Resistência e visibilidade

Resistência e visibilidade

É bonito ver a mobilização para ajudar aqueles que perderam seus lares nas inundações que assolam boa parte do país. Mas dois povos estão particularmente desamparados nessa catástrofe. Parte considerável de indígenas e quilombolas vive em locais de difícil acesso, aonde nem sempre chega ajuda. Exemplos de resistência e historicamente perseguidos, ambos se viram ainda mais acuados desde a posse do governo atual. Por isso, são os que mais precisam de nossa ajuda nesse momento. É hora de exercitar os ensinamentos ancestrais dos povos originários e tradicionais e cuidarmos uns dos outros, e lutar para dar mais visibilidade aos que o Brasil oficial quer fingir que não existem.

De acordo com a Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat) e o Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), 51 comunidades – cerca de 5.940 famílias ou 29.700 mil pessoas – dos povos Pataxó, Tupinambá, Pataxó Hã Hã Hãe, Imboré/Kamakã e Pankarú, foram atingidas apenas naquela região do estado; já a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) calcula que só em Minas Gerais, Bahia, Tocantins e Goiás são pelo menos 12 mil famílias afetadas. 

“O sertanejo antes de tudo é um forte, por isso estamos sobrevivendo, cada um se virando como pode. A viagem precisa ser feita a cavalo, em muitas comunidades há mutirões para desatolar os veículos que tentam chegar à cidade”, conta Nelci Conceição, liderança do Quilombo Aroeira, localizado no município baiano de Palmas de Monte Alto, região de Caatinga e Cerrado, onde ficam mais 17 comunidades. A estrada que leva os quilombos locais até a cidade é de barro e está intransitável; uma viagem que antes levava uma hora e meia hoje chega a durar seis. “Tenho visto em reportagens autoridades sobrevoando áreas atingidas de helicóptero, mas não somos lembrados. A comunicação é difícil, pois falta energia e a internet é cara”, diz ela. 

Nelci conta ainda que em dezembro do ano passado previram que a região poderia ser atingida por temporais, mas seus alertas foram ignorados. “Desde 1992 não chovia tanto por aqui, estávamos sofrendo com a seca, mas notamos sinais de que o tempo estava mudando. E o nosso pedido de asfaltamento da estrada foi protocolado em 2019 e nada foi feito”. Foram ignorados como se não existissem.

E além de o governo fazer vista grossa para as mazelas desses povos, é como se eles estivessem pagando por um crime cometido por outrem. Por exemplo: no último dia do ano que passou, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou que o Cerrado perdeu mais 8.531,44 km² de mata nativa de agosto de 2020 a julho de 2021. Foi a maior devastação registrada no bioma, presente em Goiás, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Não por acaso, esses estados estão entre os mais atingidos: os grandes produtores rurais comeram o verde para plantar soja até a beira do rio que, por causa disso, acaba transbordando.

Como desgraça pouca é bobagem, também no apagar das luzes de 2021 o presidente sancionou a lei que modifica as regras de proteção de margens de rios em áreas urbanas, estabelecidas pelo Código Florestal. Agora a responsabilidade cabe às prefeituras – ou seja, fica a sabor do curso das eleições da ocasião. Mais destruição e sofrimento à vista.

Segundo dados preliminares do IBGE, que este ano deve realizar um censo especial voltado para os quilombolas, eles são 1.133.106. Bahia e Minas, os estados mais afetados pelas cheias, junto com Tocantins, também são os que abrigam mais quilombos:  1.046 e 1.021, respectivamente. Hoje, praticamente o mundo inteiro conhece o papel fundamental dos indígenas na preservação das florestas, mas nem todos sabem que os quilombolas também fazem um trabalho importantíssimo nesse terreno. 

A mesma pesquisa do IBGE diz que existem pelo menos mil quilombos na Amazônia; e já há algum tempo se conhece a dimensão de sua influência na conservação dela. Um estudo sobre isso foi realizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo em 35 comunidades da região de Oriximiná, no Norte do Pará, em 2011. São 6.944 km² de floresta; até o ano 2000, a região havia perdido 64 km² de vegetação nativa e entre 2006 e 2009, somente 6 km². Falta um reconhecimento maior desse feito. “Isto é devido ao modo que os quilombolas exploram a floresta. Eles vivem um modelo econômico com ênfase no extrativismo”, disse na época Lúcia Andrade, coordenadora-executiva da instituição. 

Indígenas e quilombolas são povos que diariamente cuidam do planeta e do nosso futuro – e, justamente por isso, são tão perseguidos. Então, não custa lembrar que além de ser um belo sentimento, a empatia também é fundamental para aguçar nosso instinto de sobrevivência. Vendo o que estão passando nossos irmãos Brasil adentro você também não sente a água batendo nas canelas? Ficar ao lado deles é resistir contra a destruição de tudo o que temos de mais precioso.

 

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Semeadura

Semeadura

“Keanu Reeves”, diria o saudoso Mussum sobre 2021. Traduzindo, que ano horrívis. Quem vai desdizer o Trapalhão? Só faltou o meteoro. A começar por um problemão que diz respeito a todos os seres vivos do planeta: segundo o último relatório do IPCC da ONU, as mudanças climáticas estão avançando implacavelmente e nada do que foi feito até agora surtiu efeito algum. Mas, como não adianta chorar sobre o CO₂ derramado na atmosfera, não vamos botar água no chope das festas de fim de ano de ninguém. Em 2022, a gente volta com nossa tradicional retrospectiva; por enquanto vamos nos concentrar no que podemos fazer para que os próximos 365 dias tragam mais esperança. É hora de semear.

Temos poucos, mas bons motivos para tanto; aos 45 do segundo tempo, este ano nos trouxe algumas boas novas. A mais importante foi um estudo da 2ndFOR, organização que reúne mais de cem cientistas de 18 países, publicado este mês na revista “Science”. Segundo ele, florestas tropicais se regeneram muito mais rápido do que se imaginava: bastam entre 10 e 20 anos para que recuperem 80% do carbono perdido, da fecundidade de seu solo e da diversidade vegetal. Uma piscada em se tratando da idade da Terra – a Amazônia, como conhecemos hoje, por exemplo, teria se formado há cerca de 2,5 milhões de anos – e um período razoável, levando-se em conta a nossa expectativa de vida.

Os pesquisadores compilaram dados de mais de 2 mil trechos de florestas em fase de regeneração em áreas tropicais da América e da África ocidental. E chegaram a conclusões tão animadoras quanto surpreendentes. Na verdade, pouco restou de mata realmente nativa nesse mundão de meu Deus: boa parte do que há de verde colorindo o planeta hoje existe graças a uma demão dada pela natureza, depois de ele ser arruinado pelo homem. Há florestas na Europa que se recuperaram durante os séculos XVIII e XIX. Por incrível que pareça, o nordeste dos Estados Unidos tem hoje uma cobertura florestal maior do que há um ou dois séculos. 

Nos trópicos há aproximadamente 8 milhões de km² em recuperação. Isso não quer dizer que devamos baixar a guarda; não tem essa de desmata que a natureza quebra teu galho: “É possível recuperar florestas tropicais por meio de processos naturais em tempo condizente com expectativas humanas. Porém, mesmo assim, é muito mais rápido destruir do que recuperar. Os resultados devem ser vistos com otimismo, mas também com responsabilidade”, alerta Pedro Brancalion, professor do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), um dos autores do estudo. 

Nossa capacidade de destruição ainda é alta. Por isso, em junho, a ONU lançou a Década da Restauração dos Ecossistemas (2021-2030), para ver se governos, empresas, instituições e sociedade civil se coçam. Os povos da floresta já fazem isso há algum tempo. Para garantir a preservação de espécies vegetais e a recuperação de biomas, deixando-os mais próximos de suas características originais, tem mais de uma década que a Rede de Sementes do Xingu e a Rede de Sementes do Vale do Ribeira estão na ativa. Com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), indígenas e quilombolas se dedicam a ressemear a Amazônia e a Mata Atlântica. Outras iniciativas parecidas vêm brotando mundo afora. O verde se firma como a cor da esperança. Que 2022 seja o ano da colheita! 

“Alegria, formosa centelha divina”, escreveu o autor alemão Friedrich Schiller, em poema que inspirou o seu compatriota Beethoven a compor sua nona sinfonia. “Ó, amigos, mudemos de tom! Entoemos algo mais prazeroso e mais alegre!”, conclama a “Ode à alegria”. A própria natureza canta quando está alegre. É o que diz outra notícia de dezembro que veio acalentar nossos corações: pesquisadores das universidades inglesas de Exeter e Bristol registraram um coral de peixes num recife de coral arruinado pela pesca predatória na Indonésia, que está se recuperando. Corais são florestas marinhas. O canto dos peixes é um chamado à semeadura; não só de árvores, mas de bons sentimentos.

 

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O direito não é um privilégio

O direito não é um privilégio

A saúde deveria ser um direito de todos, jamais um privilégio de alguns. Não se trata de uma questão meramente humanitária – o que, cá entre nós, já deveria ser suficiente –, mas que diz respeito também à sobrevivência da espécie. A variante ômicron veio nos lembrar que negligenciar o outro pode derivar em consequências para todos: os países ricos cuidaram de si mesmos, deixando os menos abastados à própria sorte; o coronavírus se aproveitou dessa brecha aberta pelo egoísmo para contra-atacar. Levar vantagem pode ser uma desvantagem. Não à toa, também, o seu direito termina onde começa o de outrem.  Se você botar fogo na sua casa, a fumaça vai sufocar seu vizinho – e vice-versa.

Isso tudo devia ser o óbvio ululante, mas andam confundindo, convenientemente, direito e privilégio. Esses dois conceitos estarão em jogo nas votações dos Projetos de Lei (PLs) 2633/2020 e 2159/2021, que a bancada ruralista do Senado quer nos empurrar goela abaixo o quanto antes. O direito à terra no Brasil é mutável, parece seguir os preceitos da alquimia. Agora, os infames PL da Grilagem e PL da Boiada, como ficaram conhecidos, podem transmutar as prerrogativas de muitos em regalias para poucos. Os mais prejudicados, para variar, serão indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais; mas vai sobrar um quinhão considerável para o resto da população brasileira também. O nosso direito à informação, aliás, vem sendo atropelado pelo privilégio do Executivo de impor sigilo de até cem anos a seus atos mais questionáveis.

Pode invadir que o governo agradece. Não há meias-palavras: o PL da Grilagem estimula o crime ao não só anistiar, como beneficiar – de mais de uma forma – o infrator. O texto autoriza a privatização de terras públicas invadidas e desmatadas até 2017. Detalhe: sem licitação. O projeto também tem uma brecha que permitiria legalizar invasões posteriores à data fixada por lei e até prevê benefícios financeiros para os grileiros. Que regalia, não? Quando se transforma em bem o fruto de um crime você cria um privilégio, mas também abre uma jurisprudência. O feitiço pode virar contra o feiticeiro. Já o PL 2633/2020 flexibiliza de forma para lá de temerárias as regras de licenciamento ambiental. E já sabemos que sem a Amazônia o Brasil vai mergulhar no caos climático.

Se virar lei, será muito mais fácil construir novas Belos Montes, barragens como as de Mariana e Brumadinho, e estradas floresta adentro, um tapete de boas-vindas para a devastação. A gente sempre volta a Belo Monte para que ao menos de exemplo ela sirva. Para privilegiar algumas poucas empresas e interesses, direitos foram atropelados – incluindo o de consentimento livre, prévio e informado, conforme determina a Convenção 169 da OIT dos povos originários da região – e centenas de milhares de pessoas, prejudicadas. Demorou – muita gente quer ser dono do bem mais precioso da Terra –, mas em 2010 a ONU conseguiu reconhecer o direito à água potável como um direito humano e o Senado aprovou em março deste ano uma proposta de emenda à Constituição (PEC 4/218) que inclui entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão o seu acesso. A PEC agora espera sentada pela sede de justiça social da Câmara.

Mas voltando ao nosso tema inicial, a saúde: a Constituição determina que é dever do Estado cuidar do bem-estar do cidadão. No caso dos indígenas, ainda existe o Decreto 3.156/1998, para lhes dedicar atenção especial, dada a sua vulnerabilidade. Contudo, somente 44% deles foram vacinados contra a Covid-19 – enquanto entre a população em geral essa porcentagem chega a 65% –, e moradores de aldeias inteiras em terras Munduruku e Yanomâmi estão contaminados por mercúrio. Assim como os indígenas, os quilombolas também tiveram que recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que recebessem cuidados do governo durante a pandemia – é uma população especialmente vulnerável à doença –, mas a taxa de vacinação entre eles é de 49,75%.

Ainda há quem chame a política de cotas de privilégio. E entre estes, existem os que deixam de lado a coerência e querem o que consideram uma regalia para si: garimpeiros e pecuaristas estão se arvorando povos tradicionais, de olho grande nos pequenos direitos conquistados por eles. Como se sabe, pecuaristas são vítimas da violência e do preconceito de boa parte da sociedade, têm suas terras constantemente invadidas, praticam uma cultura ancestral, nunca receberam benesses do Estado e sempre foram perseguidos por seu aparelho de repressão. Só que não.

O direito de ir e vir é universal, e os indígenas o manifestam indo a Brasília para defender seus interesses, por seus próprios meios; já garimpeiros que invadiram e poluíram suas terras já foram lá até de carona em avião da FAB, a convite do ministro do Meio Ambiente. Esse tipo de mordomia não tem nada de tradicional. Quem é mesmo privilegiado?

 

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Sarna na Cabeça do Cachorro

Sarna na Cabeça do Cachorro

Há alguns dias, a Universidade Federal de Alagoas (Ufal) divulgou um estudo associando o uso indiscriminado de ivermectina ao risco de surto de sarna — infestação humana pelo ácaro. Como se sabe, o próprio governo federal receitava a utilização do medicamento contra a Covid-19 e o distribuía à população. O negacionismo tem razões que a sua própria falta de razão desconhece.

Infestações de invasores em terras indígenas também costumam ser precedidas por sintomas que vêm do Executivo e de seus aliados no Congresso. Senado e Câmara ameaçam votar a qualquer momento os PLs do Licenciamento Ambiental e da Grilagem, além de tentar mudar o Código de Mineração; enquanto isso, Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), dá o seu aval a projetos de pesquisa de ouro na Cabeça do Cachorro — como é conhecida a região no extremo noroeste do Amazonas.

Querem botar um outro tipo de sarna na Cabeça do Cachorro. A diferença é que uma infestação do ácaro é um efeito colateral indesejado, enquanto o parasitismo de terras indígenas parece ser claro no resultado pretendido.

Na prática, essas ações são vistas como um sinal verde pelos aventureiros de sempre — entre os pedidos autorizados por Heleno há os de empresas autuadas pelo Ibama. O ex-general também foi, durante seis anos, o braço-direito de Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), condenado a 30 anos e 11 meses de prisão no fim do mês passado por corrupção e organização criminosa. No mínimo, pode-se concluir que o chefão do GSI, aquele que deveria ser o homem mais bem-informado da República, deixa passar muita coisa debaixo de seu nariz.

Augusto Heleno deveria saber, por exemplo, que os indígenas daquela região não querem ouro e muito menos sarna para se coçar. O preço a pagar é muito alto: Yanomami e Munduruku carregam mercúrio no sangue por causa do garimpo, e o ouro também atrai o crime organizado. Com 109.181.245 km² de área, São Gabriel da Cachoeira é o terceiro maior município brasileiro em tamanho — é maior, inclusive, do que estados como Rio de Janeiro e Santa Catarina, e países como Coreia do Sul, Hungria e Portugal. A Cabeça do Cachorro, onde está localizado, é uma das áreas mais preservadas da Amazônia. Não por acaso, já que é o lar de 23 diferentes povos, que vivem em mais de 700 comunidades, e a cada dez de seus 47.031 habitantes, nove são indígenas. São mais de 40 mil guardiões.

O atual ministro do GSI talvez não saiba, mas os municípios que mais desmatam na Amazônia são os menos desenvolvidos da região, segundo um estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), publicado no último dia 6. Como é bem informada, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que representa as 23 etnias da região, tem entre seus principais objetivos o incentivo a programas de desenvolvimento sustentável, voltados para a comercialização de produtos nativos e o turismo. O outro é o monitoramento ambiental e climático da Bacia do Rio Negro — que, ao se juntar ao Solimões, forma o Amazonas. É uma responsabilidade do tamanho do maior rio do mundo.

O ex-general é igualmente conhecido por sua falta de trato com minorias e povos tradicionais. No ano passado, no ápice da pandemia, ordenou o despejo de 792 famílias (mais de 2 mil pessoas) de 27 comunidades quilombolas em Alcântara, no Maranhão, para ampliação da base espacial local. Foi também comandante militar da Amazônia e um crítico feroz da política indigenista adotada pelo país no pós-democratização.

É curioso pensar que o maior temor dos militares, diante do reconhecimento dos direitos dos indígenas às suas terras pela Constituição de 1988, era comprometer a integridade do território nacional. Por isso, o artigo 20 diz que elas são bens da União e que não podem ser vendidas. O próprio presidente Bolsonaro, ainda deputado, tentou reverter a homologação da Terra Indígena Yanomami. A alegação é que, sendo área de fronteira, facilitaria invasões. A Cabeça do Cachorro é colada com Colômbia e Venezuela. Heleno concedeu as autorizações de pesquisa exercendo o outro cargo que ocupa no Executivo, o de secretário-executivo do Conselho de Defesa, órgão colegiado que aconselha o presidente em assuntos de soberania e defesa. Não fica uma pulga atrás da orelha?

 

Observação: O texto foi originalmente publicado citando o surto de sarna em Pernambuco, referência que foi retirada uma hora depois. A Secretaria Executiva de Vigilância em Saúde do Recife divulgou, no mesmo dia, que investiga se o motivo para a infestação local pode ser o contato com um tipo de mariposa. O estudo da Ufal faz, de fato, relação entre o uso da ivermectina e a escabiose, mas não se pode afirmar que é o caso do exemplo recente de Pernambuco.  

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Esticando a corda

Esticando a corda

Há mais de uma forma de cometer genocídio; às vezes, nem é questão de matar: basta não deixar nascer. “A gente não quer ter mais filhos, porque temos mercúrio no sangue. Nós estamos contaminadas”, lamentou na última sexta-feira a cineasta indígena Aldira Akai Munduruku. A invasão de balsas no Rio Madeira na semana passada é uma imagem impactante, mas somente a ponta do iceberg. O garimpo em terras indígenas (TIs), por exemplo, aumentou 500% em dez anos. E, segundo estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), todos os moradores da TI Sawré Muybu, no Pará, foram afetados, sendo que 60% deles têm taxas do metal no organismo acima do limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O mercúrio passa de mãe para filho e pode levar à malformação do feto ou até à morte. Um extermínio sem violência aparente. Lento, invisível, doloroso, cruel.

O garimpo ilegal na TI Yanomami também vem aumentando em velocidade assustadora desde o início de 2021. Só no primeiro trimestre o desmatamento foi o equivalente a cerca de 10% de toda a destruição da última década. A continuar nessa batida, este ano pode vir abaixo o correspondente à metade de toda área desmatada até 2019. No mês passado, duas crianças morreram, sugadas por uma draga de mineração. Um estudo realizado pela Fiocruz constatou presença de mercúrio em 56% das mulheres e crianças Yanomami da região de Maturacá, no Amazonas. A fundação foi proibida pela Funai de fazer uma nova pesquisa este mês.

A Constituição tem bem mais que quatro linhas e quais o governo atual escolheu respeitar é um grande mistério. Só de ações de inconstitucionalidade ajuizadas por partidos políticos no Supremo Tribunal Federal (STF), Jair Bolsonaro já passou dos 180 em dois anos de mandato — deixando na poeira seus antecessores, Michel Temer , Dilma Rousseff  e Luiz Inácio Lula da Silva que, juntos, responderam por 144. Com seus 250 artigos, a Cidadã é a segunda maior do mundo, perdendo apenas para a indiana. O que o presidente não tenta mudar, por meio de medidas provisórias e decretos, ele simplesmente ignora. Os direitos específicos dos povos originários mereceram um capítulo à parte (“Dos Índios”), que ocupa pouco mais de dez linhas.

É negligência que chama?

Não vamos esquecer que foi preciso que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrasse com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF para que o governo ao menos simulasse proteger os povos originários durante a pandemia de Covid-19. Tá lá na Constituição, no Decreto 3.156, de 27 de agosto de 1998: “a atenção à saúde indígena é dever da União”. Mesmo sob a ameaça do novo coronavírus, o orçamento para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) despencou, passando de R$ 1,1 milhão em 2018 para R$ 494 mil em 2019 e para R$ 200 mil no ano passado. É negligência que chama?

Enquanto tenta passar no Congresso o Projeto de Lei 191/20, que regulamentaria a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em TIs, Bolsonaro faz vista grossa para o artigo 231, que diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Por sua vez, as ações e omissões do governo atraem para as terras indígenas toda sorte de aventureiro — até mesmo a milícia e o narcotráfico podem estar envolvidos. Todos os males das grandes cidades parecem estar migrando para a floresta. ​​ Até quando vão continuar a esticar a corda do negacionismo? Além de milhares de satélites no espaço, existe uma coisa chamada Lei de Acesso à Informação. Será que depois do vexame da COP o governo brasileiro ainda não se tocou que não há mais como esconder cadáveres no armário?

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