setembro 2024 | Catástrofe ambiental, Desmatamento, Pantanal, Povos indígenas
Por Claudia Gaigher
A Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo é um importante passo no controle de biomassa, educação ambiental, prevenção e fiscalização. Mas e o que foi destruído? E a restauração do bioma? É preciso responsabilizar e punir efetivamente os culpados
Em uma das minhas coberturas de incêndios no Pantanal, eu estava acompanhando a brigada indígena nos combates noturnos. Toda aquela devastação me impactou, e eu chorava ao ver o fogo avançando. Foi quando um brigadista Terena me olhou e disse: “É triste né? Ver que muita gente não conhece o comportamento do fogo… Tem o fogo bom e o fogo ruim.” Fiquei intrigada e perguntei: ” Como assim?”. Ele, com o rosto enegrecido pela fuligem, me encarou serenamente e disse: “Fogo bom é aquele calmo, que queima pouco, não mata os bichos e as plantas. E quando vem a chuva, tudo brota verdinho. O fogo ruim é esse aqui, raivoso, que passa queimando e matando tudo no Pantanal”. A explicação me surpreendeu, e fiquei com aquilo na cabeça. Fui estudar a respeito…
Os povos originários vivem no Pantanal há mais de 2 mil anos e sempre usaram o fogo como aliado nas roças de subsistência e na preparação dos campos. Segundo Leticia Garcia, bióloga e coordenadora do Laboratório de Intervenções Ecológicas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o Pantanal é parcialmente adaptado ao fogo e algumas espécies, inclusive, dependem do fogo, mas a recorrência dos
grandes incêndios vai tornando os ambientes cada vez mais degradados, afetando a resiliência do bioma. O “fogo ruim” está devastando o Pantanal.
O papel dos povos originários na proteção e recuperação de áreas no Pantanal tem se mostrado fundamental. Em praticamente todos os territórios existem brigadas indígenas formadas pelo PrevFogo Ibama. Esses brigadistas estão entre os mais efetivos no combate aos incêndios. São os primeiros a chegar e os últimos a sair das áreas em chamas e têm uma resistência física impressionante. Além disso, as brigadas indígenas têm uma qualidade insuperável no combate e manejo integrado do fogo: o conhecimento do território, fundamental para a chegada imediata aos locais dos incêndios. Seus ancestrais já usavam o fogo bom, e eles sabem o momento certo e o tipo de vegetação que pode ser queimada. É fato que, onde os brigadistas indígenas foram contratados, os resultados têm sido bastante significativos na redução de áreas queimadas.
Só que não podemos esquecer que 95% do Pantanal são formados por fazendas privadas, a maioria de criação de gado. A pecuária extensiva foi instalada há mais de 200 anos e, durante muito tempo, os antigos “reis do gado” eram os maiores proprietários de terra. Agora, a situação mudou, mas a destruição continua. A divisão das fazendas entre os herdeiros, a venda para investidores externos, o abandono de áreas por descapitalização, são situações que têm fragmentado o bioma e tornado ainda mais difícil implementar uma política de conservação na região. Alguns proprietários no Pantanal abriram as porteiras para o ecoturismo, pesquisa e buscaram o PrevFogo para treinar os seus funcionários e formar brigadas civis nas fazendas. Isso tem sido importante no combate inicial dos focos, mas não é suficiente. Os anos de estiagem, sem cheias e o relevo plano encheram os olhos dos produtores de grãos, que já avançam com as suas lavouras bioma adentro.
Este ano, praticamente todos os focos de incêndio foram provocados por ação humana. Nos anos anteriores, também. O fogo mau compensa. Investigações são feitas, inquéritos instaurados e multas aplicadas, mas, na prática, não muda nada. Tanto que, de 2020 até 2023, o governo de Mato Grosso do Sul aplicou mais de R$ 50 milhões em multas para quem comprovadamente começou os incêndios. Mas da aplicação das multas ao pagamento tem uma longa espera… Recursos e questionamentos se arrastam, e o pagamento que é bom, nada.
Em julho, foi aprovado no Senado e sancionado pelo Presidente Lula em uma visita a Corumbá, no Pantanal em Mato Grosso do Sul, o projeto que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, um importante passo no controle de biomassa, educação ambiental, prevenção e fiscalização. Mas e o que foi destruído? E a restauração do bioma? Quem paga essa conta? É preciso responsabilizar e punir efetivamente os culpados.
Até 22 de agosto, 2.031 milhões de hectares do bioma foram queimados, 13,46% da área total, de acordo com dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LASA-UFRJ). A Polícia Federal instaurou 20 inquéritos que apuram os culpados identificando os pontos de ignição dos incêndios pantaneiros. Será que esses inquéritos também vão virar cinzas?
Claudia Gaigher é Jornalista e escritora. Acompanha desde 1998 a saga dos indígenas no Centro Oeste do Brasil*
Publicado no Correio Brasiliense em 27 de agosto de 2024.
agosto 2024 | Direitos humanos, Povos Tradicionais, Quilombola, Quilombolas
Resíduos da lógica escravocrata
Por: Deborah Duprat, Vercilene Dias e Élida Lauris
O projeto colonial que se desenvolveu no Brasil teve por princípio criar aquilo que Achille Mbembe chama de “um mundo composto por duas categorias de pessoas: de um lado, os sujeitos que agem, do outro, os objetos sobre os quais se intervém”. O escravizado, assim, é a experiência da cisão do humano e da ausência de autonomia, vontade e razão. Essa violência a um só tempo de dessubjetivação, exploração e extermínio foi o embrião dos grandes genocídios do século XX.
A transferência da violência em suas formas mais abjetas para o solo europeu foi o motor da criação, logo após a Segunda Guerra Mundial, da Organização das Nações Unidas e da subsequente Declaração Universal dos Direitos Humanos, que formula um regime de direitos universais para todas as pessoas. Perante esse regime de direitos, Estados, como o brasileiro, assumem o compromisso com sociedades inclusivas, diversas e orientadas pela paz. Isso é o que também diz a nossa Constituição, que anuncia a igualdade e a justiça como valores supremos.
As normas de direitos humanos partem de duas premissas muito simples: a violação deve ser investigada e punida em tempo razoável e as vítimas e seus familiares devem ter centralidade nos processos de apuração de responsabilidade. O Estado brasileiro já foi condenado por diversas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não tomar medidas eficazes para reprimir delitos e proteger pessoas, gerando impunidade e violando direitos humanos. São exemplos disso os casos Ximenes Lopes, Sétimo Garibaldi, Escher, Gomes Lund, Favela Nova Brasília, Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Herzog, Fábrica de Fogos de
Santo Antônio de Jesus, Márcia Barbosa e Sales Pimenta.
Nos assassinatos de pessoas quilombolas, da falta de ação eficaz do Estado brasileiro decorre uma situação intolerável de impunidade sistêmica. O assassinato de Mãe Bernadete expôs de forma crua o problema da omissão e da falta de diligência devida nos homicídios de quilombolas. Com sua morte, a sociedade tomou conhecimento de que ela lutava há mais de seis anos por justiça pelo assassinato de seu filho Flávio Gabriel Pacífico, o Binho do Quilombo. Depois de a própria família ter conduzido investigações para elucidar o caso, suspeitos da morte de Binho foram finalmente identificados no último mês de julho.
Dados inéditos da Conaq, reunidos no relatório “Assassinatos de Quilombolas – ameaças a quilombolas defensores de direitos humanos 2019-2024”, apontam para uma quantidade desproporcional de homicídios de pessoas quilombolas nos estados do Maranhão, da Bahia e do Pará, assim como a lentidão absurda nos processos de titulação dos quilombos. As duas questões se alimentam e mantêm os resíduos de uma lógica escravocrata: negar direitos e eliminar corpos negros.
É a própria Constituição brasileira que afirma o reconhecimento do domínio das terras que comunidades quilombolas ocupam. A inércia do Estado na titulação reforça a percepção dos grupos hegemônicos de que são os únicos portadores de direitos, inclusive a ideia de que seu poder inclui o uso inconsequente da violência. Quando os processos judiciais se eternizam, os fatos não são devidamente investigados e os agressores não são responsabilizados, vai sendo semeada a certeza da impunidade e a de que o direito à vida da população quilombola não é fundamental para o Estado brasileiro.
Poucos meses antes de sua morte, Mãe Bernardete tinha estado com a Presidente do Supremo Tribunal Federal em visita ao Quilombo Quingoma, na Bahia. Em sessão do Colegiado, a Ministra afirmou que “ainda temos um longo caminho a percorrer, como sociedade, no sentido de um avanço civilizatório e da efetivação dos direitos fundamentais que nossa Constituição Cidadã assegura a todos”. Quanto as famílias quilombolas ainda terão que percorrer? Quando alcançarão paz, segurança e direitos nos seus territórios?
Deborah Duprat é Advogada e subprocuradora-geral da República aposentada
Vercilene Dias é Quilombola do Quilombo Kalunga, coordenadora do Coletivo Jurídico da CONAQ, doutoranda em Direito pela UnB, pesquisadora, e especialista em direitos quilombolas
Élida Lauris é Doutora em Sociologia, pesquisadora em direitos humanos, especialista em violência contra quilombolas defensores de direitos humanos
*Publicado no Correio Brasiliense, em 18 de agosto de 2024.
agosto 2024 | Cultura, Cultura Popular, Mulheres, Quilombola, Quilombolas
Por Waleska Barbosa
Quem tem direito à memória? Quem pode figurar em um museu? Que histórias um país conta em seus panteões? Decisões políticas apontam quem será lembrado e quem será apagado. Decidem que cara e cor de pele terão heroínas, heróis, algozes, e qual lado da força terá sua versão perpetuada, cultuada, conhecida e reconhecida.
Por sorte, decisões políticas também são tomadas fora dos palácios. Em chão batido. Em território quilombola. E uma delas fez surgir o Museu Rústico Mãe Bernadete, a ser inaugurado em Pitanga dos Palmares, na Bahia, como parte da programação do 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola, entre os dias 16 e 18 de agosto.
Por mais de 50 anos vivenciado como Lavagem de São Gonçalo, o evento que celebra tradições ancestrais foi interrompido e voltou com nome de festival por ideia dela. A matriarca. A Ialorixá. Dos Palmares. Tal qual Zumbi, ela lutou. Lutou contra gananciosos, contra poderosos, contra injustiças. Lutou pelo bem-viver. Segurança alimentar. Saúde. Educação. E, o mais importante para seu povo, lutou pelo direito à terra.
Com acervo composto por objetos pessoais, roupas, premiações e comendas recebidas por Bernadete Pacífico, o museu será lugar de permanência da cultura afro-quilombola e do legado de todos que contribuíram, até mesmo com a vida, para a manutenção dos saberes e fazeres ancestrais em Pitanga dos Palmares. É o que me conta o filho dela, Jurandy Wellington Pacífico.
Mãe Bernadete foi uma dessas que contribuíram com a vida. Até o dia 17 de agosto de 2023, quando foi assassinada. Enquanto descansava com os netos. À noite. Foram vinte e dois tiros. Doze deles atingiram seu rosto. O que corrobora com o alerta que a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) vem fazendo: há um aumento assustador no número de lideranças mulheres assassinadas Brasil afora. E a Bahia, terra de Bernadete, lidera as estatísticas. Elas morrem torturadas. Morrem com laivos de humilhação e desdém. Morrem odiadas.
Morrem por exercer papel de destaque. Por serem mulheres. Ou os dois. Vulnerabilizadas pela ausência de políticas públicas que as protejam. Ou pela morosidade da implementação de políticas públicas que lhes garantam a regularização de seus territórios.
Mãe Bernadete. Viva em lembrança. Presente em cada palavra dita. Em cada gesto. Em cada conquista. Sua existência gigante salvaguardada no Museu Rústico de 25 metros quadrados. Uma construção de taipa. Erguida em mutirão.
Recebo fotos e vídeos da obra. Ninguém parece cansado. Há sol quente no céu de Simões Filho. Mas há mais calor, o humano, entre os que se unem em torno da estrutura. Entre 12 e 20 pessoas – trabalhando juntas dia após dia, até que o último naco de barro fosse posto nas entranhas das toras de madeira unidas e arranjadas em trama que lembra o xadrez do tecido. “É tudo feito à mão. Do jeito que eram nossas casas há 50 anos. É saber ancestral que estamos resgatando”, conta Jurandy.
Anos antes, em 2017, Mãe Bernadete perdeu um dos filhos, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, Binho do Quilombo. Ele também terá suas memórias abarcadas pelo Museu Rústico, entre outras lideranças do território, como Mestre Nilo e Matias dos Santos.
Binho foi assassinado a tiros como a mãe, tombada antes de ver o caso desvendado. Em julho, a Polícia Federal anunciou a prisão de dois suspeitos do crime. Mas para Jurandy ainda resta a pergunta: quem mandou matar Binho do Quilombo?
Não há respostas. E enquanto se espera por elas, no luto do verbo lutar, é urgente dar continuidade ao que vinha sendo feito. Com festival, arte e cultura. Com celebrações – a alegria é tecnologia ancestral. A religiosidade também. Jurandy se desdobra para organizar o evento que a mãe idealizou, ainda que lhe doa a saudade. É o primeiro sem tê-la como força de trabalho. O primeiro em que será homenageada, emprestando seu nome e o simbolismo nele contido a museu, prêmio e ao próprio evento.
Para que se conheça, respeite e beba da sua fonte, um legado precisa ser preservado. É o que o Museu Rústico vai assegurar daqui para a frente. Pitanga dos Palmares forja, com a mão na massa, ou melhor, no barro, o direito à memória, soprando aos quatro ventos do território negro: Mãe Bernadete – o legado continua.
*Waleska Barbosa é escritora, jornalista e correspondente da Uma Gota no Oceano em Brasília. Apresentadora do programa Quilombo de Wal, na TV Comunitária do DF, integra também a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF).
julho 2024 | Cerrado, Quilombola, Quilombolas
Titulação já para os quilombos do Cerrado |
Uma perspectiva quilombola |
*Por Sandra Braga e Antonio Oviedo
A luta ancestral pelo direito à terra e ao espaço para viver de acordo com preceitos seculares envolve resistir à volúpia capitalista da monocultura agrícola, que engole trechos cada vez maiores dos rincões brasileiros. A batalha se dá em boa parte do país – da Amazônia ao Pampa, do Pantanal à Caatinga – e é particularmente intensa no Cerrado.
Pesadas ameaças ambientais espreitam as populações quilombolas em Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Piauí. Nada menos que 19 territórios (um quarto de todos naquele pedaço do Brasil) estão sob alta vulnerabilidade, um quadro alarmante que até hoje não recebeu a devida atenção das autoridades.
O Instituto Socioambiental dimensiona o tamanho do problema em estudo sobre a vulnerabilidade socioambiental dos territórios quilombolas no Cerrado. Pioneiro ao adaptar o modelo criado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para investigar os perigos que cercam os quilombos, o levantamento aponta que todos os territórios em Mato Grosso, uma das mais cobiçadas fronteiras do agronegócio, estão em alta vulnerabilidade. Outros estados com muitos territórios em situação dramática são Tocantins (75%), Minas Gerais (62,5%) e Goiás (55,6%).
A não titulação dos territórios quilombolas potencializa os riscos de maneira contundente. Os territórios sem titulação concluída apresentam níveis (ou graus) de vulnerabilidade maiores, com o consequente risco para os ecossistemas locais e, sobretudo, as populações que os preservam.
Os indicadores das pressões nos territórios são aferidos por mudanças na cobertura vegetal e atividades econômicas venenosas, tais como mineração, cadastro ambiental de imóveis rurais (CAR) ou obras de infraestrutura planejadas. De outro lado, o indicador de capacidade adaptativa inclui o status do reconhecimento do território e a cobertura remanescente de vegetação nativa, além da população residente no território.
Em meio a mudanças climáticas cada vez mais dramáticas, ameaças reais à continuação da vida humana no planeta, as comunidades quilombolas dão aulas cotidianas de sustentabilidade. Manejam seus territórios por meio de conhecimentos tradicionais, sedimentados no respeito à terra, às águas, aos animais e aos encantados, a partir de saberes africanos e em diálogo com o conhecimento indígena. Conjugam cuidado e simplicidade, para apresentar resultados incontestáveis.
Exemplo educativo para entender o valor do jeito afrobrasileiro de fazer está no Quilombo Kalunga, um dos 63 do Cerrado e o maior do país em extensão (262 mil hectares). Por lá, a vegetação está preservada em 83% do território – no resto de Goiás, o bioma sobrevive em irrisórios 30% da cobertura original. Vizinho ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o santuário quilombola há 200 anos toca a vida em sintonia precisa com o meio ambiente. Apenas 10% do território teve a titulação concluída até o momento.
As comunidades quilombolas no Cerrado e seus territórios são essenciais na luta pela sustentabilidade. O empoderamento das suas populações beneficiará a gestão territorial; assim, o combate e controle de atividades ilegais dentro e ao redor daquelas comunidades precisam se tornar política permanente e incansável do Estado.
O cancelamento de requerimentos minerários e cadastros de imóveis rurais sobrepostos aos territórios, a adequada consulta pública para o licenciamento de obras de infraestrutura e o fortalecimento das políticas de gestão territorial devem ser inegociáveis, em nome de reduzir a vulnerabilidade socioambiental dos territórios – e da defesa do meio ambiente.
É para os quilombolas – e para todos nós.
*Sandra Braga é coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
Antonio Oviedo é Pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA)
maio 2024 | Amazônia, Cerrado, Climate change, Desmatamento, Direitos humanos, Direitos indígenas, Mudanças Climáticas, Rio Grande do Sul
Por Sérgio Guimarães
Secretário executivo do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental
As recentes catástrofes no Rio Grande do Sul nos lembram brutalmente das consequências da negligência ambiental e da falta de infraestrutura adequada do nosso país. Enquanto enfrentamos esta dolorosa realidade, outro drama, por enquanto mais silencioso, mas potencialmente tão devastador, se desenrola na Amazônia e no Cerrado: o desmatamento descontrolado – que ameaça não só a biodiversidade local, a disponibilidade de água e as comunidades que delas dependem, mas também o equilíbrio climático global.
Há tempos os cientistas são unânimes em alertar que estamos nos aproximando do ponto de “não retorno” que, uma vez ultrapassado, desencadeará processos irreversíveis, comprometendo a capacidade de regeneração da floresta e intensificando eventos climáticos extremos por todo o Brasil — secas severas, inundações devastadoras, como vimos recentemente no Rio Grande do Sul, tragédias que poderiam ser mitigadas com políticas públicas mais robustas e conscientes.
Grandes projetos de infraestrutura, como rodovias e hidrelétricas, continuam entre os principais fatores que levam ao desmatamento. A história mostra que desde a construção da BR-364, que impulsionou a ocupação de Rondônia, a BR-230, conhecida como Transamazônica, até a BR-163; todas se constituíram no fator decisivo do processo de devastação na região, especialmente pela crônica falta de governança mesmo quando haviam medidas construídas coletivamente para evitar os impactos socioambientais como o plano BR-163 Sustentável que foi totalmente abandonado.
Da mesma forma, hidrelétricas como Tucuruí no rio Tocantins, Belo Monte no rio Xingu, Santo Antônio e Jirau no rio Madeira e quatro barragens construídas simultaneamente no rio Teles Pires (afluente do Tapajós); além dos impactos diretos na floresta, na fauna aquática, no regime hídrico de grandes rios e nas comunidades ribeirinhas, também contribuem para o desmatamento, emissões de metano e outros gases de efeito estufa e para a ocupação desordenada da região, incentivando a migração para cidades que já padecem pelo déficit de infraestrutura básica.
É preciso assumir que essas atividades não estão precedidas por estudos suficientes para uma tomada de decisão com base técnica e, muitas vezes, são definidas a partir de interesses políticos e de setores econômicos diretamente envolvidos e que aprofundam o processo de desmatamento na região. Exemplos mais recentes como a Ferrogrão (um projeto de ferrovia de 933 km² de extensão, entre Sinop (MT) e Santarém (PA), hidrelétricas no Rio Madeira, hidrovia no Tocantins e a proposta de Corredores de Integração Sul-Americana também têm sido sinônimo de devastação ambiental.
Também é necessário lembrar que o Brasil foi um dos países signatários da Declaração do uso de Florestas e Terra dos Líderes de Glasgow da COP26, em 2021, que firma o compromisso total com o reflorestamento e a preservação florestal até 2030. Na COP27, no Egito, o presidente Lula reafirmou o compromisso com o acordo internacional. No entanto, as promessas ainda estão distantes da realidade no território, com isso o desmatamento avança e os impactos socioambientais se agravam.
Diante deste cenário, é imperativo intensificar e diversificar as ações para proteger a Amazônia e o Cerrado. É essencial promover um diálogo constante entre o governo, organizações da sociedade, movimentos sociais e outros atores, para criar políticas públicas eficazes e mecanismos de decisão transparentes e inclusivos.
Uma estratégia de atuação efetiva deve ter em vista a proteção da floresta, dos sistemas hídricos e, ao mesmo tempo, respeitar as comunidades e beneficiar a economia regional e a vida no planeta em termos de biodiversidade e equilíbrio climático.
É necessário ainda que as decisões sejam precedidas de estudos robustos de riscos socioambientais, viabilidade econômica, e de análises de alternativas de custo-benefício social, ambiental e econômico. Alternativas que devem considerar, prioritariamente, as necessidades de fortalecimento de uma economia regional sustentável e as necessidades das pessoas, em especial dos grupos mais vulneráveis. Também urge uma comunicação simplificada e bem direcionada, que consiga chegar nos diversos segmentos da sociedade, para que assim, a população possa contribuir com o processo de tomada de decisão.
A tragédia no Rio Grande do Sul deve servir como um alerta para todo o Brasil: é hora de repensar nossos modelos de desenvolvimento e infraestrutura. Não podemos permitir que a busca por progresso econômico imediato continue a sacrificar o meio ambiente e a segurança das atuais e futuras gerações. Agir agora é fundamental para evitar que as cenas de destruição que chocaram o país se tornem cada vez mais comuns.