Terras indígenas não comprometem áreas disponíveis e produção agropecuária

Terras indígenas não comprometem áreas disponíveis e produção agropecuária

Quem ataca os direitos indígenas também omite que o Brasil é campeão em concentração fundiária, com cerca de 1/5 do país em posse de 1% das propriedades, ou 51,2 mil fazendeiros, de acordo com o IBGE*

Eloy Terena é assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Sonia Guajajara é coordenadora-executiva da Apib.

Foto: Leonardo Milano/MNI

Nesta quinta-feira (26), o Supremo Tribunal Federal (STF) pode decidir o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs), no que pode ser o mais importante julgamento da História do Brasil sobre o assunto.

A corte vai apreciar o ‘marco temporal’, interpretação defendida por alguns políticos ruralistas e que restringe os direitos indígenas. De acordo com a medida, os povos indígenas só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. De forma alternativa, precisariam estar em disputa judicial ou conflito comprovado pela área na mesma data. A tese é perversa já que desconsidera expulsões e outras violências sofridas por essas populações. Além disso, ignora o fato de que eram tuteladas pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente até 1988.

Os defensores do ‘marco temporal’ dizem que há “muita terra para pouco índio”, que as demarcações comprometem a produção agropecuária e que, para atender a demanda por territórios, no limite, teríamos de devolver até Copacabana aos povos originários, porque todo o país um dia foi deles. Nada disso é verdade.

Hoje, 13,8% do território brasileiro é ocupado por TIs, considerando os procedimentos demarcatórios já abertos e dados do Diário Oficial da União (DOU). Parece muito, mas a média mundial é maior: 15%, segundo estudo publicado por 20 pesquisadores de várias nacionalidades, na revista Nature Sustainability, em 2018.

As áreas privadas somam três vezes mais, ou 41% do Brasil, segundo o IBGE. Cerca de 22% do território nacional é ocupado com pastagem —no entanto, metade disso com algum grau de degradação— e 8% com agricultura, conforme o projeto MapBiomas. Ou seja, parte das terras pode ser priorizada para recuperação, reduzindo ainda mais a demanda por novas ocupações.

Quem ataca os direitos indígenas também omite que somos campeões de concentração fundiária. Cerca de um quinto do país está em posse de 1% das propriedades ou 51,2 mil fazendeiros, ainda de acordo com o IBGE. Na verdade, o número de superlatifundiários é menor, à medida que muitas áreas estão em nome de parentes ou prepostos.

As disparidades e contradições não param por aí. Mais de 98% da extensão das TIs fica na Amazônia Legal, muitas vezes em locais remotos e sem aptidão para a agropecuária extensiva. E apenas 0,6% do resto do Brasil é ocupado por indígenas. É fora da região amazônica onde está a principal demanda por demarcações.

Enquanto cerca de 62% dos 517,3 mil moradores de TIs estavam na Amazônia em 2010 (último dado disponível do IBGE), o restante precisa se espremer em áreas minúsculas fora de lá. Por exemplo, há 225 mil hectares em reconhecimento para os Guarani em Mato Grosso do Sul. A densidade populacional dessas áreas é de 27 habitantes/km², quatro vezes maior que a do estado (6 habitantes/km²).

Onde há mais conflitos com TIs, o percentual do território ocupado por elas também é ínfimo, ainda considerando processos já abertos. No Rio Grande do Sul, é de 0,4%, enquanto as propriedades rurais ocupam 74%; e assim por diante: BA (0,5% e 49%, respectivamente); SC (0,8% e 67%); MS (2,4% e 86%). A situação não é diferente em GO (0,1% e 77%), MG (0,2% e 65%) e SP (0,3% e 66%). Portanto, entre os nove principais Estados do agronegócio, em sete as TIs não passam de 0,5% do território (no MS o índice é maior, mas ainda baixíssimo).

Em Mato Grosso, maior produtor agropecuário nacional, o percentual de território indígena atinge 16%, mas a demanda por demarcações é igualmente pequena. Por outro lado, como no resto do Brasil, os agricultores vêm ampliando a produtividade, ano após ano, independentemente dos conflitos fundiários.

Não é necessário ocupar ou desmatar mais, como repetem líderes como Blairo Maggi e Kátia Abreu. Mesmo se não fosse o caso, ainda restariam, pelo menos, 510 mil km² de terras não destinadas no país —duas vezes o território do estado de São Paulo. Não há “muita terra para pouco índio”! E ainda temos muito espaço para produzir, conservar e garantir justiça!

A imensa maioria dos mais de 5 milhões de produtores rurais brasileiros nunca viu um indígena, não está em conflito fundiário e nem interessada em mais desmatamento ou em ocupar mais terra. É possível seguirmos como potência na produção de alimentos e atender a demanda por demarcações, respeitando os direitos indígenas previstos na Constituição.

Artigo publicado no El País em 25/08/2021

 

 

 

Marco temporal fere direitos indígenas e prejudica o Brasil

Marco temporal fere direitos indígenas e prejudica o Brasil

Posse da terra define a própria existência dos povos originários; cabe ao STF preservar Constituição*

Por
Deborah Duprat
Subprocuradora-geral da República aposentada
Juliana de Paula Batista
Advogada e assessora jurídica do Instituto Socioambiental (ISA)
Samara Pataxó
Advogada indígena, é assessora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)

Foto: Diego Baravelli/Greenpeace

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro nunca fez questão de preservar aparências. Eleito disparando preconceitos, tem como alvo principal os povos originários: “Se eu assumir, índio não terá mais um centímetro de terra”, disse, ainda candidato.

Acontece que vivemos numa democracia, e mesmo Jair Bolsonaro deve obediência à Constituição. Desde 5 de outubro de 1988, quando a Carta que ficou conhecida como Cidadã foi promulgada, os indígenas têm os mesmos direitos e deveres que qualquer brasileiro. Além disso, ela lhes garantiu, no papel, a posse de suas terras e que fossem respeitados seus costumes e tradições. Essa conquista não caiu do céu, é fruto de muita luta. E a paz definitiva ainda não chegou.

Passados mais de 30 anos, não há criança indígena que cresça sem se preocupar com o futuro de sua comunidade. As mulheres são afetadas pela violência de gênero por parte de invasores, pela vulnerabilidade alimentar —que impacta seus filhos— e por empreendimentos que comprometem a qualidade da água e do solo. Todos esses problemas são estimulados e potencializados pela insegurança territorial.

Um caso importantíssimo para os povos indígenas começará a ser analisado no Supremo Tribunal Federal (STF) em 25 de agosto. O julgamento do recurso extraordinário 1.017.365, de repercussão geral, pode lhes garantir a tão sonhada paz, afastando de vez um fantasma que há anos os assombra: o marco temporal.
Essa malfadada tese pretende afirmar que só teriam direito às suas terras ancestrais os povos que as estivessem ocupando no dia da promulgação da atual Constituição, mesmo que dela tenham sido afastados pelo uso da violência. Caso prevaleça, poderá inviabilizar a demarcação de novos territórios.

O “marco temporal”, porém, não resiste minimamente a alguns questionamentos. Para começar, ele sequer foi previsto na Carta Magna —que, em seu artigo 3º, busca justamente superar um passado de dominação e privilégios, e fazer nossa sociedade avançar rumo a um futuro mais justo e igualitário.

É um absurdo supor que direitos adquiridos deixem de existir, ainda mais a partir de uma data retroativa. O que aconteceria com os indígenas que não estivessem na posse de suas terras tradicionais em 5 de outubro de 1988? Seriam condenados ao degredo? Não poderiam mais exercer seus direitos identitários?

Em 28 de novembro de 2007, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso “Saramaka versus Suriname”, reconheceu que a América foi marcada pela expropriação dos territórios dos povos originários, e que estes foram reconstituindo sua vida coletiva nesse processo de diáspora. Por isso, o momento em que uma terra passa a ser ocupada de modo tradicional é absolutamente irrelevante para o fim de se afirmar direitos territoriais. O próprio STF reconhece que “não há índio sem terra”.

Quando a Constituição determina que as terras tradicionalmente indígenas assim se definem a partir dos “usos, costumes e tradições” de cada povo, certamente também colocou sob essa perspectiva as noções de ocupação e de abandono. Os povos indígenas não querem recuperar Copacabana ou Ipanema, porque elas já não são áreas tradicionais. Muitas outras, no entanto, o são e estão agonizando à falta de determinação do Executivo federal. A luta por direitos territoriais indígenas já supera 500 anos.
Eles não se perderão, pois definem a sua própria existência.

Artigo publicado na Folha de São Paulo em 23/08/2021

 

A palavra é regeneração

A palavra é regeneração

“Desesperar, jamais”, diz a canção de Ivan Lins. Mas, diante dos últimos acontecimentos, até os mais fortes podem desanimar: “A Amazônia é como um ser gigantesco, de uma divindade enorme. Imaginava que aquela grandeza toda fosse capaz de achar uma saída para o dano que estamos fazendo nela. Quando eu vi que não, isso me baqueou”, disse Luciana Gatti, pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ela liderou o estudo que descobriu que a maior floresta tropical do mundo já emite mais CO₂ do que absorve. Para a cientista, a situação é ainda mais grave do que pintou a prévia do último relatório do IPCC da ONU. Pode ser pior? E é.

Segundo uma recém-divulgada análise do projeto MapBiomas, o Brasil perdeu 15,7% da superfície de água nos últimos 30 anos. Assim o sertão não vira mar. Ao todo, 3.100 km² de área foram para o ralo, o que dá aproximadamente mais de uma vez e meia de toda água doce do Nordeste. O estado mais atingido é o Mato Grosso do Sul, que viu sumir 57% de seus recursos hídricos. No incêndio do ano passado, quase 1/4 do Pantanal virou cinzas. Segundo o boletim do MapBiomas, ele também já perdeu 74% da água desde 1985. O famoso ecossistema mato-grossense corre o risco de perder o título de maior planície alagada do planeta.

As principais causas desse desastre são velhas conhecidas: “Mudanças no uso e cobertura da terra, construção de barragens e de hidrelétricas, poluição e uso excessivo dos recursos hídricos para a produção de bens e serviços alteraram a qualidade e disponibilidade da água em todos os biomas brasileiros”, afirma comunicado oficial do MapBiomas. “Se não implantarmos a gestão e uso sustentável dos recursos hídricos considerando as diferentes características regionais e os efeitos interconectados com o uso da terra e as mudanças climáticas, será impossível alcançar as metas de desenvolvimento sustentável”, alerta, ainda, o texto. Só que aí entra em cena outro antigo problema brasileiro: a falta de continuidade. Quando muda o governo, mudam as políticas de desenvolvimento do país.

Deixemos as mazelas mais conhecidas, como o desmatamento desenfreado da Amazônia, que vem causando estiagens nunca vistas justamente no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste do país, para falar de uma não tão óbvia assim: a obsolescência programada de nossa infraestrutura. Por aqui, é mais fácil construir uma estrada nova do que recapear a que está esburacada – dizem por aí que o fenômeno é mais um efeito colateral da corrupção, mas não digressionemos. Precisamos ter isso em mente num momento em que a sanha desenvolvimentista está sem controle. Um exemplo é se falar em construção de novas estradas de ferro, como a Ferrogrão, quando o país tem uma grande malha ferroviária à espera de reparos. Investir em recuperar essas vias não seria mais viável?

Já que o assunto é água, temos um exemplo mais palpável. O Brasil sempre tirou a onda de ter uma matriz energética de baixo carbono justamente por suas hidrelétricas. Porém, em vez de erguer novas barragens – que estão entre as maiores causas desse pesadelo hídrico –, restaurar e modernizar usinas antigas seria uma solução muito mais barata e ambientalmente correta. Daria para acrescentar uma Belo Monte de energia no país dando um trato nas que já estão aí – e o melhor é que, diferentemente da usina que está arruinando o Rio Xingu, elas funcionariam!

Hoje, o país tem 1.495 hidrelétricas que, juntas, geram 109 mil megawatts (MW). Muitas delas têm mais de meio século de funcionamento e, segundo um estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), bastaria modernizar 51 delas para adicionar mais 10 mil MW ao nosso sistema. Entre 2006 e 2016, os Estados Unidos aumentaram em 70% a produção de eletricidade por via hídrica apenas recauchutando equipamento antigo.

Aprendemos muito nestes anos, principalmente depois que passamos a ouvir com atenção o que tinham a dizer os povos tradicionais; além disso, os cientistas do IPCC asseguram que ainda há tempo para adiar o fim do mundo. Basta que as palavras regeneração e restauração se juntem à preservação para nos nortear. Logo, não tem cabimento entregar o jogo no primeiro tempo. Nada de correr da raia, nada de morrer na praia.

Saiba mais:

Pesquisadora sofreu com depressão ao constatar que Amazônia emite mais carbono do que absorve

‘Retrofit’ de hidrelétrica daria uma Belo Monte

Brasil perde 16% da superfície de água em 30 anos; Mato Grosso do Sul lidera

Brasil perdeu 15% da superfície de água em 30 anos; veja números

Brasil perdeu 15% das áreas de água doce em três décadas

Pantanal perde 74% da água desde 1985, e pesquisadores dizem que Brasil está secando

Incêndios no Pantanal alcançam ritmo da destruição recorde de 2020

Seca e geadas devem tirar ao menos R$ 60 bi do PIB deste ano, indica consultoria

Fogo avança sobre lavouras e pode pressionar preços

Chuvas que devastaram cidades mineiras em 2020 já são efeito das mudanças climáticas, diz estudo

Baixo volume de água reduz movimento na Hidrovia Tietê-Paraná

Escassez de água começa a afetar maior produtor de cobre

Nem um centímetro a mais para os indígenas e para a biodiversidade no Brasil de Bolsonaro

Relator da ONU pede que STF rejeite marco temporal e defenda indígenas

Energias renováveis ajudam no combate à desigualdade social no Brasil

 

Precisamos aprender a ouvir

Precisamos aprender a ouvir

Saber ouvir é questão de vida ou morte para quem mora na floresta; grandes predadores são furtivos, muitas vezes invisíveis aos seus olhos. “A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas”, escreveu o poeta alemão Goethe. Os povos originários brasileiros devoraram suas páginas e aprenderam a ler este idioma, que deveria ser universal.

Precisamos aprender a ouvir. É outra lição que poderíamos aprender com os indígenas, sobretudo na selva da internet, onde todos falam e ninguém escuta, e onde mentiras se camuflam de verdades.

Algumas autoridades parecem dar ouvidos apenas às vozes que dizem exatamente o que querem escutar. No último dia 12, por exemplo, o presidente vestiu cocar para falar em nome dos povos tradicionais, defendendo a abertura de seus territórios para mineração e geração de energia, em frente a uma pequena plateia. Aliás, não só em nome deles: “Os índios não querem ser isolados. Está aqui o exemplo claro. Tem muito indígena aqui que fala português igualzinho ao nosso, tem exatamente o mesmo sentimento nosso”. Nosso quem, cara-pálida? Belo Monte, que produz mais dor de cabeça que eletricidade, é a prova concreta que construir hidrelétrica na floresta é a maior roubada. Quem está disposto a bancar novos elefantes brancos? Dadas as denúncias de corrupção que cercam a obra, ela deve ter atendido aos interesses de alguém, mas certamente não aos da maioria.

Por outro lado, as reivindicações da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) – entidade que reúne associações presentes em todas as regiões do país e que teve sua representatividade jurídica reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ­– entram por um ouvido do Executivo e saem pelo outro. A maioria dos indígenas deixa claro que não quer hidrelétrica e mineradora matando seus rios – estes, sim, uma riqueza que não tem preço. Mas como o valor do ouro no mercado internacional disparou em desabalada carreira – aumentou 46% no primeiro semestre – o apetite das mineradoras cresceu em velocidade ainda maior.

Um estudo da Operação Amazônia Nativa (Opan), em parceria com o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), divulgado na semana passada, indica que os pedidos de autorização para o garimpo no Amazonas cresceram 342% em 2020 comparados à média dos 10 anos anteriores. São cerca de 3 mil requisições, que abrangem 120,8 mil km², o equivalente a 8% da área do maior estado da Região Norte. O Instituto Brasileiro de Mineração calcula que foram extraídas 48,5 toneladas de ouro no país no primeiro semestre, um aumento de 6% em relação ao mesmo período de 2020. Pode-se até argumentar que a atividade gera riqueza e empregos para o país; mas de boa parte desses benefícios não deixa nem o cheiro por aqui. De acordo com o Instituto Escolhas, 19 toneladas, o que equivale a 17% de nossa produção total, deixam o país de forma ilegal.

Além disso, a imensa maioria dos processos de lavra que chegam à Agência Nacional de Mineração (ANM), aproximadamente 90%, foi protocolada por cooperativas de garimpeiros, cuja atividade, teoricamente artesanal, é considerada de impacto ambiental baixo. Porém, muitas dessas associações têm usado a benevolência extrema de nossa legislação e os ouvidos de mercador do governo para tocar grandes empreendimentos. Essas requisições atingem 16 km² de terras indígenas, 110 km² de unidades de conservação de proteção integral e outros 138 km² de reservas extrativistas, áreas onde o garimpo é terminantemente proibido – como se a porteira estivesse prestes a ser aberta.

E, de fato, apesar de todas as cortinas de fumaça e alguns poucos interesses conflitantes, o Executivo tem na Câmara Federal, com a ascensão de Arthur Lira à sua presidência, uma aliada fiel naquilo que realmente lhe interessa. O deputado alagoano tem se mostrado muito mais competente que o ex-ministro do Meio Ambiente quando a tarefa é passar a boiada. Sob sua batuta, foram aprovados a última e desfigurada versão do Projeto de Lei 3.729/2004, um “liberou geral” do licenciamento ambiental, e o 2.633/2020, o “PL da Grilagem”, cujo apelido é autoexplicativo – espera-se que o Senado breque esses absurdos. Tudo à boca miúda e a toque de caixa. Enquanto Ricardo Salles era conhecido por se gabar de seus desfeitos, Lira age como siri na toca. Porém parece não haver nenhuma pressa para apreciar o PL 836/2021 que, segundo o Instituto Escolhas, seria a melhor solução para evitar o contrabando de ouro.

O próximo alvo de Lira é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Editado em 1989 e ratificado pelo Brasil em 2002, o texto é uma salvaguarda aos direitos dos povos tradicionais. É ele que lhes garante o benefício do consentimento prévio, livre e informado sobre ações que possam impactá-los. O objetivo do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021 é tirar o país do tratado. O nome do Brasil na praça está mais sujo que dinheiro velho. Em junho, fomos citados pela primeira vez pelo Escritório para a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger da Organização das Nações Unidas (ONU). A menção partiu de sua conselheira especial, a queniana Alice Wairimu Nderitu, na última sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Alice conhece muito bem o poder destrutivo da palavra: “Meu escritório é um ponto focal no sistema das Nações Unidas para o enfrentamento de discursos de ódio. Não há um único genocídio – o Holocausto, qualquer crime de guerra, crime contra a humanidade – que não tenha sido precedido de discursos de ódio”. E pensar que o país já foi referência no sentido contrário. “Durante alguns anos, o próprio Brasil conduziu os esforços para solucionar as falhas na implementação desse princípio na Líbia, na chamada iniciativa Responsabilidade de Proteger. É esse tipo de papel de liderança que eu encorajo as autoridades brasileiras a ocupar quando se trata de proteger a própria população”, lembrou a conselheira.

Uma mentira repetida mil vezes continua sendo uma mentira. O inciso XI do artigo 20 da Constituição afirma que as terras indígenas são bens da União – ou seja, pertencem a todos os brasileiros. O parágrafo primeiro do artigo 231 diz que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. A mineração e a produção de energia são estranhas à cultura dos povos originários. Nossas escolhas definem o nosso futuro. E o futuro não está mais tão distante: é amanhã. Ouvir é interpretar.

Saiba mais:

De cocar e sem máscara, Bolsonaro se aglomera com indígenas em frente ao Palácio do Planalto

Sem máscara e de cocar, Bolsonaro promove aglomeração com indígenas pró-governo

Pedidos de autorização para garimpo no Amazonas disparam 342% em 2020

Esquema milionário de contrabando de ouro da Amazônia despachava o metal ilegalmente para o exterior

Nem tudo que reluz é ouro

Em julho, devastação cai mais onde Exército não atua

Entenda os riscos do Projeto de Lei que pretende retirar o Brasil da Convenção 169

“Não há um único genocídio que não tenha sido precedido por discursos de ódio”

C169 – Sobre Povos Indígenas e Tribais

Diretriz Operacional sobre o Consentimento Livre, Prévio e Informado

Nota técnica conjunta ANPR/ANPT contrária à aprovação do Projeto de Decreto Legislativo nº 177/2021

Pero Vaz de Caminha, o ouro e as vozes silenciadas dos indígenas

 

 

Efeito dominó

Efeito dominó

Um personagem recorrente no cinema-catástrofe é o cético que, por ignorância ou má-fé, recusa-se a se render às evidências. A ele, geralmente o roteirista dedica um desfecho cruel e exemplar. Não é diferente na vida real. Durante o incêndio Dixie, que reduziu a cinzas o povoado histórico de Greenville, na Califórnia, moradores se recusaram a deixar suas casas, chegando a ameaçar bombeiros com armas de fogo. O mais grave, porém, é que desavisados – ou, simplesmente, irresponsáveis – desse tipo costumam arrastar inocentes atrás de si. O último relatório do IPCC da ONU mostra, inequivocamente, que o mundo se encontra à beira do abismo. Guiado por uma figura que parece ter saído de má ficção, o Brasil se encontra um passo à frente. E o pior, está arrastando nossos vizinhos para o precipício também: o desmatamento na Amazônia está afetando diretamente a Argentina.

O “ClimateChange 2021: The Physical Science Basis”, que pautará as discussões da próxima conferência do clima das Nações Unidas, a COP-26, a ser realizada em novembro em Glasgow, na Escócia, é categórico: “É um fato estabelecido que a influência humana aqueceu o sistema climático e que mudanças climáticas generalizadas e rápidas ocorreram”. Se já não dava para fingir que a gente não tinha nada a ver com isso, agora se fazer de desentendido é passar vergonha. “Não houve nem um único país, durante os debates sobre aprovação do relatório, que tenha levantado dúvidas sobre essa questão. É um consenso, passamos dessa etapa. Agora é o que fazer, como fazer, quem paga a conta”, explica Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC. O relatório foi compilado por 234 cientistas de 66 países, baseado em mais de 14 mil apontamentos.

As informações contidas no documento de 42 páginas são estarrecedoras – desculpem o mau jeito, mas não há palavra mais adequada. Os negacionistas mais delirantes já começam a recolher os cartazes de “O fim do mundo não está próximo”.

A temperatura média da Terra já subiu 1,1ºC desde 1850. E deve alcançar 1,5ºC acima do nível pré-industrial já na próxima década, uma antes do que era previsto. Inundações, secas, furacões e ondas de frio e de calor vão se tornar cada vez mais frequentes. Algumas consequências dessa catástrofe já são consideradas irreversíveis, como a subida do nível do oceano, que transformará cidades como Rio de Janeiro, Londres e Nova York em Atlântidas – o mar deve subir 2 metros até 2100 e mais 5 metros 50 anos depois. Outras mudanças chegarão bem mais cedo: para cada grau Celsius a mais, os temporais se tornarão 7% mais intensos e 30% mais frequentes; as ondas de calor, que já têm 2,8 vezes de chances a mais de ocorrerem e já são 1 °C mais fortes do que antes da Revolução Industrial, poderão acontecer 9,4 vezes mais e serão 5 °C mais quentes.

A política para o setor aqui só tende a piorar este cenário: “O negacionismo ambiental desse governo é muito parecido com o negacionismo na pandemia, que produziu quase 600 mil mortes. Esse negacionismo na saúde a gente está vendo o que gera. Frente ao meio ambiente, vemos escassez hídrica, aumento das emissões, produção de alimentos ficando mais cara”, diz Mauricio Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil.

O desastre causado pelo governo brasileiro mais cedo ou mais tarde vai se refletir em todo o planeta – com o desmatamento fora de controle, a Floresta Amazônica já emite mais CO₂ do que é capaz de absorver. Isso já está acontecendo num país vizinho, que está passando por uma crise hídrica sem precedentes. “Na Argentina, por exemplo, cerca de 70% da agricultura depende da água que vem dos rios voadores da Amazônia. A Argentina está sofrendo mais que o próprio Brasil, e a crise pode se mostrar mais severa lá antes mesmo do que aqui”, conta Philip M. Fearnside, doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus. E, se depender da sensatez de Bolsonaro, a grama do vizinho não será mesmo mais verdinha.

Recentemente, o presidente brasileiro preferiu não receber Alok Sharma, deputado conservador designado pelo governo britânico para presidir a COP-26. Apesar da descortesia, Sharma, que tem status de ministro de Estado, declarou-se encantado com técnicas desenvolvidas no país de agropecuária sustentável.

Outro dia também, Bolsonaro disse que grande parte dos indígenas “não sabe nem o que é dinheiro”. Na histórica carta que mandou para o presidente americano Franklin Pierce, em 1855, em resposta à oferta de compra das terras de seu povo, os Duwamish, o legendário Cacique Seattle questionava: “Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia é-nos estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água. Como podes então comprá-los de nós?”. Os indígenas conhecem o real valor das coisas. E não deixa de ser irônico que o governo e seus aliados ainda pareçam viver nos tempos das pinturas rupestres, enquanto eles se aventuram no mercado da arte digital das NFTs. Sabedoria é coisa que vem de tempos imemoriais e se adapta com o passar dos anos. Os povos indígenas do Brasil são os protagonistas de nossa História; outros, meros coadjuvantes que, como na ficção, servem de mote para lição de moral.

Saiba mais:

Planeta vai esquentar 1,5ºC uma década antes do previsto e terá eventos climáticos extremos, diz ONU

Com aquecimento global, Brasil produzirá menos alimento e terá desequilíbrio de CO₂ na Amazônia

Crise do clima cobra ‘fatura’ do mundo

Aquecimento global tira estabilidade de correntes do Oceano Atlântico, diz estudo

Crise climática já agrava secas, tempestades e temperaturas extremas, diz IPCC

Mudanças climáticas: cinco coisas que descobrimos com novo relatório do IPCC

As preocupantes conclusões sobre o clima no Brasil no relatório da ONU

COP26: Quais as grandes metas da ONU para limitar as mudanças climáticas?

Mudanças climáticas têm impactos irreversíveis, alerta IPCC

Mudanças recentes no clima causadas pelo homem não têm precedentes, aponta relatório da ONU

Limitar aquecimento a 1,5°C pode ser impossível

Mudanças do clima: as previsões do IPCC para a América do Sul

‘Concentração de CO₂ em 2019 foi a maior em 2 milhões de anos’, diz pesquisadora

Parte de efeitos da mudança climática pode ser irreversível, alerta IPCC

Aquecimento global pode chegar a 1,5 grau Celsius na próxima década, levando planeta a limiar da catástrofe, indica novo relatório climático

Moradores apontam armas para bombeiros por se negarem a sair de suas casas em meio a trágico incêndio na Califórnia

Incêndio na Califórnia já é o segundo maior da história no estado

Europa em chamas: quatro motivos por quê

Bolsonaro faz o exato oposto do que é necessário contra a mudança climática

Desmatamento na Amazônia tem segunda maior cifra da série, indica Inpe

Amazônia registra 2º ano com maior desmatamento desde 2015

Desmatamento está fora de controle sob Bolsonaro, dizem ambientalistas

Brasil tem 2º pior ano de desmate da Amazônia da história recente, aponta Inpe

Seca no rio Paraná trava exportações da Argentina

Seca no rio Paraguai pode comprometer reestruturação de porto para escoamento de grãos

Seca transforma Califórnia, com grandes consequências para a produção de alimentos

‘Mudança climática é tema de segurança nacional para Biden’

Depois de tirar foto com líder extremista, Bolsonaro não recebe presidente da COP-26

Sharma se impressiona com técnicas da Embrapa Cerrados e pede que sejam divulgadas ao mundo

Ruralistas apontam sintonia com Arthur Lira em pautas do agronegócio

Empresas e associações se manifestam por ações concretas após o relatório do IPCC

Bolsonaro sobre indígenas: “Grande parte não sabe nem o que é dinheiro”

Em um ano, a premiada rede Origens Brasil, da Amazônia, cresce 69% e movimenta mais de R$ 2,3 milhões em produtos da floresta 

Carta do Cacique Seattle

A primeira NFT de artistas indígenas

‘NFTribos’: indígenas lançam NFTs para levantar recursos às comunidades

Indígenas de todo o país lançam galeria de arte em NFT para levantar recursos

 

Translate »