resistência, refúgio e biodiversidade. O artigo abaixo revela como essas comunidades se tornaram fundamentais para a proteção do clima, da floresta e da vida, um tema central para o Brasil rumo à COP30.

Quilombos na Calha Norte: criadores de refúgio e guardiões da biodiversidade
Enquanto o desmatamento avança sobre a Amazônia, comunidades quilombolas mostram que proteger territórios é proteger o futuro do planeta.

Por Monica Prestes * 

No noroeste do Pará, um imponente bloco verde resiste. Formado por florestas preservadas e rios saudáveis, ele contrasta com o cenário de degradação que domina o sul do estado-sede da COP30: pastos abandonados, garimpos ilegais e rios feridos. É na Calha Norte do Rio Amazonas que se encontra o maior bloco contínuo de áreas protegidas do Brasil — uma área equivalente à soma dos estados do Paraná e Alagoas. 

Esse cinturão de proteção ambiental reúne 11 Unidades de Conservação, seis Terras Indígenas e 39 comunidades quilombolas distribuídas em sete territórios. Juntas, essas áreas mantêm em pé mais de 27 milhões de hectares de floresta tropical. Para se ter uma ideia, a capacidade de reter carbono da Calha Norte supera a das florestas da Indonésia e do Congo, que, ao lado da Amazônia, formam o principal cinturão de florestas tropicais do planeta. 

Mais do que um refúgio ecológico, esse território é um elo vital entre a Amazônia Central e o Corredor de Biodiversidade do Amapá, formando o maior corredor de biodiversidade em florestas tropicais do mundo. São essas florestas que alimentam os chamados “rios voadores”, responsáveis por levar umidade para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil — regiões que dependem dessas chuvas para o agronegócio e a geração de energia. 

Mas a Amazônia que conhecemos hoje é também fruto da sabedoria ancestral dos povos indígenas e quilombolas. Eles manejam a floresta há séculos e continuam sendo a forma mais eficaz de proteção ambiental. Estudos do Instituto Socioambiental (ISA) mostram que os territórios quilombolas perderam apenas 4,7% de suas florestas entre 2003 e 2022, enquanto as áreas privadas ao seu redor perderam 17%. Além disso, esses territórios armazenam 48% mais carbono florestal. 

No final de julho, um estudo publicado pela revista Nature reforçou essa evidência: os quilombos são verdadeiros guardiões da biodiversidade, com maior variabilidade de espécies e retenção de carbono. Em Oriximiná, município paraense que abriga o primeiro quilombo titulado do Brasil (Boa Vista) e o maior titulado da Amazônia (Cachoeira Porteira), mais de 80% das florestas estão protegidas. Ali vivem quase 10 mil quilombolas — 13% da população local, percentual bem acima da média nacional de 0,66%. 

Essas comunidades construíram, ao longo das décadas, uma bioeconomia baseada em produtos florestais não madeireiros, como castanha, andiroba e copaíba, além de atividades sustentáveis como o artesanato e o turismo de base comunitária. Essa estratégia tem sido essencial para enfrentar as pressões da mineração, do agronegócio e dos grandes empreendimentos. 

Proteger os territórios quilombolas é proteger o clima. É reconhecer que há saberes ancestrais que sustentam a vida e que, diante da emergência climática, podem ser nossa melhor esperança. Com a COP30 se aproximando, o Brasil tem a oportunidade de assumir um papel de liderança ambiental global — e isso passa, necessariamente, pelo reconhecimento dos direitos quilombolas. 

A adesão da CONAQ à Coalizão Internacional CITAFRO marca um avanço decisivo rumo ao protagonismo afrodescendente nas negociações climáticas. Representando comunidades de 18 países da América Latina e Caribe, o bloco ganha força justamente na primeira COP a reconhecer formalmente essas populações nos debates sobre clima, com a criação de uma Comissão Internacional e a aprovação de uma carta-manifesto. É chegada a hora de escutar quem há séculos protege o que ainda resta da floresta — e de garantir que suas vozes influenciem os rumos do planeta. 

*Monica Prestes é jornalista e correspondente da Gota na Amazônia 

 

 

 

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