A palavra é regeneração

A palavra é regeneração

“Desesperar, jamais”, diz a canção de Ivan Lins. Mas, diante dos últimos acontecimentos, até os mais fortes podem desanimar: “A Amazônia é como um ser gigantesco, de uma divindade enorme. Imaginava que aquela grandeza toda fosse capaz de achar uma saída para o dano que estamos fazendo nela. Quando eu vi que não, isso me baqueou”, disse Luciana Gatti, pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ela liderou o estudo que descobriu que a maior floresta tropical do mundo já emite mais CO₂ do que absorve. Para a cientista, a situação é ainda mais grave do que pintou a prévia do último relatório do IPCC da ONU. Pode ser pior? E é.

Segundo uma recém-divulgada análise do projeto MapBiomas, o Brasil perdeu 15,7% da superfície de água nos últimos 30 anos. Assim o sertão não vira mar. Ao todo, 3.100 km² de área foram para o ralo, o que dá aproximadamente mais de uma vez e meia de toda água doce do Nordeste. O estado mais atingido é o Mato Grosso do Sul, que viu sumir 57% de seus recursos hídricos. No incêndio do ano passado, quase 1/4 do Pantanal virou cinzas. Segundo o boletim do MapBiomas, ele também já perdeu 74% da água desde 1985. O famoso ecossistema mato-grossense corre o risco de perder o título de maior planície alagada do planeta.

As principais causas desse desastre são velhas conhecidas: “Mudanças no uso e cobertura da terra, construção de barragens e de hidrelétricas, poluição e uso excessivo dos recursos hídricos para a produção de bens e serviços alteraram a qualidade e disponibilidade da água em todos os biomas brasileiros”, afirma comunicado oficial do MapBiomas. “Se não implantarmos a gestão e uso sustentável dos recursos hídricos considerando as diferentes características regionais e os efeitos interconectados com o uso da terra e as mudanças climáticas, será impossível alcançar as metas de desenvolvimento sustentável”, alerta, ainda, o texto. Só que aí entra em cena outro antigo problema brasileiro: a falta de continuidade. Quando muda o governo, mudam as políticas de desenvolvimento do país.

Deixemos as mazelas mais conhecidas, como o desmatamento desenfreado da Amazônia, que vem causando estiagens nunca vistas justamente no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste do país, para falar de uma não tão óbvia assim: a obsolescência programada de nossa infraestrutura. Por aqui, é mais fácil construir uma estrada nova do que recapear a que está esburacada – dizem por aí que o fenômeno é mais um efeito colateral da corrupção, mas não digressionemos. Precisamos ter isso em mente num momento em que a sanha desenvolvimentista está sem controle. Um exemplo é se falar em construção de novas estradas de ferro, como a Ferrogrão, quando o país tem uma grande malha ferroviária à espera de reparos. Investir em recuperar essas vias não seria mais viável?

Já que o assunto é água, temos um exemplo mais palpável. O Brasil sempre tirou a onda de ter uma matriz energética de baixo carbono justamente por suas hidrelétricas. Porém, em vez de erguer novas barragens – que estão entre as maiores causas desse pesadelo hídrico –, restaurar e modernizar usinas antigas seria uma solução muito mais barata e ambientalmente correta. Daria para acrescentar uma Belo Monte de energia no país dando um trato nas que já estão aí – e o melhor é que, diferentemente da usina que está arruinando o Rio Xingu, elas funcionariam!

Hoje, o país tem 1.495 hidrelétricas que, juntas, geram 109 mil megawatts (MW). Muitas delas têm mais de meio século de funcionamento e, segundo um estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), bastaria modernizar 51 delas para adicionar mais 10 mil MW ao nosso sistema. Entre 2006 e 2016, os Estados Unidos aumentaram em 70% a produção de eletricidade por via hídrica apenas recauchutando equipamento antigo.

Aprendemos muito nestes anos, principalmente depois que passamos a ouvir com atenção o que tinham a dizer os povos tradicionais; além disso, os cientistas do IPCC asseguram que ainda há tempo para adiar o fim do mundo. Basta que as palavras regeneração e restauração se juntem à preservação para nos nortear. Logo, não tem cabimento entregar o jogo no primeiro tempo. Nada de correr da raia, nada de morrer na praia.

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Precisamos aprender a ouvir

Precisamos aprender a ouvir

Saber ouvir é questão de vida ou morte para quem mora na floresta; grandes predadores são furtivos, muitas vezes invisíveis aos seus olhos. “A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas”, escreveu o poeta alemão Goethe. Os povos originários brasileiros devoraram suas páginas e aprenderam a ler este idioma, que deveria ser universal.

Precisamos aprender a ouvir. É outra lição que poderíamos aprender com os indígenas, sobretudo na selva da internet, onde todos falam e ninguém escuta, e onde mentiras se camuflam de verdades.

Algumas autoridades parecem dar ouvidos apenas às vozes que dizem exatamente o que querem escutar. No último dia 12, por exemplo, o presidente vestiu cocar para falar em nome dos povos tradicionais, defendendo a abertura de seus territórios para mineração e geração de energia, em frente a uma pequena plateia. Aliás, não só em nome deles: “Os índios não querem ser isolados. Está aqui o exemplo claro. Tem muito indígena aqui que fala português igualzinho ao nosso, tem exatamente o mesmo sentimento nosso”. Nosso quem, cara-pálida? Belo Monte, que produz mais dor de cabeça que eletricidade, é a prova concreta que construir hidrelétrica na floresta é a maior roubada. Quem está disposto a bancar novos elefantes brancos? Dadas as denúncias de corrupção que cercam a obra, ela deve ter atendido aos interesses de alguém, mas certamente não aos da maioria.

Por outro lado, as reivindicações da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) – entidade que reúne associações presentes em todas as regiões do país e que teve sua representatividade jurídica reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ­– entram por um ouvido do Executivo e saem pelo outro. A maioria dos indígenas deixa claro que não quer hidrelétrica e mineradora matando seus rios – estes, sim, uma riqueza que não tem preço. Mas como o valor do ouro no mercado internacional disparou em desabalada carreira – aumentou 46% no primeiro semestre – o apetite das mineradoras cresceu em velocidade ainda maior.

Um estudo da Operação Amazônia Nativa (Opan), em parceria com o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), divulgado na semana passada, indica que os pedidos de autorização para o garimpo no Amazonas cresceram 342% em 2020 comparados à média dos 10 anos anteriores. São cerca de 3 mil requisições, que abrangem 120,8 mil km², o equivalente a 8% da área do maior estado da Região Norte. O Instituto Brasileiro de Mineração calcula que foram extraídas 48,5 toneladas de ouro no país no primeiro semestre, um aumento de 6% em relação ao mesmo período de 2020. Pode-se até argumentar que a atividade gera riqueza e empregos para o país; mas de boa parte desses benefícios não deixa nem o cheiro por aqui. De acordo com o Instituto Escolhas, 19 toneladas, o que equivale a 17% de nossa produção total, deixam o país de forma ilegal.

Além disso, a imensa maioria dos processos de lavra que chegam à Agência Nacional de Mineração (ANM), aproximadamente 90%, foi protocolada por cooperativas de garimpeiros, cuja atividade, teoricamente artesanal, é considerada de impacto ambiental baixo. Porém, muitas dessas associações têm usado a benevolência extrema de nossa legislação e os ouvidos de mercador do governo para tocar grandes empreendimentos. Essas requisições atingem 16 km² de terras indígenas, 110 km² de unidades de conservação de proteção integral e outros 138 km² de reservas extrativistas, áreas onde o garimpo é terminantemente proibido – como se a porteira estivesse prestes a ser aberta.

E, de fato, apesar de todas as cortinas de fumaça e alguns poucos interesses conflitantes, o Executivo tem na Câmara Federal, com a ascensão de Arthur Lira à sua presidência, uma aliada fiel naquilo que realmente lhe interessa. O deputado alagoano tem se mostrado muito mais competente que o ex-ministro do Meio Ambiente quando a tarefa é passar a boiada. Sob sua batuta, foram aprovados a última e desfigurada versão do Projeto de Lei 3.729/2004, um “liberou geral” do licenciamento ambiental, e o 2.633/2020, o “PL da Grilagem”, cujo apelido é autoexplicativo – espera-se que o Senado breque esses absurdos. Tudo à boca miúda e a toque de caixa. Enquanto Ricardo Salles era conhecido por se gabar de seus desfeitos, Lira age como siri na toca. Porém parece não haver nenhuma pressa para apreciar o PL 836/2021 que, segundo o Instituto Escolhas, seria a melhor solução para evitar o contrabando de ouro.

O próximo alvo de Lira é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Editado em 1989 e ratificado pelo Brasil em 2002, o texto é uma salvaguarda aos direitos dos povos tradicionais. É ele que lhes garante o benefício do consentimento prévio, livre e informado sobre ações que possam impactá-los. O objetivo do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021 é tirar o país do tratado. O nome do Brasil na praça está mais sujo que dinheiro velho. Em junho, fomos citados pela primeira vez pelo Escritório para a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger da Organização das Nações Unidas (ONU). A menção partiu de sua conselheira especial, a queniana Alice Wairimu Nderitu, na última sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Alice conhece muito bem o poder destrutivo da palavra: “Meu escritório é um ponto focal no sistema das Nações Unidas para o enfrentamento de discursos de ódio. Não há um único genocídio – o Holocausto, qualquer crime de guerra, crime contra a humanidade – que não tenha sido precedido de discursos de ódio”. E pensar que o país já foi referência no sentido contrário. “Durante alguns anos, o próprio Brasil conduziu os esforços para solucionar as falhas na implementação desse princípio na Líbia, na chamada iniciativa Responsabilidade de Proteger. É esse tipo de papel de liderança que eu encorajo as autoridades brasileiras a ocupar quando se trata de proteger a própria população”, lembrou a conselheira.

Uma mentira repetida mil vezes continua sendo uma mentira. O inciso XI do artigo 20 da Constituição afirma que as terras indígenas são bens da União – ou seja, pertencem a todos os brasileiros. O parágrafo primeiro do artigo 231 diz que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. A mineração e a produção de energia são estranhas à cultura dos povos originários. Nossas escolhas definem o nosso futuro. E o futuro não está mais tão distante: é amanhã. Ouvir é interpretar.

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Efeito dominó

Efeito dominó

Um personagem recorrente no cinema-catástrofe é o cético que, por ignorância ou má-fé, recusa-se a se render às evidências. A ele, geralmente o roteirista dedica um desfecho cruel e exemplar. Não é diferente na vida real. Durante o incêndio Dixie, que reduziu a cinzas o povoado histórico de Greenville, na Califórnia, moradores se recusaram a deixar suas casas, chegando a ameaçar bombeiros com armas de fogo. O mais grave, porém, é que desavisados – ou, simplesmente, irresponsáveis – desse tipo costumam arrastar inocentes atrás de si. O último relatório do IPCC da ONU mostra, inequivocamente, que o mundo se encontra à beira do abismo. Guiado por uma figura que parece ter saído de má ficção, o Brasil se encontra um passo à frente. E o pior, está arrastando nossos vizinhos para o precipício também: o desmatamento na Amazônia está afetando diretamente a Argentina.

O “ClimateChange 2021: The Physical Science Basis”, que pautará as discussões da próxima conferência do clima das Nações Unidas, a COP-26, a ser realizada em novembro em Glasgow, na Escócia, é categórico: “É um fato estabelecido que a influência humana aqueceu o sistema climático e que mudanças climáticas generalizadas e rápidas ocorreram”. Se já não dava para fingir que a gente não tinha nada a ver com isso, agora se fazer de desentendido é passar vergonha. “Não houve nem um único país, durante os debates sobre aprovação do relatório, que tenha levantado dúvidas sobre essa questão. É um consenso, passamos dessa etapa. Agora é o que fazer, como fazer, quem paga a conta”, explica Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC. O relatório foi compilado por 234 cientistas de 66 países, baseado em mais de 14 mil apontamentos.

As informações contidas no documento de 42 páginas são estarrecedoras – desculpem o mau jeito, mas não há palavra mais adequada. Os negacionistas mais delirantes já começam a recolher os cartazes de “O fim do mundo não está próximo”.

A temperatura média da Terra já subiu 1,1ºC desde 1850. E deve alcançar 1,5ºC acima do nível pré-industrial já na próxima década, uma antes do que era previsto. Inundações, secas, furacões e ondas de frio e de calor vão se tornar cada vez mais frequentes. Algumas consequências dessa catástrofe já são consideradas irreversíveis, como a subida do nível do oceano, que transformará cidades como Rio de Janeiro, Londres e Nova York em Atlântidas – o mar deve subir 2 metros até 2100 e mais 5 metros 50 anos depois. Outras mudanças chegarão bem mais cedo: para cada grau Celsius a mais, os temporais se tornarão 7% mais intensos e 30% mais frequentes; as ondas de calor, que já têm 2,8 vezes de chances a mais de ocorrerem e já são 1 °C mais fortes do que antes da Revolução Industrial, poderão acontecer 9,4 vezes mais e serão 5 °C mais quentes.

A política para o setor aqui só tende a piorar este cenário: “O negacionismo ambiental desse governo é muito parecido com o negacionismo na pandemia, que produziu quase 600 mil mortes. Esse negacionismo na saúde a gente está vendo o que gera. Frente ao meio ambiente, vemos escassez hídrica, aumento das emissões, produção de alimentos ficando mais cara”, diz Mauricio Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil.

O desastre causado pelo governo brasileiro mais cedo ou mais tarde vai se refletir em todo o planeta – com o desmatamento fora de controle, a Floresta Amazônica já emite mais CO₂ do que é capaz de absorver. Isso já está acontecendo num país vizinho, que está passando por uma crise hídrica sem precedentes. “Na Argentina, por exemplo, cerca de 70% da agricultura depende da água que vem dos rios voadores da Amazônia. A Argentina está sofrendo mais que o próprio Brasil, e a crise pode se mostrar mais severa lá antes mesmo do que aqui”, conta Philip M. Fearnside, doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus. E, se depender da sensatez de Bolsonaro, a grama do vizinho não será mesmo mais verdinha.

Recentemente, o presidente brasileiro preferiu não receber Alok Sharma, deputado conservador designado pelo governo britânico para presidir a COP-26. Apesar da descortesia, Sharma, que tem status de ministro de Estado, declarou-se encantado com técnicas desenvolvidas no país de agropecuária sustentável.

Outro dia também, Bolsonaro disse que grande parte dos indígenas “não sabe nem o que é dinheiro”. Na histórica carta que mandou para o presidente americano Franklin Pierce, em 1855, em resposta à oferta de compra das terras de seu povo, os Duwamish, o legendário Cacique Seattle questionava: “Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia é-nos estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água. Como podes então comprá-los de nós?”. Os indígenas conhecem o real valor das coisas. E não deixa de ser irônico que o governo e seus aliados ainda pareçam viver nos tempos das pinturas rupestres, enquanto eles se aventuram no mercado da arte digital das NFTs. Sabedoria é coisa que vem de tempos imemoriais e se adapta com o passar dos anos. Os povos indígenas do Brasil são os protagonistas de nossa História; outros, meros coadjuvantes que, como na ficção, servem de mote para lição de moral.

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Entrando numa fria?

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Deu no “The New York Times”, em julho de 1850: “Existe um excêntrico na cidade de Apalachicola, Flórida, que pensa poder fazer gelo tão bem quanto Deus Todo-Poderoso”. O referido excêntrico se chamava John Gorrie. A desconfiança do tradicional jornal americano era justificável na época, pois, crenças à parte, sua engenhoca era movida a vapor. Como assim? Usar o calor para gerar frio? A invenção de Gorrie foi aperfeiçoada, mas o seu princípio de funcionamento continua o mesmo – quem nunca botou roupa pra secar atrás da geladeira? Então é normal que o cidadão comum, que ainda está batendo os queixos de frio no sul e sudeste do país, se pergunte: mas que diabos de aquecimento global é esse? A descoberta de que o efeito estufa também poderia esfriar o tempo é razoavelmente recente. E a Ciência é como a Ofélia do Fernandinho – essa saiu do fundo do baú: só abre a boca quando tem certeza. Mas ao contrário dela, costuma ter razão.

Daí o termo ter sido trocado por mudanças climáticas, que é bem mais amplo e ajuda a evitar equívocos. Pois, diferentemente do Chacrinha – eita, daqui a pouco chamam a gente de cringe –, os cientistas vieram para explicar, não para confundir. Nos tempos de Lúcio Mauro, Sônia Mamede e Abelardo Barbosa, o Velho Guerreiro, nevar no Brasil era sonho de criança. Hoje, este fenômeno pode se tornar cada vez mais comum. O mar está esquentando e, com isso, acelerando a velocidade corrente de ar circular que paira sobre a Antártida, como um catavento sobre uma chama. E aí, já viu: ela espalha o frio para mais longe, como faz o ventilador com a sujeira e com as verdades inconvenientes.

Para quem não se lembra, até essa massa de ar polar chegar ao país o inverno estava, digamos, bem ameno – em Porto Alegre e São Paulo os termômetros beiravam os 30ºC. “Em função do aquecimento, os sistemas de circulação atmosférica são alterados. Massas de ar frias podem gerar extremos de temperatura mais baixas ou massas de ar muito mais úmidas podem gerar inundações, por exemplo”, explica Tércio Ambrizzi, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo.

A friaca no Brasil, o calorão tropical do Canadá e as chuvas torrenciais na Alemanha e na China têm a mesmíssima origem, conforme esclarece Francisco de Assis, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet): “Isso está associado à alta variabilidade climática e aquecimento global, que causam esses extremos. Da mesma forma que o frio extremo aqui, vemos o forte calor no Hemisfério Norte”. Também segundo ele, a massa de ar frio que desembarcou por essas bandas será a terceira neste 2021. Em geral, só chegam uma ou duas com potência semelhante por ano.

A temperatura do planeta aumentou aproximadamente 1,2ºC desde o século XIX, com o início da Revolução Industrial, quando a gente acreditava que podia tudo. E deve continuar subindo, caso não reduzamos drasticamente as emissões de CO₂. É preciso deixar claro que, apesar do frio incomum que atingiu o Brasil, é no calor excessivo que mora o grande perigo. Ainda nesta década, algumas regiões do planeta devem se tornar inabitáveis. Além disso, causará prejuízos na produção de alimentos, o que deve resultar em fome numa escala jamais vista.

Podemos ter outro inverno fora do comum no Brasil no próximo ano, mas a tendência é que a média da temperatura anual aumente. E uma das consequências mais danosas desse fenômeno será a profusão de ventos climáticos extremos que vamos encarar daqui para frente no mundo inteiro: longas estiagens, inundações, tempestades, ondas de calor, furacões etc. “A circulação geral da atmosfera responde de forma extrema ao aumento de temperatura, causando eventos extremos também”, diz Tércio Ambrizzi.

Mas o assunto do momento é o frio, né? A garotada do sul se esbaldou com a neve, mas as temperaturas – que chegaram a baixar do zero em 75 cidades gaúchas – causaram prejuízos no campo. Isso depois de a região ser castigada por uma seca inclemente. A coisa só não ficou mais feia porque os agricultores locais combateram frio com frio: molharam as lavouras, para congelá-las. Assim como o calor pode esfriar, frio demais queima; congeladas, elas ficam mais protegidas. É o princípio dos iglus, que são feitos de gelo: água congelada atinge 0°C, temperatura superior à do ambiente – e, acreditem, faz uma diferença danada enfrentar 0°C ou -14°C.

Chegou a hora de usar tudo o que aprendemos desde a Revolução Industrial para sair dessa fria.

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A torneira está secando

A torneira está secando

A imensidão do mar dá a impressão de que a água é recurso ilimitado; afinal, ela cobre 70% do planeta. Mas a ilustração deste texto, baseada num modelo criado por pesquisadores do Serviço Geológico dos EUA, nos dá a real dimensão de sua finitude. A bolha azul maior representa toda água do mundo, seja doce ou salgada, líquida ou congelada, subterrânea ou à flor da terra. Ela tem um diâmetro nove vezes menor que a parte sólida. A outra bolha corresponde a toda água doce que temos. Seu diâmetro é de 272,8 quilômetros, 46 vezes menor que o da Terra. O planeta azul, como se vê, não é tão azul assim na prática.

Há ainda uma terceira bolha, que equivale a toda água disponível na superfície terrestre para o consumo, como rios e lagos. Mas ela é tão pequena diante do tamanho da Terra que precisaríamos de uma lupa para enxergá-la: são apenas 56 quilômetros de diâmetro – 226 vezes menor que o do planeta. Parece pouco, não parece? E é, alertam os pesquisadores. Para piorar, 40% das reservas hídricas da Terra podem desaparecer até 2030, segundo a ONG WaterResources. Repetindo: 2030. Daqui a 9 anos. Adivinhem quem está por trás desse embrulho? Acertou quem pensou nas mudanças climáticas.

O Brasil detém 13% de toda a água doce e 20% das reservas subterrâneas (chamadas aquíferos) do mundo. Ainda assim, o país enfrenta a maior crise hídrica dos últimos 90 anos: o fantasma do racionamento de energia volta a nos assombrar, duas décadas depois do anterior. A maior hidrelétrica brasileira, a Itaipu Binacional, que atende cerca de 10% da população, teve em 2021 a menor geração de energia dos últimos 27 anos e já precisou desligar oito de suas 20 turbinas. Na vizinha Argentina, a seca dos rios Paraguai, Paraná e Iguaçu, a maior em 77 anos, levou o governo a decretar emergência hídrica por 180 dias.

A falta de chuvas – que é a mais grave desde 1931 – levou o Operador Nacional do Sistema (ONS) a divulgar uma nota técnica na semana passada alertando para a dificuldade de atender a demanda de energia do país “com o esgotamento de praticamente todos os recursos no mês de novembro”. Quatro dias depois, o governo federal publicou uma chamada pública para contratar usinas térmicas como uma alternativa para a escassez de água nos reservatórios das hidrelétricas, que ainda respondem por 63% da geração de energia no Brasil.

A crise hídrica também vem provocando impactos na economia brasileira, com reflexos no aumento da inflação e, sobretudo, perda de produção rural e prejuízos na agricultura, que consome mais de 70% da água doce do Brasil – e desperdiça de 60% a 80% desse total por usar métodos de irrigação inadequados. A safra de milho, por exemplo, apesar de ter aumentado em 7% a área cultivada em 2021, deve cair 6% em relação a 2020, informa a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A mesma tendência deve se confirmar em outras culturas, como o feijão, a laranja, o café e também na pecuária.

E o aumento dos preços dos alimentos e da inflação não são os únicos impactos para o brasileiro, que está sentindo no bolso o preço dessa crise. Em junho, a Agência Nacional de Energia Elétrica aprovou um reajuste de 52% na bandeira tarifária vermelha, para custear o funcionamento de usinas térmicas, mais caras e poluentes. Mesmo assim, especialistas não descartam a possibilidade de um novo aumento em 2022, diante das previsões de chuvas abaixo da média e reservatórios secos. Especialmente em se mantendo os níveis de desperdício na distribuição de água no Brasil, onde 39% do que se produz é perdido em vazamentos e furtos na distribuição, segundo o Instituto Trata Brasil.

Se a geração de eletricidade está comprometida, para muitos brasileiros falta também o básico: água na torneira e saneamento. No Brasil, mais de 16% da população ainda não têm acesso a água tratada e cerca de 46% não contam com os serviços de coleta e tratamento de esgoto – mais de 100 milhões de pessoas. A baixíssima cobertura do saneamento básico, sobretudo em cidades da região Norte, onde apenas 57% da população têm acesso à rede de água e pouco mais de 10% têm o esgoto coletado, se reflete também na incidência de doenças como diarreia e infecções intestinais, que estão entre as principais causas de morte de crianças na região. Uma verdadeira tragédia brasileira. E, segundo a Organização Mundial de Saúde, para cada dólar investido em saneamento básico, deixa-se de gastar quatro com saúde pública.

E isso não é uma exclusividade nossa: em todo o mundo, 1,2 bilhão de pessoas (35% da população) não tem pleno acesso a água tratada e outras 2,1 bilhões não têm água potável em suas casas. O WaterResourcesGroup estima que, anualmente, cerca de 829 mil pessoas morrem de diarreia provocada pelo consumo de água não potável, ausência de saneamento básico e higiene inadequada em todo o mundo, sendo 300 mil delas crianças menores de 5 anos.

Com isso, a responsabilidade do governo brasileiro sobre a gestão de nossos recursos hídricos passa a ter uma relevância ainda maior: afinal, temos condições favoráveis para assumir um papel de liderança no enfrentamento à crise climática global. Só nos falta um líder.

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