Pacificação para quem?

Pacificação para quem?

setembro 2025

O que aconteceu em 8 de janeiro ainda define embates centrais da política nacional. Em nome de uma suposta “pacificação”, tenta-se reescrever responsabilidades, aliviar culpas e relativizar princípios que deveriam ser inegociáveis. Esse movimento não surge do nada: ecoa estratégias já vistas em outras disputas recentes, como no caso do marco temporal, quando direitos constitucionais dos povos indígenas foram colocados na mesa como se fossem moedas de troca. O artigo abaixo fala do fio que conecta esses episódios: a tentativa de enfraquecer o Supremo, rebaixar conquistas históricas e normalizar ataques ao Estado de Direito.

Pacificação para quem?

Democracia não se negocia

Por Maria Paula Fernandes*

Há algo de inquietante na forma como o país tem lidado com os desdobramentos do 8 de janeiro. A tentativa de reescrever responsabilidades sob o manto da “pacificação” soa familiar demais. Para quem acompanhou de perto o embate sobre o marco temporal ao lado das organizações indígenas, é impossível não reconhecer os traços de um roteiro que insiste em se repetir: enfraquecer o Supremo, negociar direitos fundamentais e apagar responsabilidades.

Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da tese do marco temporal, reafirmando que os direitos dos povos indígenas são originários e não podem ser condicionados à ocupação de terras em uma data arbitrária. Foi uma decisão histórica, que parecia encerrar uma disputa jurídica longa e dolorosa.

Mas o Congresso reagiu. No final daquele mesmo ano, aprovou a Lei 14.701/23, formalizando justamente a tese que o STF havia rejeitado. E como resposta à tensão institucional, foi instaurada a chamada “Câmara de Conciliação”, que, sob o pretexto de buscar diálogo, colocou os direitos indígenas na mesa de negociação com setores que historicamente os atacam.

Acompanhei esse processo de perto, pelo trabalho que desenvolvo junto a organizações indígenas. E foi impossível não perceber que, por trás da linguagem da conciliação, havia uma tentativa clara de contornar decisões judiciais e relativizar direitos constitucionais. O que se negociava ali não era apenas um impasse político, era a própria legitimidade da Constituição.

Agora, diante da responsabilização dos envolvidos nos atos golpistas, vemos o mesmo roteiro em ação. A ideia de “pacificar” o país aparece como justificativa para aliviar penas, suavizar julgamentos e, novamente, colocar em xeque a autoridade do Supremo. O que está em jogo não é apenas a punição dos culpados, mas a integridade da democracia.

Mais de 40 mil pessoas ocuparam a orla de Copacabana em um ato que reuniu artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Djavan. Foi um grito coletivo contra a chamada PEC da Blindagem – que dificulta a responsabilização de parlamentares – e contra o projeto de anistia aos condenados pelos atos de 8 de janeiro. E não foi um ato isolado: manifestações simultâneas aconteceram em diversas cidades do país, como São Paulo, Brasília, Salvador, Porto Alegre e Belém, mostrando que a sociedade civil está em movimento e não aceita retrocessos.

A conexão entre os dois episódios é evidente. Primeiro, tentaram apagar os direitos dos povos indígenas. Agora, tentam apagar a própria ideia de democracia. E em ambos os casos, o Supremo é o alvo — porque é ele quem resiste. O ataque aos indígenas foi o ensaio geral. Agora o palco é maior, mas o roteiro continua igual.

Essas lutas não são paralelas, elas são a mesma luta. Quando se negocia direitos originários, abre-se espaço para negociar qualquer outro princípio constitucional. E quando se silencia diante de um ataque, o próximo virá com mais força. Como na poesia popularizada por Brecht, criada a partir de um poema do pastor luterano Martin Niemöller, escrito em 1946, o alerta é antigo: quando levam os outros e não nos importamos, é apenas questão de tempo até que venham por nós.

As organizações indígenas sempre souberam disso. Por isso resistiram, denunciaram, enfrentaram o discurso político e jurídico que tentava apagar sua existência. Essa resistência precisa ser reconhecida como uma defesa da democracia em sua forma mais profunda. E agora, ela se soma à mobilização de milhares de brasileiros que foram às ruas para dizer que não há conciliação possível com o autoritarismo.

Porque democracia não se negocia. E o Brasil – com todas as suas contradições – tem mostrado que sabe resistir. Que sabe enfrentar, com coragem e lucidez, as artimanhas de um Congresso que insiste em dobrar a Constituição para proteger interesses próprios e nada republicanos. Que sabe, como na canção, transformar o grito sufocado de Cálice em canto coletivo – e cantar, apesar de você, até que o dia nasça enfim. E nasça para todos.

*Maria Paula Fernandes é diretora fundadora da Uma Gota No Oceano

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