julho 2021 | Climate change, Mudanças Climáticas, Uncategorized
Dentre as muitas notícias fortes dos últimos dias relacionadas às mudanças climáticas, uma surpreendeu pelo inusitado. Cerca de um bilhão de mexilhões e ostras foram cozidos pelo calor numa praia. Ah, e isso aconteceu perto de Vancouver, no (outrora gelado) Canadá. Foi uma triste caldeirada. Também na semana passada, mais de 800 pessoas morreram na província da Columbia Britânica por causa das altas temperaturas – os termômetros canadenses chegaram a marcar 49,6°C na região. Enquanto isso, Alemanha e Bélgica foram atingidas por um temporal de escala amazônica, que deixou um rastro de destruição sem precedentes e, pelo menos, 196 mortos – ainda há centenas de desaparecidos. A China acaba de enfrentar tragédia parecida. Se moluscos acabaram cozidos no litoral canadense e caiu chuva tropical na Europa e na Ásia é porque estamos fritos em qualquer parte do planeta; e pulamos na frigideira por vontade própria.
A impressão é de que a coisa está azedando mais rápido no Hemisfério Norte. Não à toa: o lado de lá concentra 87% da população e ocupa 67,3% do território terrestre. A densidade demográfica na Europa e em países asiáticos é altíssima – e, portanto, eles estão mais sujeitos a catástrofes com vítimas. Além disso, é a parte mais rica e industrializada do planeta. Mas os incêndios na Amazônia, no Pantanal e na Austrália, além da temperatura recorde de 18,3°C recentemente registrada na Antártida, são sinais de que o nosso caldo também já está entornando. A temperatura média da América do Sul pode aumentar em quatro graus até o fim do século, caso as emissões de gases de efeito estufa continuem nessa toada. A conclusão é de uma pesquisa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, publicado na revista científica “Earth Systems and Environment”.
“A América do Sul e, em particular, o Brasil já mostram sinais das mudanças climáticas, incluindo o aumento das temperaturas da superfície, mudanças nos padrões de precipitação, derretimento das geleiras andinas e elevação no número e intensidade de extremos climáticos. Essas variações nas características climáticas são precursoras do que pode estar por vir nas próximas décadas”, adverte Lincoln Muniz Alves, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos autores do texto. Entretanto, o governo brasileiro continua fingindo que a casa não está pegando fogo – quando não bota mais lenha na fogueira.
O desmatamento segue batendo recordes na Amazônia: em junho foram abaixo 926 km², de acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O novo relatório da entidade, divulgado nesta semana, mostra que no primeiro semestre de 2021 a floresta perdeu 4.014 km², a maior extensão da década para esse período. Enquanto isso, o Executivo se mantém fiel à sua política antiambiental. Um exemplo de que nada mudou com a saída do ministro Ricardo Salles está estampado em duas notícias recentes: segundo levantamento inédito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desde que Bolsonaro assumiu, o total de pagamento de multas por crimes ambientais na Amazônia caiu 93%, em comparação aos quatro anos anteriores; ao mesmo tempo, o Ibama, que teve seu quadro de analistas ambientais reduzido a 26%, pretende preencher apenas 655 vagas das 2.348 existentes. De dez anos para cá, perdeu quase metade de seus funcionários.
Matando a galinha dos ovos de ouro
Lincoln Alves também alerta que, caso este cenário permaneça, as secas no sul da Amazônia vão se intensificar, o que afetará diretamente áreas que o próprio governo considera estratégicas: “Se antes chovia dez milímetros em um determinado mês, esse número caiu pela metade. Isso tem impactos nos setores agrícola e de geração de energia, por exemplo, que fazem seus planejamentos com base nos volumes de chuvas”. O mercado de commodities está fervendo, mas com sua fome insaciável o agronegócio pode acabar matando a galinha dos ovos de ouro.
Outros estudos recentes avalizam o que diz o pesquisador do Inpe. O primeiro, que saiu em maio na revista “Nature Communications”, calculou que o setor deixa de ganhar US$ 1 bilhão por ano por causa da estiagem. O motivo é óbvio, mas não custa repetir: “Com menos árvores na floresta, há menos umidade no ar e menos chuvas. Logo, o avanço do desmatamento na Amazônia impacta a produtividade do agronegócio brasileiro”, explica um dos autores, o engenheiro florestal Argemiro Teixeira Leite Filho, da UFMG. O segundo, encabeçado pela engenheira ambiental Rafaela Flach, pesquisadora da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, acabou de ser publicado no periódico “World Development”. Segundo este, a indústria da soja perde US$ 3,55 bilhões por ano por causa do calor; quando os termômetros passam dos 30°C, a produtividade cai em até 5%.
O que de pior poderia acontecer já está é realidade: a Amazônia tem emitido três vezes mais CO₂ do que absorvido, de acordo com uma pesquisa internacional, liderada pela pesquisadora do Inpe Luciana Vanni Gatti e publicada no último dia 14 na “Nature”. Entre 2010 e 2018 a Amazônia brasileira derramou na atmosfera 1,06 bilhão de toneladas de carbono por ano e só sugou 18% de volta. “A segunda má notícia é que os locais onde o desmatamento é de 30% ou mais apresentam emissões de carbono dez vezes maiores que onde o desmatamento é inferior a 20%”, diz Luciana. “Essas áreas esquentaram nas últimas quatro décadas quase 2,5°C. Para se ter uma ideia, o resto do mundo esquentou 1,2°C em 150 anos”, completa Claudio Angelo, coordenador de comunicação do Observatório do Clima e autor do livro “A espiral da morte”.
Do outro lado da Linha do Equador a turma já se deu conta de que não dá para levar o problema em banho-maria: “Apenas se nos comprometermos de forma resoluta com a luta contra as mudanças climáticas poderemos controlar condições meteorológicas extremas como as que vivemos atualmente”, declarou o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier, que é conservador, sobre o desastre que se abateu sobre o seu país. Os europeus estão sentindo o gosto amargo de suas escolhas equivocadas. “As mudanças climáticas pararam de ser algo que ocorre em algum lugar distante, como o Ártico ou até a Amazônia, e passaram a ser algo que afeta diretamente a vida da população, matando mais de uma centena de pessoas num único evento”, explica a bióloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora das universidades de Oxford e Lancaster, no Reino Unido.
É a tal história: farinha pouca, meu pirão primeiro. Ainda mais depois que a Agência Internacional de Energia (IEA) anunciou na terça-feira (20) que os recursos internacionais destinados à transição energética no pós-pandemia são insuficientes para reduzir as emissões globais de CO₂. Pior: segundo os seus cálculos, essas emissões vão disparar a partir de 2023, a não ser que o pessoal coce o bolso com vontade. “Desde o início da crise da Covid-19, muitos governos têm destacado como é importante reconstruir melhor, para um futuro mais saudável, mas muitos ainda têm que fazer o que dizem”, cutucou o diretor da IEA, Fatih Birol. Essa conta vai ficar ainda mais salgada, e a turma do Norte não vai querer pagar ela sozinha.
A batata do Brasil está assando e a pressão não virá só de cima: “O ativismo de investidores pode ser uma força poderosa para o bem”, defendeu o “Financial Times”, uma das bíblias do mercado financeiro, num contundente editorial publicado no dia 14. O jornal inglês sugeriu que a turma do dinheiro puna o Brasil pelo desmatamento na Amazônia. “Pouca gente acredita que Bolsonaro, ligado a um ruidoso eleitorado de madeireiros, pecuaristas e evangélicos, mudará de comportamento em seus 18 meses finais de mandato”, diz o texto. “O Código Florestal, que parecia impressionante, está rapidamente se tornando letra morta, porque as agências que policiam sua aplicação tiveram seus orçamentos cortados severamente”, continua. A sociedade civil reage, pois nem sempre os governos trabalham pelo bem-comum. Precisamos nos mirar nesse exemplo se quisermos continuar sentados à mesa.
#Clima #MudançasClimáticas #MeioAmbiente #Incêndios #Tempestades #Natureza
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julho 2021 | Amazônia, Garimpo
Disseram “a Amazonia vale ouro” e alguns entenderam o recado de um jeito completamente errado. Pelo menos, é o que indica o relatório “legalidade da produção de ouro no Brasil”, produzido pela UFMG em parceria com o Ministério Público Federal (MPF). O documento aponta que 90% do mineral explorado ilegalmente no país entre 2019 e 2020 saiu da floresta, gerando um prejuízo socioambiental de US$ 1,7 bilhão. A Amazônia vale muito sim, mas de pé. Já o ouro que sai dela, em vez de lucro, só gera dor de cabeça. O problema é tão grande que o MPF tomou uma medida radical: pediu à Justiça a suspensão de todas as permissões para extração, comércio e exportação de ouro no Sudoeste do Pará. Há uma corrida em curso no coração da maior floresta tropical do planeta. De um lado, garimpeiros tentando enriquecer a qualquer custo. De outro, indígenas dispostos a preservar a natureza no local que lhes serve de casa.
Responda rápido: qual é o estado que mais produz ouro no país? Minas Gerais, é claro. Em segundo lugar, vem o Mato Grosso e, em terceiro, o Pará. Acontece que, de acordo com o levantamento, enquanto Minas e Mato Grosso mantiveram produção estável no período analisado, a mineração disparou nos últimos 2 anos no Pará. Lá, o volume produzido saltou de 9,7 toneladas em 2019 para 17,2 em 2020. Esta corrida do ouro não aconteceu sem alguns atropelos. No caso em questão, sem que riquezas tenham deixado a floresta passando longe controles do Estado. Só na Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, cerca de 9 toneladas de ouro foram extraídas de forma irregular entre 2019 e 2020. É o dobro do volume verificado na APA Reentrâncias Maranhenses, segunda colocada neste ranking. Porém, o principal aqui é o seguinte: a APA do Tapajós não fica numa região qualquer.
Noventa e nove por cento da área de 2 milhões de hectares da APA do Tapajós estão localizados nos municípios paraenses de Itaituba e Jacaracanga. Colada à APA, está a Terra Indígena (TI) Munduruku, com sua população de mais 6000 pessoas, sua pequena área de 2382 hectares e crescentes taxas de desmatamento desde 2013. Naquele ano, foram 77 hectares de floresta derrubada. Em 2019, 1824. Há mais de 4 milênios na região, os indígenas ultimamente andam assustados com as retroescavadeiras que destroem rios e igarapés à procura de ouro e vomitam toneladas de mercúrio e outros resíduos nos cursos d’água nos quais se banharam seus antepassados. A situação tem sido denunciada por meio de porta-vozes que veem este presente apagar o futuro – como Bheka Munduruku, de 17 anos. “Queremos convencer todo o mundo — inclusive os cabeças-duras — da importância de preservar a floresta e os seus rios”, afirmou ela em um artigo para Folha de São Paulo. Não se trata de arrogância adolescente, mas de um grito de alerta maduro e consciente. Esta caça ao tesouro não vai nos levar a nada. Ou melhor, até vai – mas a um lugar que não queremos chegar.
Como nada nunca é tão ruim que não possa piorar, o Governo Federal parece ter entrado nesta briga – só que do lado errado. Em fevereiro do ano passado, Bolsonaro enviou ao Congresso o Projeto de Lei 191, que pode facilitar a mineração em terras indígenas. O texto ainda não foi analisado por deputados e senadores, mas o estudo da UFMG e do MPF estima em US$ 5 bilhões o prejuízo caso a ideia do presidente se torne de lei. O valor leva em conta o impacto da medida nos chamados serviços ecossistêmicos, que consistem em chuvas, temperaturas amenas e outros favores que a natureza hoje nos presta de graça.
Em 05 de agosto de 2020, o então ministro do meio ambiente esteve em Jacareacanga. Em vez de criticar a destruição da floresta, se reuniu com garimpeiros que queriam a suspensão das operações do Ibama na região. Não satisfeito, Ricardo Salles ainda usou um avião da FAB para levar sete deles a uma nova reunião em Brasília no dia seguinte. Para os indígenas, a situação é um deus-nos-acuda. Em 25 de maio, a Polícia Federal realizou em Itaituba a Operação Mundurukânia 1, que teve como alvo os garimpeiros. Eles reagiram e puseram fogo na casa de Maria Leusa Munduruku. “Chegaram com combustível naquelas garrafas de dois litros de refrigerante, armados, atirando, no meio de criança”, lembrou depois a liderança indígena. Um mês após o episódio, a Câmara aprovou outro PL, o 490, que também pode facilitar o garimpo em TIs e depende agora da aprovação do Senado para entrar em vigor.
Pelas contas do MPF, cada grama de ouro que sai da Amazônia de forma ilegal gera um prejuízo de até R$ 3 mil. O cálculo considera o valor necessário para recuperar as áreas afetadas. Para o período entre 2019 e 2020, o custo com este tipo de atividade chegou a R$ 20 bilhões – contra R$ 8,7 bilhões gerados pela mineração legal. É uma conta que não fecha, mas que tem solução. O aumento da fiscalização, a atribuição de responsabilidade a quem compra e o cancelamento de autorizações para mineração em TIs são alguns dos caminhos apontados pelo estudo do MPF e da UFMG para isso. Resta saber quem cruzará a primeiro a reta de chegada: o bom senso ou a ganância. Fique à vontade para escolher em que torcida você prefere estar.
Foto: Marcos Amend / Greenpeace
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ISA – Área de Proteção Ambiental do Tapajós
ISA – Terra Indígena Munduruku
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março 2021 | Direitos humanos, Direitos indígenas, Indigenous rights, Povos Tradicionais
Somos todos Guarani Kaiowá. Você pode até lembrar da frase, mas dificilmente recorda como ela surgiu. Em 2012, a Justiça deu ganho de causa a fazendeiros que pediam que 170 indígenas desocupassem uma área ainda não demarcada no Mato Grosso do Sul. Revoltados com a decisão, sob pressão dos ruralistas e comendo uma vez por dia, os indígenas mandaram uma carta aos juízes. “Pedimos a Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos que decretem a nossa morte coletiva”. Chocante, a solicitação transformou os Guarani Kaiowá em trending topic. Nas redes sociais, quem se solidarizava com eles incorporava o nome do povo a seu sobrenome, num caso único no mundo. Nove anos depois, um novo imbróglio judicial os traz de volta às manchetes. Será que seremos todos Guarani Kaiowá de novo?
Como num tabuleiro de xadrez, a disputa pode até ser outra – mas as peças são as mesmas. Desta vez, o caso envolve as 120 pessoas que vivem na Terra Indígena Guyraroka, no mesmo Mato Grosso do Sul. Elas estão cercadas por fazendeiros, com os quais convivem em tensão permanente. A ponto de, em 2019, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos classificar o quadro na região como “grave situação humanitária”. Em 2014, o Supremo Tribunal Federal anulou a demarcação de Guyraroka, decisão que os indígenas agora tentam reverter (já que sequer foram consultados na ocasião). Eles questionam o fato de a decisão se basear no chamado marco temporal, argumento que defende que os indígenas só têm direito às terras que ocupavam na data de promulgação da Constituição Federal. Na prática, o marco temporal é um unicórnio jurídico: não existe formalmente em nenhuma lei, mas muita gente jura que já viu. “O marco temporal, para gente, é anti-indígena”, resume Erileide Domingues, integrante do povo Guarani Kaiowá.
Antes de decidir se você será ou não Guarani Kaiowá, é bom entender melhor o que isso significa. O povo que carrega este nome reúne mais de 30 mil pessoas no Brasil e já chegou a ocupar uma área que ia do litoral paulista ao gaúcho. Isso mudou com a chegada dos europeus, que tinham o péssimo hábito de persegui-los onde quer que eles estivessem. Entre os séculos XVI e XVII, jesuítas e colonos espanhóis disputavam o direito de explorar os indígenas. Depois, foi a vez dos bandeirantes entrarem na briga. Com tanta perseguição, eles fugiram para o sul do Mato Grosso do Sul, onde tiveram relativa paz até o século XX. Quando o cultivo de erva mate começou, adivinha quem foi para as lavouras? Da década de 1920 em diante, novos colonos, avós dos atuais fazendeiros, viraram a dor de cabeça dos indígenas, que foram confinados em pequenas áreas para não atrapalhar a expansão agrícola. O sufoco não os impediu de se articularem por seus direitos nem de pagarem caro por isso. “Eles nos cercam como se fôssemos porcos, mas o Guarani Kaiowá é guerreiro”, já disse Marlinho Guarani Kaiowá.
Seja em 2012, seja agora, o pano de fundo das discussões é o mesmo e envolve uma questão maior: a relação entre povos tradicionais e Poder Judiciário. “O caso Guyraroka é um caso clássico do que as comunidades indígenas enfrentam por todo o país, qual seja, a dificuldade de ter acesso à Justiça”, explica Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Até pouco mais de 30 anos atrás, a lei entendia que os indígenas existiam sob tutela do Estado e que o esforço da sociedade deveria ser no sentido de incorporá-los. A Constituição de 1988 mudou esse entendimento. Ela definiu que os povos tradicionais têm direito de manter sua cultura (por mais que muitas ações da atual gestão federal apontem no sentido contrário) e que eles podem acionar os tribunais para acessar àquilo que a lei lhes garante, como qualquer cidadão. Pode parecer pouco. Mas, no limite, é a diferença entre ser livre e não ser.
A expectativa agora é que o processo em julgamento pelo STF tenha um desfecho diferente da ação judicial que originou a campanha #SomosTodosGuaraniKaiowá. Em 2013, diante da repercussão do caso, a Funai publicou um relatório que identificou e delimitou a Terra Indígena Iguatemipegua I. Para a posse definitiva do espaço, só faltava uma portaria do Ministério da Justiça, que até hoje não foi publicada. Isso fez com que os indígenas continuassem submetidos às pressões e violações que os tornaram famosos no mundo inteiro, só que sem a mobilização das redes sociais. Que desta vez possamos ser, de fato, Guarani Kaiowá, acompanhando todos os desdobramentos da luta deste povo pela sua terra. Afinal, como eles mesmos afirmaram no Estadão, “não é só terra que está em jogo. Não é só floresta. É vida que está em jogo. E é a vida da comunidade”. Se acharmos natural atropelar direitos garantidos na Constituição hoje, abrimos um precedente para que nossos próprios direitos sejam questionados amanhã.
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Cimi – STF julga caso da Terra Indígena Guyraroka, anulada com base no marco temporal e sem que comunidade fosse ouvida
Conselho Indigenista Missionário (Facebook) – STF julga caso da Terra Indígena Guyraroka, anulada com base no marco temporal e sem que comunidade fosse ouvida
Povos indígenas do Brasil (ISA) – Guarani Kaiowá
Instituto Socioambiental – Estatuto do Índio
Estadão – #Marcotemporalnao: o que está em jogo no STF é a vida da comunidade Guyraroka