Quilombo em movimento

novembro 2018

A palavra de origem bantu Ubuntu define o espírito quilombola: “sou o que sou pelo que nós somos”. Os quilombos receberam os que precisavam de abrigo; foram criados tendo como orientação a coletividade, a identificação e a aceitação. Nasceram como refúgios, esconderijos; hoje são o lar de 16 milhões de pessoas em todo o Brasil e criaram uma cultura única. A Constituição de 1988 lhes concedeu o direito à terra; entretanto, este era contestado desde 2004 por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Por isso, o dia 8 de fevereiro de 2018 entrou para a história do movimento quilombola: o Supremo Tribunal Federal não só julgou a ação improcedente como afastou definitivamente outro fantasma que o rondava, o “marco temporal”. Segundo esta tese jurídica, só teria direito à terra as comunidades que estivessem de posse dela até a data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), mesmo se tivessem sido expulsas com violência.

Esta vitória no STF abriu horizontes inéditos, mas também trouxe novos desafios para os quilombolas. A Semana da Consciência Negra é um bom momento para refletir sobre os rumos que o movimento vem tomando. Há muito a ser feito: a Fundação Cultural Palmares certificou 3.133 quilombos e mais de 1.700 processos de demarcação correm hoje no Incra. Porém, apenas 260 foram demarcados e somente 40 receberam título de propriedade definitivo. Criado para acelerar os processos de demarcação, o Programa Brasil Quilombola foi lançado em 2004, mas o seu orçamento despencou de R$ 6,2 milhões em 2010 para R$ 1,4 milhão em 2018. O Ministério Público Federal tem sido um grande aliado: este mês lançou o programa #NovembroQuilombola para apressar as ações pendentes. Ainda assim, os quilombolas vão precisar da astúcia de Zumbi para avançar nessa luta.

A violência contra eles vem aumentando de forma alarmante: o número de assassinatos cresceu 350% de 2016 para 2017, segundo o recém-divulgado estudo “Racismo e violência contra quilombos no Brasil”, da Confederação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e da ONG Terra de Direitos. No ano passado, foram registradas duas chacinas: no Quilombo de Iúna, em Lençóis, na Bahia, onde sete quilombolas foram assassinados; e no Quilombo Lagoa do Algodão, em Carneiros, em Alagoas, com quatro mortes. Em abril deste ano, foi assassinado Nazildo dos Santos Brito, do Quilombo Turê III, no Pará. No último dia 4 de outubro, morreu Haroldo Betcel, morador do Quilombo Tiningu, no município de Santarém, também no Pará. Os dois eram lideranças locais; Haroldo foi morto por causa de disputas territoriais e Nazildo, por denunciar crimes ambientais.

Ao mesmo tempo, a importância dos quilombos na preservação do meio ambiente é cada vez mais reconhecida. Quilombolas habitam e manejam a floresta no Vale do Ribeira, na fronteira de São Paulo com o Paraná, há mais de 300 anos. Não por acaso, é o maior trecho continuo de Mata Atlântica que restou. Dos 7% que sobraram deste bioma no Brasil, 21% estão na região. O modo de vida dessas comunidades é diretamente responsável por isso. De 2009 a 2013, pesquisadores listaram 180 bens da cultura imaterial das comunidades locais, no “Inventário de Referências Culturais Quilombola”. Em setembro deste ano, a roça de coivará, uma técnica de plantio com mais de 300 anos que vem sendo recuperada no Vale do Ribeira, foi reconhecida pelo Iphan como Patrimônio Cultural do Brasil.

O movimento tem usado a visibilidade que ganhou – foi tema até da novela da Rede Globo “O outro lado do paraíso” – para divulgar sua cultura e reivindicações. E buscar novos parceiros e aliados: em outubro, representantes da Conaq estiveram nos Estados Unidos participando do Programa Internacional de Lideranças Visitantes, promovido pelo Departamento de Estado Americano. O grupo teve de encontros com pesquisadores e lideranças locais nas cidades de Washigton, Tucson e Miami. A luta quilombola também atravessou fronteiras com “Cumbe”, de Marcelo D’Salete. O álbum ganhou em julho o Eisner, o maior prêmio de quadrinhos do mundo. “Cumbe” traz histórias do tempo da escravidão e da formação dos quilombos, baseadas em documentos históricos. O livro de quadrinhos nasceu de uma pesquisa que o autor vem fazendo desde 2004 sobre Palmares. “Cumbe” quer dizer quilombo, mas também significa “luz”, nas línguas congo e angola. O trabalho de Marcelo D’Salete também ajudou a jogar luz sobre a causa.

Este ano, os quilombolas lamentaram duas perdas irreparáveis: Dona Dijé e Antônio Mulato. Ela morreu aos 70 anos, no Quilombo de Monte Alegre, no Maranhão. Foi fundadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu e conselheira do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. Seu Antônio era o quilombola mais velho do Brasil: foi-se aos 113 anos. Em 1940, ele levou a primeira escola pública do Brasil a uma comunidade quilombola, no Quilombo Mata Cavalo, em Mato Grosso. Mas agora serão para sempre estrelas a guiar sua luta.

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