Reza a cartilha do mundo ocidental que o trabalho dignifica o homem. Mas muitas vezes o que se vê é muito sacrifício, passando longe da dignidade – “no pain, no gain”, diria o ditado em inglês. Já os indígenas encaram a rotina de labuta numa lógica diferente em muitos aspectos. Ali, os cantos acompanham as andanças, os utensílios levam desenhos e cores vibrantes, as danças são parte da identidade – e da resistência, vide sua presença constante na mobilização com representantes de mais de 170 etnias em Brasília no mês passado. O que chamamos de arte, em diferentes esferas, faz parte do dia a dia, não só nas horas de lazer ou descanso. Ailton Krenak resumiu esse espírito numa reflexão que fez no programa “Roda Viva”, em abril. “A vida, por ser esse dom tão indescritível, ela não pode ser recebida de outra maneira se não com contentamento, alegria e uma resposta criativa para o sentido de uma dança cósmica. Se você fosse chamado para uma dança cósmica, você ficaria cabisbaixo?”.
Vista da instalação "Dabucuri no céu", de Daiara Tukano. A artista é um dos destaques da participação indígena na Bienal de São Paulo em 2021. Foto: Levi Fanan
Foto: Levi Fanan
Da série A guerra dos Kanaimés, de Jaider Esbell. Foto: Marcelo Camacho.
Foto: Marcelo Camacho.
Vista da série "A
guerra dos Kanaimés". Foto: Levi Fanan.
Série "Entidades", de Jaider Esbell. Foto: Levi Fanan
Série Mil Quase Mortos. de Emerson Uýra. Foto: Matheus Belém
Foto: Matheus Belém
Vista da entrada da mostra no MAM-SP. Foto: Karina Bacci
Maldita e desejada, obra de Jaider Esbell de 2012. Foto: Marcio_Lavor.
Imagem da série A Guerra dos Kanaimés, de Jaider Esbell. Foto Marcelo Camacho
Em 1986, quando escreveu sobre “Arte Índia”, Darcy Ribeiro marcou como diferencial a dimensão coletiva dessa produção. “A arte ali é mais comunal que individual, em cujo seio o artista nem sequer reivindica para suas obras a condição de criações únicas e pessoais.” Ribeiro também ponderou que, se o simples fato de escrever não faz de ninguém um escritor, a mera capacidade de criar mais ou menos bem qualquer artefato não faz de nenhum indígena, só por isso, um artista. “Faz é toda a comunidade participar da alegria da criatividade e do gozo da apreciação estética.”
Muita coisa mudou nesses 35 anos, é claro. Mas, apesar de tanta pressão em cima das tradições, há um tanto desse espírito que se mantém. Como quando Daiara Tukano diz ao jornal britânico “The Guardian” que a arte que faz pertence a seus ancestrais (“ancestrais que estão aqui comigo”). Ou quando Jaider Esbell, macuxi de Roraima, reflete: “Uma palavra para traduzir a arte indígena contemporânea? A coletividade. Mas ela precisa ainda da assinatura do artista para poder chegar no sistemão europeu, que trabalha ainda em cima da centralidade de uma só pessoa”.
Daiara e Jaider são representantes de um momento de visibilidade ímpar da arte indígena em museus e galerias do Brasil. Ambos concorrem em categorias do Prêmio Pipa (sendo que ele venceu a edição online em 2016) e são destaques da Bienal de Arte de São Paulo, com Sueli Maxakali, Uýra, Gustavo Caboco e mais quatro indígenas estrangeiros. Em programação paralela, o evento abriga no MAM-SP a coletiva Moquém-Surarî, com curadoria de Jaider. A alguns quilômetros dali, no Masp – museu que conta com uma curadora indígena, Sandra Benites –, a multiartista Zahy Guajajara apresenta trabalhos de videoarte. Isso se nos limitarmos aos exemplos em São Paulo, há muitos outros Brasil afora.
É uma oportunidade para, além de conhecer essas obras, refletirmos sobre o papel da arte e aprendermos sobre sua dimensão coletiva. Um exemplo? Jaider faz uso da tal assinatura imposta pelo “sistemão europeu” para dar espaço a outros 33 artistas indígenas, sendo 11 de Roraima, na mostra Moquém-Surarî, a que está no MAM. Ele e mais sete de seus conterrâneos apresentam as 17 obras da coleção “Vacas nas terras de Makunaimî: de malditas a desejadas”, carro-chefe da exposição.
Cores da pecuária indígena
Esta coleção, que já foi exposta nos Estados Unidos, reúne obras que têm em comum a referência à pecuária indígena. Que, acredite, é outro exemplo de trabalho coletivo completamente diferente dos moldes que vemos por aí. Há 40 anos, há na Terra Indígena Raposa Serra do Sol uma criação de gado feita de forma comunitária e sem desmatamento, porque seu território é de savana – o lavrado, como se conhece localmente. Ameaçados por fazendeiros nos anos 1970, os indígenas passaram a criar seu próprio gado para garantir terra e alimentação. Ao reproduzirem, os bois e vacas adultos eram doados a outra comunidade, e o grupo original ficava com os bezerros. Hoje, só na região da Raposa Serra do Sol são 40 mil cabeças de gado. “O gado é para os macuxi o que o cavalo foi para os povos nativos das pradarias norte-americanas: o elemento invasor que deu certo”, explica a antropóloga Leda Leitão Martins.
Deu certo, mas a partir de um processo que nem sempre foi simples (vide o nome “de malditas a desejadas”). E é isso que os indígenas, todos eles com alguma relação com o gado, retratam em suas obras – que, no dia 11 de outubro, poderão ser vistas uma visita guiada seguida de debate com personagens importantes desta saga da pecuária. “Estamos aqui para mostrar que o macuxi difere de todos os outros criadores de gado no Brasil. Isso acontece há 40 anos e é pouco falado. A arte é fundamental para essa ação contracolonial”, diz Jaider.
E é fundamental para furar bolhas. Enquanto os indígenas pecuaristas provam seu poder de adaptação ao incorporar uma prática externa de maneira sustentável e comunitária, os artistas usam armas em formas de cores e texturas para mostrar a resistência de seus povos. A arte tem potencial de sensibilizar, gerar empatia, explorar mundos distintos. E provocar – não à toa, os artistas circularam com o cartaz “A Bienal dos Índios” pela megaexposição, e usam este nome também numa programação paralela de debates, dando a dimensão crítica de sua participação. E engrossando o importante debate sobre representatividade no Brasil e no mundo.
Muita gente fica horrorizada – com razão, evidentemente – ao ver o Talibã impondo seus costumes, fé e ideologia à população afegã em geral. Por outro lado, naturaliza a ideia de impor aos povos tradicionais os modos ocidentais. Essas pessoas muitas vezes são movidas pelas melhores intenções; acreditam piamente que não exista modo de vida melhor que o seu. Só que desde que foi promulgada a Constituição de 1988, os indígenas têm os mesmos direitos e deveres que qualquer cidadão brasileiro. Isso inclui liberdade de escolha. Se eles vivem como vivem, é porque assim desejam. E esta mesma Constituição prevê que o Estado brasileiro tem a obrigação de proteger seus cidadãos, estejam eles dentro ou fora das terras indígenas. No caso de povos isolados ou de recente contato, essa responsabilidade deveria ser redobrada – assim como são as ameaças.
O dicionário define genocídio como “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, ou religioso”. Jamais saberemos quando se deu o início do fim dos Piripkura, por exemplo. É uma história cheia de lacunas, que jamais serão preenchidas: oficialmente, só foram contatados nos anos 1980; mas já no fim do século XIX, começaram a ser caçados por seringueiros, e na década de 1940 o território deles, que fica no noroeste de Mato Grosso, foi invadido por grileiros e madeireiros. Rita Piripkura, a última mulher de seu povo, deixou há cerca de 40 anos seu território ancestral, a contragosto. Hoje, vive numa aldeia Karipuna, em Rondônia. Ela conta que o último grande massacre aconteceu entre os anos 1960 e 1970, quando restavam apenas 20 indivíduos. Atualmente, só se tem notícia de dois: seu irmão, Baita (ou Monde’i), e um sobrinho, Tamandua (sem acento mesmo, ou Tikum). E seus dias podem estar contados. Com eles, podem desaparecer sua língua, derivada do tupi primitivo, e saberes que têm garantido a sua sobrevivência.
Se não podemos afirmar quando começou o genocídio Piripkura, aquele que pode ser o seu último suspiro tem data conhecida:18 de março de 2022. Até semana passada essa data era 18 de setembro, mas a pressão de órgãos indigenistas levou o governo brasileiro a adiar esse momento em seis meses – mas não a eliminar de vez a ameaça. Este marco só torna legal um crime em andamento. Segundo a Funai, atualmente há 237 processos de demarcação de terras indígenas que dependem apenas da homologação presidencial. Como os processos de demarcação se movem a passos de cágado, a entidade baixou uma norma em 2008, que restringe a entrada de estranhos nesses territórios.
Essa proteção deveria ser renovada por tempo suficiente para a conclusão desses trabalhos; a última vez que isso aconteceu foi em 2018. Conseguirá, agora, o governo brasileiro fazer, em apenas seis meses, o trabalho de identificação e demarcação que não conseguiu concluir em três anos – ou 41, se considerarmos o primeiro registro do povo, em 1980?Sem a proteção integral do território até a identificação e homologação da TI, Baita e Tamandua – e outros Piripkura que porventura estejam escondidos na mata – serão abandonados à própria sorte.
A Funai foi criada em dezembro de 1967, em plena ditadura, com o objetivo de “promover e proteger os direitos dos povos indígenas do Brasil”. O atual governo entregou as rédeas dela para ruralistas e religiosos fundamentalistas. E ela se tornou a maior inimiga de quem devia defender. Por exemplo, em fevereiro deste ano a fundação baixou a Instrução Normativa 9, que escancarou as portas para invasores em áreas em processo de demarcação. Mas nem precisava, pois a Terra Indígena (TI) Piripkura, que tem 243 mil hectares de área, já tinha sido a mais devastada em 2020, entre as que vivem isolados: 962 hectares foram abaixo, 95% deste total somente entre agosto e dezembro. Em junho e julho deste ano, ela perdeu mais 220. Porém, a maior ameaça para os indígenas está no subsolo.
Em dezembro de 2020, o governo federal lançou o primeiro de uma série de estudos, elaborado pelo Serviço Geológico do Brasil, que indica áreas onde há mais possibilidades de haver metais preciosos no norte do Mato Grosso. E deu a largada para mais uma corrida do ouro. Entre 1994 a 2020, havia 119 requerimentos de mineração na área; depois da divulgação dos estudos, houve mais 202, um aumento de 70% em oito meses. Um levantamento da Operação Amazônia Nativa (Opan) apontou que os pedidos de lavra de garimpo no entorno da TI passaram de 21 processos, que abrangiam 64 mil hectares, em 2017, para 34 em junho de 2021. Isso fez a área total pular para 143 mil hectares, um aumento de 123% em três anos e meio.
Oficialmente, existem 28 povos isolados no Brasil, mas este número pode chegar a 86. As TIs Pirititi (que fica em Roraima), Jacareúba/Katawixi (no Amazonas) e Ituna/Itatá (no Pará) também vão perder a proteção em breve: a da primeira, que tem quase metade de sua área (47%) ameaçada pela grilagem, expira em 5 de dezembro; a última, que foi a terra indígena mais desmatada em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, fica ao deus-dará em 9 de janeiro de 2022. Afora a perda do conhecimento único que esses povos guardam, nossa geração vai carregar esses genocídios em sua consciência?
* A imagem que ilustra este texto é do projeto The Crying Forest, do artista francês Philippe Echaroux.
O bicho está pegando até para os bichos. Para sorte deles, porém, a Mãe Natureza não é negacionista. Conforme ensinou Charles Darwin em “A origem das espécies”, os animais podem estar começando a se adaptar aos novos – e quentes – tempos. Segundo um estudo da Universidade Deakin, na Austrália, seus bicos, membros e ouvidos estão ficando maiores, para ajudá-los a encarar as mudanças climáticas. É uma forma de regular a temperatura do corpo: elefantes africanos e jumentos nordestinos bombeiam mais sangue para suas orelhas e as balançam para dissipar o calor, e o tucano não é bicudo à toa. É a evolução dando o ar da graça, bicho.
Quem fez primeiro essa correlação foi o zoólogo americano Joel Allen, ainda nos anos 1870. Não é tão difícil de entender como funciona: quando faz frio, a gente se encolhe; no calor, abrimos os braços para colher a mais leve brisa. É claro que os animais ditos irracionais têm outros problemas tão graves quanto o calor para lidar por causa da enrascada em que os metemos. Por exemplo, eles ainda não evoluíram ao ponto de se tornarem à prova de fogo. No ano passado, os incêndios na Austrália deixaram mais de um bilhão de bichos mortos; também em 2020, 17 milhões morreram no Pantanal; e em agosto último, 20 milhões, na Itália. Uma tragédia sem tamanho.
E essa balbúrdia não está afetando apenas nossos vizinhos de planeta, evidentemente. A queda da população animal e da cobertura vegetal nos diz respeito igualmente – embora a gente finja que não – e começamos a sentir na pele os seus efeitos também. Mas o que tem feito de concreto a respeito disso o autodenominado homo sapiens, que se arvorou senhor do mundo? “Se você parar para pensar, as duas pessoas mais ricas da Terra estão tentando sair dela e não consertá-la”, escreveu um gênio anônimo da internet, referindo-se à corrida espacial particular de Joseph Bezos e Elon Musk. Já os mais pobres sequer podem sonhar em se tornarem heróis de ficção científica.
A maioria não tem para onde correr, além de um lado para o outro do planeta. E, assim, foi criada mais uma categoria de migrantes, os refugiados do clima. O Banco Mundial divulgou na última segunda-feira (dia 13) um relatório estarrecedor: até 2050, as mudanças climáticas devem obrigar 216 milhões de pessoas, quase 3% da população mundial, a deixarem seus torrões natais. Na América Latina poderão ser 17 milhões a fugir da falta de água – e à consequente escassez de alimento –, da subida do nível do mar, dos eventos extremos e do sol inclemente. Só no Brasil, 358 mil foram obrigados a migrar no ano passado, de acordo com o Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC, na sigla em inglês). Deixaremos o nosso Cariri no último pau-de-arara?
A Natureza nos dotou de um cérebro mais desenvolvido e polegar opositor para que resolvêssemos nossos próprios problemas – embora os tenhamos usado mais para criá-los. E aí? Passaremos a usar trajes refratários e/ou refrigerados? Vamos virar garrafas térmicas ambulantes que se alimentam de brisa? Faremos implantes de orelhas de burro e narizes de tamanduá? Essas soluções lhes parecem racionais?
Segundo o que já foi divulgado no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-26), marcada para o início de novembro em Glasgow, na Escócia, pode ser a última chance de ajudarmos a nós mesmos. Vamos cobrar dos líderes mundiais atitudes efetivas. Que usem o dedo indicador para dizer não aos interesses meramente econômicos e a cabeça para salvar o quer mais importa e o que faz da Terra um lugar tão especial: vidas – humanas ou não.
Eram as plantas internautas? A tese foi comprovada em 1997, mas só recentemente a chamada rede micelial deixou os subterrâneos onde se esconde e começou a ganhar os holofotes. Naquele ano, Suzanne Simard, professora da Universidade de British Columbia, no Canadá, conseguiu demonstrar que bétulas e abetos (duas espécies de árvores) trocavam nutrientes por meio dessa conexão invisível aos olhos humanos. E não só isso: em 2010, Ren Sem Zeng, pesquisador da Universidade de Agronomia do Sul da China, descobriu que, graças a essa internet da natureza, elas também se comunicavam. Esse papo é possível graças ao micélio, um labirinto de fibras minúsculas que formam cogumelos e outros tipos de fungos, e por onde se alimentam. Uma espécie de delivery.
Essas redes se estendem por quilômetros, e aproximadamente 90% da flora terrestre mantêm essa conexão simbiótica com os fungos. Graças a ela, ecossistemas inteiros se autopreservam. As árvores maiores ajudam a alimentar as plantas bebês e as mais velhas e se unem contra inimigos em comum, como parasitas e ervas daninhas. Como elas fazem isso? A ciência ainda não conhece a resposta, mas sabe que ela prova a teoria de que florestas são gigantescos organismos. E esses organismos podem, inclusive, ser dotados de consciência. E, por que não dizer, o planeta inteiro? O astrofísico e divulgador científico Neil deGrasse Tyson defende essa hipótese em “A busca por vida inteligente na Terra”, episódio de “Cosmos: mundos possíveis”, série da National Geographic. Parece ficção científica, né?
Tanto que a descoberta levou a imaginação de muita gente onde nenhum homem jamais esteve. Na última série da franquia “Star trek” (“Jornada nas estrelas”), a nave estelar Discovery se desloca à velocidade do pensamento, conectando-se a uma rede micélios e esporos que cobriria todo o Universo. Mantendo os pés no chão, hoje se estuda a possibilidade de usar o micélio, que é 100% sustentável e abundante – fungos crescem em velocidade espantosa –, na confecção de novos tecidos, materiais de construção e até mesmo satélites artificiais biodegradáveis. O céu não é o limite.
Por outro lado, pensar que a Amazônia é um grande ser vivo nos faz sentir ainda mais sua destruição, quase ouvir seus gritos de dor. Um recém-divulgado relatório do Botanic GardensConservation International alerta que 30% das espécies de árvores do mundo – cerca de 17,5 mil – correm risco de extinção. O Brasil só perde para Madagascar em número de variedades ameaçadas.
E, para piorar, um estudo internacional publicado na semana passada na revista “Nature” estima que 95,5% das espécies de plantas e animais da maior floresta tropical do mundo foram afetados pelos incêndios que destruíram 190 mil km² de mata entre 2001 e 2019. A pesquisa também calcula que 85% das espécies ameaçadas de extinção viram seus habitats serem consumidos pelo fogo. Será que nem as perdas econômicas, decorrentes desse massacre verde, sensibiliza essa gente desalmada?
Neil deGrasse Tyson defende a ideia de que outras espécies de seres vivos fazem parte dessa rede simbiótica, além de fungos, vegetais e bactérias. O homem autodenominado civilizado se deu conta há apenas dezenas de anos, mas aqueles que vivem na Amazônia sabem há milênios que os povos originários da região ajudaram a cultivá-la.
Por causa dessa simbiose, indígenas e suas terras são indissociáveis: um não existe sem o outro. Gene Roddenberry (1921-1991), criador do “Star trek” original, era um escritor visionário, e a primeira diretriz da Federação dos Planetas Unidos que imaginou era a não interferência em outras culturas, que deveriam se desenvolver sozinhas. Ele sabia que todo o Universo teria a ganhar com a diversidade de conhecimento.
O mundo precisa da Amazônia e, por isso, precisa também dos saberes daqueles que vivem conectados e em harmonia com ela. Entenderam por que enterrar definitivamente teses anti-indígenas como a do “marco temporal” é vital não somente para aqueles povos, mas para toda a Humanidade?
Não somos nós que podemos acabar com o agronegócio, mas ele mesmo
Por Sonia Bone Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)*
Minha língua materna é a ze’egete, que significa “a fala boa”. Sou formada em Letras, pela Universidade Estadual do Maranhão, também conheço muito bem o português e sei interpretar suas nuances. “Narrativa”, palavra adotada como mágica pelos seguidores do presidente, é definida no dicionário como “texto em prosa cujos personagens figuram situações fictícias, imaginárias”. E ela define a fala má dita na semana passada por Bolsonaro sobre o julgamento da tese do “marco temporal” no Supremo Tribunal Federal (STF): “Se mudar o entendimento passado, de imediato nós vamos ter que demarcar, por força judicial, uma outra área equivalente à região sudeste como terra indígena. Acabou o agronegócio, simplesmente acabou”. Como é possível caber tanta ficção em apenas duas frases?
Ruralistas chegaram a pagar anúncios de página inteira nos jornais para ajudar a vender a fantasia presidencial; mas, no mundo real, se o STF decidir sepultar de vez o “marco temporal” não estará modificando nenhum “entendimento passado”. Na verdade quem fez isso foi a Advocacia Geral da União (AGU), durante o governo Michel Temer, quando emitiu o Parecer 001/2017. O “marco temporal” – que pretende determinar que somente os povos indígenas que estivessem ocupando suas terras na data da promulgação da Constituição poderiam reclamar sua posse – não era previsto por lei. Grace Mendonça, titular da AGU na época, valeu-se do voto do ex-ministro Ayres de Britto no julgamento sobre a homologação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, para formular seu entendimento, digamos, equivocado.
Em março de 2009, a Suprema Corte havia decidido que a TI deveria ser demarcada “de forma contínua” e não em “ilhas”; logo, propriedades não indígenas ficariam de fora da área delimitada. Apenas o voto de Britto, aposentado em 2012, fazia menção ao “marco temporal”. Em outubro de 2013, o tribunal foi novamente acionado para julgar apelações contra a sua decisão. E além de manter o veredicto, o STF determinou que ela não teria efeito vinculante – ou seja, não poderia ser usada em outros casos semelhantes. Aliás, a tese do “marco temporal” sequer foi aplicada no processo original da Raposa Serra do Sol, já que havia posses não indígenas nos limites de seu território que datavam do início do século XX e foram anuladas. Isso não é história, é História.
Bolsonaro prometeu que faria o Brasil voltar ao que era há 50 anos, mas a aprovação do “marco temporal” levaria o país a recuar ao período colonial. O Alvará de 1º de abril de 1680, sancionado pela Lei de 6 de julho de 1775, já estabelecia que em “terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas”. Lamentavelmente, o presidente também não será obrigado a fazer nada “de imediato”: o artigo 67 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 estabelecia um prazo de cinco anos para que todas as TIs estivessem demarcadas. Ou seja, o Estado brasileiro está 28 anos atrasado. E a demanda por novas demarcações é pequena, já que dos 724 processos, 67% já foram concluídos.
Hoje, as terras indígenas ocupam 13,8% do território nacional. Parece muito, mas a porcentagem é menor que a média mundial, que chega a 15%, segundo um estudo publicado na revista “Nature Sustainability”, em 2018. Se comparado à porcentagem ocupada por propriedades rurais, a gente perde de goleada: 41%, sendo que 22% são tomados por pastagens – metade em estado de degradação – e 8% com plantações. São 421 TIs já homologadas, que totalizam 1.066.000 km² e 303 em fase demarcação, ou 110.000 km². Nelas vivem mais de 600 mil pessoas. Enquanto isso, 51,2 mil latifúndios, ou 1% das propriedades, ocupam 20% do território brasileiro. Quem me contou isso não foram os encantados, mas o Diário Oficial da União (DOU), o IBGE, a Funai, o Instituto Socioambiental e o projeto MapBiomas. São informações acessíveis a qualquer um.
Ainda para efeito de comparação, a TI Ibirama-La Klãnõ, ironicamente reclamada pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina e cujo julgamento o STF tornou de repercussão geral, tem 370 km² e dela dependem 2.057 pessoas (além dos Xokleng, vivem nela indígenas Guarani, Guarani Mbya, Guarani Ñandeva e Kaingang); já a Fazenda Nova Piratininga, que pertence a três empresários, ocupa 1.350 km², uma área quase quatro vezes maior, onde pastam 105 mil bois. O maior latifúndio do país fica em Goiás, cujo território é 77% ocupado pelo agronegócio e 0,1% por TIs. Santa Catarina é o segundo estado onde há mais conflitos envolvendo terras indígenas; a proporção entre elas e propriedades rurais é de 0,8% contra 67%.
Não há espírito bandeirante que justifique tamanho olho gordo em nossas terras: só na Amazônia há 510.000 km² – dois Estados de São Paulo – de área não destinada, que poderiam ser usados para produção, demarcações e conservação. TIs são fundamentais para conter o desmatamento – apenas 1,6% da perda de vegetação nativa no país se deu em seus limites entre 1985 e 2020 – e elas armazenam 28,2 bilhões de toneladas de CO₂ na Amazônia, o que dá 33% do total. Sem as terras indígenas e os povos que as protegem, o planeta vai esquentar e o céu vai parar de mandar chuva. Não somos nós que podemos acabar com o agronegócio, mas ele mesmo e as falas más.