A natureza do voto

A natureza do voto

Se a eleição é a festa da democracia, com que roupa a gente vai? Atualmente, muitos ainda não sabem o que vão vestir. É o que aponta um levantamento do Datafolha. Em cidades como Rio de Janeiro, a pesquisa revela que quase um terço dos eleitores não tinha um candidato favorito a cinco dias da votação. Esta indefinição não é privilégio do cenário eleitoral. Ela se repete em relação à preservação do meio ambiente. Divulgado em 05 de novembro, um levantamento da Confederação Nacional da Indústria indicou que só metade dos brasileiros se veem diretamente afetados pelos problemas ambientais, que poderão ter diferentes desdobramentos de acordo com os prefeitos e vereadores mais votados nestas eleições.

Apesar do cardápio variado de recursos à disposição, os governantes ainda saem mal na foto quando o assunto é preservação de ecossistemas. Dados de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS) apontavam que 50 milhões de brasileiros não tinham acesso a um serviço de recolhimento de lixo e 100 milhões viviam em municípios que não contavam com rede de esgoto.

São problemas que estão literalmente batendo na porta das autoridades e já passaram da hora de serem resolvidos. “Hoje, se você olhar as principais cidades do Brasil e do mundo, elas estão de costas para o rio. É como se o rio deixasse de ter importância e passasse a ser algo secundário na vida das pessoas”, já comentou sobre o tema o biólogo João Paulo Capobianco, presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade, em 2018, no Dia Mundial da água, durante o lançamento da campanha “Em nome de quê?”, desenvolvida por Uma Gota no Oceano em parceria com a Operação Amazônia Nativa (Opan). Você já parou para avaliar qual importância seus candidatos dão à natureza de seu município? E sabe o que eles podem fazer por ela?

Vereador e prefeito são como os 2 ponteiros de um mesmo relógio. O trabalho de um não faz sentido sem a colaboração do outro. Enquanto a Câmara elabora as leis e fiscaliza as ações do prefeito, o gestor aprova ou veta as regras propostas pelos legisladores e define onde serão aplicados os recursos. Desta colaboração saem decisões com alto impacto em nossas vidas e que podem ajudar a proteger (ou a destruir) a natureza. Elas vão dos projetos de agricultura familiar da prefeitura ao tipo de merenda servida nas escolas da cidade.

Se um município cuida de seus mananciais, evita que a paisagem seja alterada e dá a destinação adequada a seu lixo, o meio ambiente prospera e a qualidade de vida da população aumenta. Um estudo da Universidade da Califórnia mostrou, por exemplo, que morar perto de áreas verdes gera benefícios para saúde mental de adultos e adolescentes. Ideias do tipo estão por trás da chamada Economia Verde, que propõe o uso consciente dos recursos naturais e já inspira alguns governantes. Em São José dos Campos, por exemplo, um programa criado em 2012 paga a quem mantém e restaura a vegetação na região do Rio do Peixe. Assim, o local alcançou a conservação de 500 hectares de floresta e o plantio de mais de 80 mil mudas.

Da mesma forma, quando uma cidade vai na contramão e atropela a natureza, a vida selvagem não é a única prejudicada. Nós também somos afetados, já que nossa sobrevivência está diretamente ligada ao contexto a nossa volta. O maior exemplo disso é a pandemia de Covid-19, doença que bateu a marca de 50 milhões de pessoas contaminadas em todo o mundo e que teve origem atribuída à degradação ambiental, segundo a ONU.

“Quando se desmata e se perde a biodiversidade, o vírus, que tinha o seu hospedeiro natural, vai procurar outro organismo para viver e se adaptar. Na falta de outras espécies, eles chegam até os humanos”, explicou em entrevista Rubens Benini, líder da estratégia de restauração florestal da ONG The Nature Conservancy. Só no Brasil, o Ministério da Saúde já repassou cerca de R$ 17 bilhões às prefeituras nos esforços para atender os doentes.

Mais do que apenas protegerem ecossistemas, as políticas ambientais têm efeitos positivos para todos os setores. E é importante lembrar que não falamos apenas de áreas urbanas. Na região rural dos municípios da Amazônia, cada hectare dedicado ao cultivo de açaí, cacau ou castanha rende hoje US$ 12.400 por ano, valor 20 vezes maior que o verificado em uma área do mesmo tamanho dedicada à pecuária. A grande diferença é que as plantações demandam menos espaço e não exigem a derrubada da floresta. Já no Centro-Oeste, um estudo apontou que fazendas de soja poderiam economizar R$ 1,24 milhão por safra se mantivessem a vegetação nativa do Cerrado e, com isso, diminuiriam os gastos com erosão.

Ao contrário do que muitos ainda pensam, conservação do meio ambiente e crescimento econômico não concorrem entre si. Se forem capazes de enxergar isso, os próximos prefeitos e vereadores prestarão um imenso serviço não só à natureza, mas à sociedade brasileira.

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Leia mais:
Folha – Paes amplia vantagem sobre Crivella, que tem 62% de rejeição no Rio, mostra Datafolha

Estadão – Desafio brasileiro ainda é ligar preservação do meio ambiente à rotina

Ministério do Desenvolvimento Regional – Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (2018)

Uma Gota no Oceano – Em nome de quê? | Desafio para preservação dos nossos rios

Tribunal Superior Eleitoral – Eleições 2020: você sabe o que faz um prefeito?

Tribunal Superior Eleitoral – Vereador: conheça o papel e as funções desse representante político

Aliança Pela Alimentação Adequada e Saudável – É dever da prefeitura e Câmara Municipal garantir que as escolas da cidade sejam ambientes livres de ultraprocessados

Instituto Centro Vida – Quais perguntas você deve fazer para seu candidato?

Ipea – Economia verde e o desenvolvimento sustentável

ScienceDirect – Green space and serious psychological distress among adults and teens: A population-based study in California

Programa Internacional de Cooperação Urbana – Programa Pagamento por Serviços Ambientais

Uol – Mundo ultrapassa 50 milhões de casos confirmados de covid-19

UN Environment Programme – Surto de coronavírus é reflexo da degradação ambiental, afirma PNUMA

Veja – Dia do Meio Ambiente: pandemia reforçou necessidade de proteger a natureza

Ministério da Saúde – Transferências financeiras do Ministério da Saúde para os estados e municípios, no âmbito do combate à COVID-19

Açaí, cacau e castanha são mais rentáveis que pecuária e soja na Amazônia, diz Carlos Nobre

Manter vegetação nativa no cerrado gera economia de R$ 1,24 milhão por safra, diz estudo

O rio morreu

O rio morreu

Quando a natureza fala, os indígenas escutam. No fim de outubro de 2015, todos os anciões das aldeias Krenak ficaram doentes ao mesmo tempo. O acontecimento veio acompanhado da mudez de grilos e sapos, percebida pelos ouvidos mais atentos. “Sabíamos que aquele silêncio significava algo”, contou tempos depois a liderança e escritora Shirley Djukurnã krenak. Eram sinais claros, como relâmpagos antes da tempestade. Por volta de 15h30 de 5 de novembro daquele ano, o rompimento da barragem da Vale, em Mariana, originou uma onda de resíduos do tamanho do Pão de Açúcar, que matou 19 pessoas e afetou a vida de 500 mil cidadãos que viviam às margens do Rio Doce. O desastre teve um significado a mais para os Krenak. Este povo acredita que o crime ambiental fez o espírito daquelas águas ir para o alto da montanha. Para os Krenak, desde então, o Watu, o rio sagrado, está morto.

Um rio espiritualmente morto é uma ideia que não faz sentido para o pensamento ocidental. Em uma reunião com representantes de uma mineradora, Dejanira Krenak, liderança e matriarca do povo Krenak, perguntou: “De que forma você traz um morto à vida?”. Foi uma boa maneira de traduzir o dilema para quem não o compreendia. Por quatro dias, um tsunami de lama percorreu os 400 quilômetros entre os municípios de Mariana e Resplendor, onde vivem os Krenak. À medida que avançava, a onda diluía na água rejeitos que impediriam que a luz chegasse ao fundo do rio por 6 meses e causariam a morte de quase 30 mil peixes. Mas os impactos não pararam por ali. Para se ter uma ideia, só no primeiro ano após o rompimento, todas as 26 espécies de peixe sumiram do Rio Doce.

Assim como a pandemia impôs um novo normal a grande parte do planeta em 2020, o desastre de Mariana mudou a vida dos Krenak há cinco anos. Cerca de 140 famílias foram forçadas a se readaptar para sobreviver. Pais que aprenderam a nadar no Rio Doce, uma tradição de várias gerações, se viram forçados a ensinar seus filhos a mergulhar em caixas d’água sem nenhuma correnteza. Hoje, cada Krenak tem direito a 5 litros de água mineral por dia para beber. Prioridade entre as ações mitigatórias, o novo sistema de abastecimento ainda não está pronto. Diante de um quadro tão chocante, muitos morreram de depressão.

Até setembro de 2020, as empresas responsáveis pela barragem haviam pago mais de R$ 250 milhões em ações mitigatórias e compensatórias aos Krenak, aos Guarani e aos Tupiniquim, os 3 povos atingidos pelo desastre. O valor é pequeno diante do que foi perdido. “Não tem casa, não tem dinheiro ou qualquer coisa que pague o que fizeram com o rio”, afirmou em 2017 uma liderança Krenak sobre a situação. Dinheiro algum é capaz de devolver um espírito a um rio e os séculos de relação com o território não se contabilizam em cifras.

A história dos Krenak em Minas é antiga e bonita. Há registros do século XVIII da presença do povo na região. No passado, chegaram a ocupar uma extensão de mais de 800 quilômetros. Eles estão em Resplendor desde, pelo menos, 1910 – quando um espaço de 4 mil hectares na margem esquerda do Rio Doce foi reservado para eles. A demarcação definitiva só veio na década de 1980 e hoje a Terra Indígena conta com 7 aldeias que abrigam 540 pessoas. Antes do desastre de Mariana, os Krenak já sofriam com problemas como a desertificação do solo por conta da exploração excessiva de empresas da região. Com o rompimento da barragem, as dificuldades só aumentaram, mas não foram suficientes para enfraquecer o vínculo que existe entre o povo e a terra. Há mais de 15 anos, os Krenak pedem a incorporação de parte do Parque Estadual Sete Salões ao território. Mesmo com o crime de 2015, eles mantêm aceso o desejo de voltar às cavernas sagradas que existem neste local.

“Estamos muito tristes em ver a impunidade que reina hoje”, afirmou Geovani Krenak, liderança, em 2018 sobre o caso de Mariana. Dois anos depois, o cenário não mudou muito. Até hoje segue sem conclusão o processo no qual 4 empresas e 22 executivos foram denunciados como responsáveis pelo desastre. A denúncia foi feita pelo Ministério Público Federal em 2016.

Desde julho, tramita em Manchester, na Inglaterra, um novo processo com pedidos de indenizações a uma das mineradoras envolvidas no desastre. Em entrevista ao Estado de Minas, os advogados dos atingidos relataram que a ação é fruto direto da lentidão do sistema judiciário brasileiro em avaliar o caso de Mariana.

A demora em se fazer justiça é denunciada também em protestos realizados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Para marcar a data de 5 anos de injustiça na bacia do rio Doce, atingidos por barragens de Minas Gerais e do Espírito Santo organizaram atos que denunciaram a falta de reparação para a população afetada. O objetivo principal foi chamar a atenção da Justiça para as pessoas que perderam suas casas, os empregos, e sofrem com desabastecimento de água limpa, problemas de saúde e aumento da violência por conta do maior crime ambiental brasileiro.

O estrago foi feito em curto espaço de tempo. Foram quinze dias para a lama tóxica se mover da barragem de Fundão, em Minas Gerais, à foz do rio Doce, no Espírito Santo. Já a cura vai se dar a longo prazo: estima-se que deve levar mais de 20 anos para os rios e nascentes da região afetada pelo rompimento da barragem se recuperarem. É uma previsão desanimadora para muitos, mas que não deve assustar os Krenak, acostumados a grandes desafios ao longo de sua trajetória. Removidos de suas terras pelo Estado Brasileiro em 1957, eles voltaram a Resplendor dois anos depois, após uma caminhada que durou três meses. Pouco mais de quinze anos depois, a Funai determinou uma nova remoção em 1972, revertida por meio de uma nova caminhada, em 1980, que demorou 95 dias. Desta vez, o caminho pode ser mais longo e a caminhada, mais demorada. Mas o objetivo dos Krenak segue o mesmo: viver em harmonia com a natureza no lugar que consideram sagrado.

Leia mais:

BBC – Após dois anos, impacto ambiental do desastre em Mariana ainda não é totalmente conhecido (05/11/2020)

Lama faz índios Krenaks depender de água mineral 04/11/2020

Dom Total -‘De que forma você traz um morto à vida?’, diz indígena krenak sobre Rio Doce (30/10/2019)

Elástica – “Envenenam a Terra por não acreditar que ela é um organismo vital” (20/07/2020)

Época – ‘Lutamos contra a mineração há 200 anos’, diz indígena que vive às margens do Rio Doce’ (15/08/2019)

Bom Dia Brasil – Rio Doce, da nascente à foz (29/09/2017)

G1 – Após a lama, tribo Krenak deixou de fazer rituais e festas no Rio Doce (28/10/2016)

Istoé – Três anos após desastre de Mariana, indígenas Krenak pedem justiça (05/11/2018)

Fiocruz – Povo indígena Krenak segue lutando por reconhecimento e demarcação total de seu território tradicional (04/08/2018)

Ramboll – Relatório sobre proteção e recuperação da qualidade de vida dos povos indígenas (Setembro de 2020)

O Globo – Desastre ambiental em Mariana afeta cultura dos índios krenaks (31/10/2017)

Uma Gota no Oceano – Mariana: dois anos como um dia (07/11/2017)

Basta ouvir o vento

Basta ouvir o vento

O ano de 2020 não cansa de se superar. Agora são tantos ciclones e furacões nascendo no Atlântico que a lista de nomes previstos no início do ano pelos cientistas acabou. Os meteorologistas passaram a identificá-los com o alfabeto grego. Por isso, o mais recente tem o nome Zeta. A tempestade que está assolando a costa da Luisiana (EUA) é a de número 27. Mas o que um furacão nos Estados Unidos teria a ver com a gente, aqui no Brasil? 

Outro nome esquisito: oscilação multidecadal do Atlântico. Significa que a superfície do mar do Atlântico Norte está esquentando. E esse fenômeno é responsável tanto pela maior quantidade de furacões nos Estados Unidos quanto pela maior seca dos últimos sessenta anos no pantanal brasileiro. 

É como se fosse um El Niño no Atlântico. Mas, enquanto o El Niño ocorre em períodos que variam de 2 a 7 anos no Pacífico, as oscilações do Atlântico acontecem a cada três ou quatro décadas. Cientistas da NASA (Agência Nacional da Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos) estão acompanhando de perto. O chefe do laboratório de biofísica da agência, Douglas Morton, explicou ao jornalista André Trigueiro: “Estamos no período mais quente no mar Atlântico. E pode durar mais uma década, mais duas décadas ou ir mais longe ainda, porque as temperaturas na superfície do mar estão crescendo pelo aquecimento global”. Como consequência, o Pantanal e o sul da Amazônia ficam mais secos. 

“No sul da Amazônia, a floresta está transpirando menos água”, disse o cientista Carlos Nobre. “Durante os meses secos – principalmente julho, agosto e setembro – a temperatura no sul da Amazônia chega a ser três graus mais quente do que era nos anos 80. Então o ar que chega no Pantanal, vindo da Amazônia, chega mais quente.” 

É dessa parte mais baixa da floresta que saem dois irmãos: o rio Xingu e o Tapajós. Eles correm lado a lado, do Mato Grosso até o coração do Pará, onde suas águas se unem ao rio Amazonas. E foi às margens desses rios que ouvimos lições tão importantes nos últimos dez anos. 

À beira do Xingu, o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro nos alertou lá atrás, em 2011: 

“As obras que estão se fazendo aqui, as fazendas de gado que estão se abrindo na região de São Félix do Xingu, as fazendas de soja que estão envenenando o rio com agrotóxicos lá na cabeceira do Mato Grosso, isso é o passado. Os índios que estão aqui, os ribeirinhos que estão aqui, são o futuro. Eles são a garantia de que o país tenha um futuro. E um futuro diferente do resto do mundo. Nós, brasileiros, gostamos de nos sentir diferentes. E se a gente quer mesmo ser diferente, vamos fazer diferente. Vamos fazer diferente do que os americanos fizeram com o Mississipi, vamos fazer diferente do que os europeus fizeram com os rios e com as florestas de lá. Vamos tentar ser originais. Então a primeira coisa a fazer é tratar, de modo diferente do que eles trataram, da nossa natureza.” 

E, à beira do Tapajós, o cacique Juarez Munduruku nos banhou com sua sabedoria ancestral em pleno 2020: 

“Esse rio aqui se torna meu corpo. Por que eu quero dizer que o rio é meu corpo? Porque ele é o corpo de todo mundo. Por exemplo, esses igarapés, são as nossas veias. Os madeireiros estão destruindo as cabeceiras dos igarapés. Então o que está acontecendo? O rio está morrendo aos poucos, também. Os igarapés são os primeiros que secam. E eles que fortalecem o Tapajós. Daqui a uns tempos, daqui a uns cem anos, nós vamos brigar pela água.” 

Como se não fosse suficiente manter um modelo de vida que agrava a crise climática, a ilicitude humana eleva ainda mais a régua. Este ano, foram mais de 194 mil focos de incêndio no Brasil, dos quais 20.926 queimaram o Pantanal. E, de acordo com o Ibama, mais de 90% dos incêndios na região foram ilegais. “Quem planta fogo colhe cinzas”, diz um brigadista à repórter Cláudia Gaigher, da Rede Globo. Escolhas individuais se desdobram em consequências vividas pelo todo. Até quando? 

Aqueles que insistem em criar divisões têm dificuldade em ver que tudo está conectado. Os povos tradicionais aprenderam com a natureza que o planeta é um só, e que nós pertencemos à Mãe Terra, não o contrário. Para tratar da verdadeira riqueza da melhor forma é preciso parar e ouvir os que entenderam, lá atrás, que o cuidado dos rios é tão importante quanto o das artérias. 

A mensagem está aí. Para recebê-la basta abrir os olhos, os ouvidos e o coração. 

#MudançasClimáticas #MeioAmbiente #PovosTradicionais #Amazônia #Tapajós #Desmatamento

Leia mais 

Eduardo Viveiros de Castro: Expedição Gota d’Água Xingu 

Amazônia Sociedade Anônima (documentário) 

Jornal Nacional: Pantanal, maior planície alagada do planeta, está sendo destruído como nunca se viu antes

Por falta de recursos humanos e materiais, fauna no Pantanal é destruída pelo fogo 

WWF – O Bioma Pantanal 

Clima Info: O que o clima seco no Pantanal e no sul da Amazônia tem a ver com a crise climática?   

G1: Com 2.825 pontos de incêndio, Pantanal tem pior outubro da história 

Dois gatilhos e um ponto de virada

Dois gatilhos e um ponto de virada

Como um vírus. Quando David Attenborough nasceu, em 1937, a população mundial era de 2,3 bilhões; a concentração de CO₂ na atmosfera, de 280 partes por milhão (ppm), e 66% da vida selvagem da Terra estavam preservados. Em 1954, quando o famoso naturalista inglês começou seu périplo pelo planeta, esses números tinham chegado a 2,7 bilhões, 310 ppm e 64%; e em 2020, a 7,8 bilhões, 415 ppm e 35%. A destruição da natureza, causada por uma única espécie, vem crescendo em velocidade exponencial, talvez só comparável à da propagação da Covid-19 pelo mundo. A população triplicou desde o nascimento de Attenborough e a quantidade de pessoas infectadas pelo novo coronavírus cresceu mais de 3.000 vezes entre 31 de janeiro e 31 de setembro de 2020, de acordo com a Universidade John Hopkins. Por outro lado, se a situação da Terra inspira cuidados, a descoberta da cura pode estar próxima.

Passados 83 anos, a temperatura média global subiu 1°C, 70% das aves do planeta são domesticadas e 50% de suas terras férteis estão ocupadas pela agricultura. O mundo nunca experimentou mudanças tão radicais em tão pouco tempo. São 4 bilhões de anos de história de vida na Terra e houve cinco grandes extinções em massa – a última, reduziu a população de dinossauros em 75% –, até a chegada do Holoceno. Nesta era geológica, o clima no planeta e suas atividades vulcânicas se estabilizaram. Em 10 mil anos, houve somente aquele 1°C de aumento da temperatura. Attenborough considera o Holoceno o nosso verdadeiro Jardim do Éden. Graças a ele, a espécie humana pôde se dedicar à agricultura em larga escala, pois o tempo e as estações se tornaram mais regulares. Logo, se tornou uma das mais numerosas e a mais daninha do planeta. Agora rumamos para a sexta grande extinção – e, desta vez, além de causá-la, podemos estar entre as vítimas.

Ao longo de quase 70 anos dedicados ao estudo da vida selvagem, o naturalista conta, no documentário “David Attenborough e o nosso planeta” (2020), que observou dois gatilhos que nos fizeram despertar para a necessidade da preservação do meio ambiente. O primeiro foi quando os astronautas da missão Apollo 8 filmaram a Terra a partir da órbita lunar pela primeira vez, em 1968: “Naquela imagem, havia toda a Humanidade”, diz ele. O ponto azul na imensidão escura fez com que o homem despertasse para o fato de que o planeta era sua casa, que era finita e que cuidar dele era essencial, pois não havia para onde correr. Não por acaso, o primeiro grande encontro internacional sobre meio ambiente aconteceu quatro anos depois, em Estocolmo. Não chegou a ser um salto gigante para a Humanidade, mas foi um primeiro pequeno passo.

Dez anos depois da Apollo 8, lá estava Attenborough com um gravador no Havaí, para registrar o som das jubartes. À época, as baleias eram alvo de caça indiscriminada e corriam risco de extinção. Aquele canto calou fundo no coração de gente do mundo inteiro e ali o naturalista identificou o segundo gatilho: “Ninguém queria que os animais fossem extintos. As pessoas passaram a se importar com a natureza quando se tornaram cientes dela”, diz ele. A comoção global foi tamanha que até Roberto Carlos, o cantor mais querido do Brasil no período, dedicou a elas uma de suas canções – “Seus netos vão te perguntar em poucos anos / Pelas baleias que cruzavam oceanos / Que eles viram em velhos livros / Ou nos filmes dos arquivos / Dos programas vespertinos de televisão”. Preservar era pop e a palavra ecologia entrou de vez para o vocabulário cotidiano. O maior mamífero do mundo foi salvo, mas momentaneamente, já que continuamos maltratando seu lar.

“David Attenborough e o nosso planeta” foi gravado antes de a Covid-19 se espalhar mundo afora. Fosse hoje, provavelmente o naturalista teria identificado a pandemia como o terceiro gatilho. A emergência de saúde é, muito provavelmente, consequência direta da má relação entre homem e floresta. É bom dizer que a situação já era prevista por especialistas, como o astrônomo inglês Martin Rees, em 2014: “Viagens aéreas podem espalhar pandemias ao redor do mundo em dias”. Um levantamento feito pelo portal Getty Images em 26 países no ano passado mostrou que 92% dos entrevistados já estavam preocupados com a forma como tratamos a casa que dividimos no cosmo. Mais do que um gatilho, o novo coronavírus pode ser nosso ponto de virada definitivo. “Como a pandemia nos fez lembrar, somos dependentes uns dos outros e dependentes da nossa mãe-terra”, disse o Papa Francisco em uma live na internet na última terça (13). Sobre a Terra, o pontífice foi direto ao ponto: “Não podemos continuar a espremê-la como a uma laranja”.

Nós derrubamos 15 bilhões de árvores por ano. A continuar neste ritmo, a Amazônia terá se tornado uma savana seca já na próxima década, a produção global de alimentos vai entrar em crise por volta de 2080 e o planeta estará 4°C graus mais quente até o fim do século. Quem viver, não verá. Mais de 1/3 dos medicamentos que usamos hoje em dia têm seus princípios ativos derivados da natureza – de plantas, microrganismos e animais. Entre 60% e 80% dos antibióticos e remédios contra o câncer também. “Se olharmos para a história do desenvolvimento da medicina moderna, ela foi quase inteiramente baseada no estudo de plantas medicinais e microrganismos, especialmente para a fabricação de agentes anti-infecciosos”, explica João Calixto, diretor do Centro de Inovação e Ensaios Pré-clínicos (CIEnP). Apenas nos últimos quatro anos, o número de plantas e fungos ameaçados de extinção dobrou, chegando a 40%. A cura para a Covid-19 e outras moléstias fatais pode desaparecer antes de ser descoberta.

Apesar de ser testemunha ocular privilegiada (sic) de tamanha devastação, David Attenborough mantém a esperança de que sairemos dessa. E um estudo publicado na última quarta-feira (14) na revista “Nature” – também depois de seu documentário ser filmado, portanto – certamente lhe deu um novo alento, pois a missão pode não ser tão impossível assim. O estudo foi conduzido por um grupo de 27 pesquisadores de 12 países (liderado pelo brasileiro Bernardo Strassburg, professor da PUC-Rio e diretor-executivo do Instituto Internacional para Sustentabilidade) e mapeou ecossistemas do mundo inteiro. Os cientistas calculam que a regeneração de 30% das áreas degradadas do globo poderia evitar mais de 70% das extinções de animais terrestres e absorver quase metade do CO₂ – ou 466 bilhões de toneladas – acumulado na atmosfera terrestre desde a Revolução Industrial. Para começar, vamos regenerar mentalidades.

 

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Bastou dar corda. O presidente nunca escondeu sua visão anacrônica em relação aos povos tradicionais e suas palavras têm servido de senha para quem cobiçava suas terras. Em setembro do ano passado, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) já previa o estouro da boiada: até aquele mês, 160 invasões a terras indígenas (TIs) tinham sido registradas – 49 a mais do que em todo o ano de 2018. Mas o relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil – Dados 2019”, que acaba de ser lançado pela instituição, surpreendeu até os mais pessimistas: foram 256 casos, 135% a mais que no ano anterior. Para se ter uma ideia, o desmatamento na Amazônia cresceu 85% no mesmo período, um número já assombroso. Além disso, houve 113 assassinatos, como o de Paulo Paulino Guajajara, que fazia parte do grupo de sentinelas voluntários Guardiões da Floresta. Ao que parece, a ideia era passar por cima, já que até uma espécie de “caveirão”, um trator blindado, chegou a ser usado contra indígenas no Mato Grosso do Sul.

Com os indígenas recolhidos em suas aldeias por causa do novo coronavírus, é de se esperar que os números de 2020 sejam ainda mais impressionantes – até porque há outros indícios. Já perdemos 26,5% do Pantanal para o fogo, os incêndios na Amazônia devem superar os do ano passado e no último sábado, o ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), disse que o governo ainda não teve tempo para cuidar do meio ambiente. “Nós sabemos exatamente o que fazer”, afirmou. Será que sabem mesmo? De concreto, até agora o governo cortou 4% do orçamento do Ibama para o ano que vem e gastou menos de 40% da verba de 2020 destinada à fiscalização e ao combate a desmatamento e aos incêndios. O órgão tinha 1.311 fiscais em 2010 e hoje são 694, praticamente a metade. Quando em campanha, o presidente prometeu que não demarcaria “nem mais um centímetro” de TIs. E vem cumprindo a promessa: desde que assumiu, nenhum processo de demarcação foi concluído. Inclusive 27 deles, que se encontravam em estágio avançado, estão sob risco.

O governo se escora no Parecer 001/2017, emitido pela Advocacia-Geral da União (AGU) durante o mandato do ex-presidente Michel Temer por pressão da bancada ruralista, para atrasar as ações. A medida trouxe novamente à baila a tese do “marco temporal”. Segundo esta, só teriam direito às suas terras os povos que as estivessem ocupando até o dia da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), mesmo se tivessem sido arrancados delas à força. Quando foram largados à própria sorte pelo governo durante a pandemia, os indígenas recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu que sua reivindicação era justa. Agora eles novamente contam com a corte para que a Justiça seja feita novamente e que esta ameaça seja definitivamente afastada.

No fim do mês, o STF julgará uma ação envolvendo o povo Xokleng, em Santa Catarina. É um caso exemplar. Os Xokleng foram contactados em 1914. Eram cerca de 400 indivíduos, que viviam da caça e da coleta; cerca de 20 anos depois, tinham restado pouco mais de 100. Acuados pelos colonos que chegaram à região e obrigados a se tornarem agricultores, ainda viram boa parte das terras que lhes restaram serem inundadas pela construção de uma barragem, em 1992. O caso da demarcação de suas terras se arrasta desde 2003, mas agora foi reconhecido como de “repercussão geral”: sua decisão será válida para todos. O artigo 231 da Constituição assegura que o direito do indígena à terra é “originário”, ou seja, anterior à criação do Estado brasileiro. Logo, o “marco temporal”, que não é previsto em nenhuma linha da carta a qual devemos obediência, é inconstitucional.

Ela também previa que todas as TIs deveriam estar demarcadas até 25 anos depois de sua promulgação. O país está em dívida com os indígenas. O STF tem o privilégio de poder saldá-la. “Os índios reivindicam áreas que ainda têm significado para essa organização social específica. As demandas de marcação são concretas, específicas, delimitadas e bem localizadas. Ninguém está reivindicando a praia de Copabacana”, explica Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA). Até porque não sobrou nenhum Tamoio, povo que habitava originalmente a região, para reclamá-la. Além de a demarcação de TIs ser um assunto de interesse de todo brasileiro – pois são bens da União e as áreas de floresta mais preservadas da Amazônia – lembre-se: agora estão querendo mexer, de forma arbitrária, nos direitos dos indígenas. Os próximos podem ser os seus.

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