O poder das palavras

janeiro 2019

Em 1938, um então desconhecido ator e diretor de cinema fez uma dramatização na rádio que levou pânico a cidades norte-americanas. O medo, contudo, não tinha razão de ser. Tratava-se de Orson Welles narrando uma invasão alienígena do livro de ficção científica “A guerra dos mundos”, do escritor inglês Herbert George Wells. A manchete do jornal “Daily News” resumiu o efeito da encenação do genial cineasta: “Guerra falsa no rádio espalha terror pelos Estados Unidos”. O episódio, com um quê de comicidade, revela algo sério: o poder das palavras. Diante disso, os homens públicos precisam ter cuidado com o que falam. Uma frase mal-aplicada pode gerar confusão e, até mesmo, violência. Todo o estadista que se preze sabe disso. São princípios da arte de governar.

De certa forma, a jornalista da TV Globo Miriam Leitão abordou o tema. Disse, na última segunda-feira, que “os sinais que o governo já deu estão incentivando grileiros a invadir terras indígenas (TIs)”. Os acenos aos quais ela se referiu vêm de mudanças abruptas e atabalhoadas em órgãos governamentais e desastrados discursos sobre a questão indígena. Nas entrelinhas, ela pede prudência com as palavras.

Em apenas 15 dias do novo governo federal, houve quatro invasões em TIs. Pare só um minuto de ler e leve seu olhar à pequena indígena retratada acima. Viaje até sua infância e imagine como você se sentiria se um grupo entrasse no seu quintal, mudasse a disposição das coisas, revirasse o ambiente. Agora, se transporte para uma aldeia indígena. Por que lá “pode” haver invasão? Em nome de quê?

Veja só o que aconteceu na comunidade Ponta do Arado, às margens do Rio Guaíba, em Porto Alegre. Ali, na madrugada da última sexta-feira, os Guarani Mbya foram alvo de tiros de dois homens encapuzados. “As crianças ficaram todas assustadas, chorando”, contou o cacique Timóteo Karai Mirim.

Na terra dos Awá Guajá, no Maranhão, grileiros, como relatou o cacique Antonio Guajajara, derrubaram florestas e tentaram impor à força sua presença, também na semana passada. Na TI Uru-eu-wau-wau, a 322 quilômetros de Porto Velho, em Rondônia, os últimos dias também têm sido de grande tensão. A “Folha de São Paulo” informou que dezenas de grileiros estão fazendo estragos por lá. Áreas já foram desmatadas e já se vê um imenso clarão na floresta. Um homem informou, sem cerimônia, que houve uma determinação de invadir “de fora”. E, no início do mês, madeireiros entraram na Terra Indígena Arara, no Pará, com o objetivo claro de marcar lotes em uma terra que não lhes pertence.

O Estado, por enquanto, parece preferir a omissão a uma atitude mais forte contra os invasores. Coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara não tem dúvidas de que tais invasões foram articuladas e estimuladas pelos discursos presidencial e de novos atores do governo federal. “Está acontecendo de forma articulada e orientada pelos invasores, que estão ligados aos grandes produtores rurais e à especulação imobiliária”, disse ela à DW Brasil.

O ocupante do cargo maior do Executivo já disse que não vai demarcar mais TIs. Declarou que deseja reintegrar os índios à sociedade, desprezando sua cultura. E afirmou que vai querer comprar terras dos indígenas. As mudanças institucionais são coerentes com suas afirmações. Como já é sabido, a demarcação de TIs foi transferida do Ministério da Justiça para o da Agricultura, dominado pelo agronegócio. E, algo aterrador, os povos indígenas não podem vetar ou mesmo acompanhar as licenças para empreendimentos em suas terras. Ou seja, as TIs não estão apenas sob ameaça da grilagem ilegal. São pressionadas também pelo agronegócio e por interesses imobiliários.

Infelizmente, esse cenário não é novidade. Quando da discussão da Constituição de 1824, dois anos depois da proclamação da independência, José Bonifácio fez sugestões à Carta Magna pelas quais garantia direitos aos povos indígenas. A elite agrária da época fez tanta campanha contra que nada, nada mesmo, proposto por Bonifácio foi acolhido na nossa primeira Lei Maior. O que acontece agora com mais eloquência e descortesia é um perverso moto-contínuo. Que os povos da floresta nos iluminem para que se mude o curso da História.

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