O direito não é um privilégio

O direito não é um privilégio

A saúde deveria ser um direito de todos, jamais um privilégio de alguns. Não se trata de uma questão meramente humanitária – o que, cá entre nós, já deveria ser suficiente –, mas que diz respeito também à sobrevivência da espécie. A variante ômicron veio nos lembrar que negligenciar o outro pode derivar em consequências para todos: os países ricos cuidaram de si mesmos, deixando os menos abastados à própria sorte; o coronavírus se aproveitou dessa brecha aberta pelo egoísmo para contra-atacar. Levar vantagem pode ser uma desvantagem. Não à toa, também, o seu direito termina onde começa o de outrem.  Se você botar fogo na sua casa, a fumaça vai sufocar seu vizinho – e vice-versa.

Isso tudo devia ser o óbvio ululante, mas andam confundindo, convenientemente, direito e privilégio. Esses dois conceitos estarão em jogo nas votações dos Projetos de Lei (PLs) 2633/2020 e 2159/2021, que a bancada ruralista do Senado quer nos empurrar goela abaixo o quanto antes. O direito à terra no Brasil é mutável, parece seguir os preceitos da alquimia. Agora, os infames PL da Grilagem e PL da Boiada, como ficaram conhecidos, podem transmutar as prerrogativas de muitos em regalias para poucos. Os mais prejudicados, para variar, serão indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais; mas vai sobrar um quinhão considerável para o resto da população brasileira também. O nosso direito à informação, aliás, vem sendo atropelado pelo privilégio do Executivo de impor sigilo de até cem anos a seus atos mais questionáveis.

Pode invadir que o governo agradece. Não há meias-palavras: o PL da Grilagem estimula o crime ao não só anistiar, como beneficiar – de mais de uma forma – o infrator. O texto autoriza a privatização de terras públicas invadidas e desmatadas até 2017. Detalhe: sem licitação. O projeto também tem uma brecha que permitiria legalizar invasões posteriores à data fixada por lei e até prevê benefícios financeiros para os grileiros. Que regalia, não? Quando se transforma em bem o fruto de um crime você cria um privilégio, mas também abre uma jurisprudência. O feitiço pode virar contra o feiticeiro. Já o PL 2633/2020 flexibiliza de forma para lá de temerárias as regras de licenciamento ambiental. E já sabemos que sem a Amazônia o Brasil vai mergulhar no caos climático.

Se virar lei, será muito mais fácil construir novas Belos Montes, barragens como as de Mariana e Brumadinho, e estradas floresta adentro, um tapete de boas-vindas para a devastação. A gente sempre volta a Belo Monte para que ao menos de exemplo ela sirva. Para privilegiar algumas poucas empresas e interesses, direitos foram atropelados – incluindo o de consentimento livre, prévio e informado, conforme determina a Convenção 169 da OIT dos povos originários da região – e centenas de milhares de pessoas, prejudicadas. Demorou – muita gente quer ser dono do bem mais precioso da Terra –, mas em 2010 a ONU conseguiu reconhecer o direito à água potável como um direito humano e o Senado aprovou em março deste ano uma proposta de emenda à Constituição (PEC 4/218) que inclui entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão o seu acesso. A PEC agora espera sentada pela sede de justiça social da Câmara.

Mas voltando ao nosso tema inicial, a saúde: a Constituição determina que é dever do Estado cuidar do bem-estar do cidadão. No caso dos indígenas, ainda existe o Decreto 3.156/1998, para lhes dedicar atenção especial, dada a sua vulnerabilidade. Contudo, somente 44% deles foram vacinados contra a Covid-19 – enquanto entre a população em geral essa porcentagem chega a 65% –, e moradores de aldeias inteiras em terras Munduruku e Yanomâmi estão contaminados por mercúrio. Assim como os indígenas, os quilombolas também tiveram que recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que recebessem cuidados do governo durante a pandemia – é uma população especialmente vulnerável à doença –, mas a taxa de vacinação entre eles é de 49,75%.

Ainda há quem chame a política de cotas de privilégio. E entre estes, existem os que deixam de lado a coerência e querem o que consideram uma regalia para si: garimpeiros e pecuaristas estão se arvorando povos tradicionais, de olho grande nos pequenos direitos conquistados por eles. Como se sabe, pecuaristas são vítimas da violência e do preconceito de boa parte da sociedade, têm suas terras constantemente invadidas, praticam uma cultura ancestral, nunca receberam benesses do Estado e sempre foram perseguidos por seu aparelho de repressão. Só que não.

O direito de ir e vir é universal, e os indígenas o manifestam indo a Brasília para defender seus interesses, por seus próprios meios; já garimpeiros que invadiram e poluíram suas terras já foram lá até de carona em avião da FAB, a convite do ministro do Meio Ambiente. Esse tipo de mordomia não tem nada de tradicional. Quem é mesmo privilegiado?

 

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Sarna na Cabeça do Cachorro

Sarna na Cabeça do Cachorro

Há alguns dias, a Universidade Federal de Alagoas (Ufal) divulgou um estudo associando o uso indiscriminado de ivermectina ao risco de surto de sarna — infestação humana pelo ácaro. Como se sabe, o próprio governo federal receitava a utilização do medicamento contra a Covid-19 e o distribuía à população. O negacionismo tem razões que a sua própria falta de razão desconhece.

Infestações de invasores em terras indígenas também costumam ser precedidas por sintomas que vêm do Executivo e de seus aliados no Congresso. Senado e Câmara ameaçam votar a qualquer momento os PLs do Licenciamento Ambiental e da Grilagem, além de tentar mudar o Código de Mineração; enquanto isso, Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), dá o seu aval a projetos de pesquisa de ouro na Cabeça do Cachorro — como é conhecida a região no extremo noroeste do Amazonas.

Querem botar um outro tipo de sarna na Cabeça do Cachorro. A diferença é que uma infestação do ácaro é um efeito colateral indesejado, enquanto o parasitismo de terras indígenas parece ser claro no resultado pretendido.

Na prática, essas ações são vistas como um sinal verde pelos aventureiros de sempre — entre os pedidos autorizados por Heleno há os de empresas autuadas pelo Ibama. O ex-general também foi, durante seis anos, o braço-direito de Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), condenado a 30 anos e 11 meses de prisão no fim do mês passado por corrupção e organização criminosa. No mínimo, pode-se concluir que o chefão do GSI, aquele que deveria ser o homem mais bem-informado da República, deixa passar muita coisa debaixo de seu nariz.

Augusto Heleno deveria saber, por exemplo, que os indígenas daquela região não querem ouro e muito menos sarna para se coçar. O preço a pagar é muito alto: Yanomami e Munduruku carregam mercúrio no sangue por causa do garimpo, e o ouro também atrai o crime organizado. Com 109.181.245 km² de área, São Gabriel da Cachoeira é o terceiro maior município brasileiro em tamanho — é maior, inclusive, do que estados como Rio de Janeiro e Santa Catarina, e países como Coreia do Sul, Hungria e Portugal. A Cabeça do Cachorro, onde está localizado, é uma das áreas mais preservadas da Amazônia. Não por acaso, já que é o lar de 23 diferentes povos, que vivem em mais de 700 comunidades, e a cada dez de seus 47.031 habitantes, nove são indígenas. São mais de 40 mil guardiões.

O atual ministro do GSI talvez não saiba, mas os municípios que mais desmatam na Amazônia são os menos desenvolvidos da região, segundo um estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), publicado no último dia 6. Como é bem informada, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que representa as 23 etnias da região, tem entre seus principais objetivos o incentivo a programas de desenvolvimento sustentável, voltados para a comercialização de produtos nativos e o turismo. O outro é o monitoramento ambiental e climático da Bacia do Rio Negro — que, ao se juntar ao Solimões, forma o Amazonas. É uma responsabilidade do tamanho do maior rio do mundo.

O ex-general é igualmente conhecido por sua falta de trato com minorias e povos tradicionais. No ano passado, no ápice da pandemia, ordenou o despejo de 792 famílias (mais de 2 mil pessoas) de 27 comunidades quilombolas em Alcântara, no Maranhão, para ampliação da base espacial local. Foi também comandante militar da Amazônia e um crítico feroz da política indigenista adotada pelo país no pós-democratização.

É curioso pensar que o maior temor dos militares, diante do reconhecimento dos direitos dos indígenas às suas terras pela Constituição de 1988, era comprometer a integridade do território nacional. Por isso, o artigo 20 diz que elas são bens da União e que não podem ser vendidas. O próprio presidente Bolsonaro, ainda deputado, tentou reverter a homologação da Terra Indígena Yanomami. A alegação é que, sendo área de fronteira, facilitaria invasões. A Cabeça do Cachorro é colada com Colômbia e Venezuela. Heleno concedeu as autorizações de pesquisa exercendo o outro cargo que ocupa no Executivo, o de secretário-executivo do Conselho de Defesa, órgão colegiado que aconselha o presidente em assuntos de soberania e defesa. Não fica uma pulga atrás da orelha?

 

Observação: O texto foi originalmente publicado citando o surto de sarna em Pernambuco, referência que foi retirada uma hora depois. A Secretaria Executiva de Vigilância em Saúde do Recife divulgou, no mesmo dia, que investiga se o motivo para a infestação local pode ser o contato com um tipo de mariposa. O estudo da Ufal faz, de fato, relação entre o uso da ivermectina e a escabiose, mas não se pode afirmar que é o caso do exemplo recente de Pernambuco.  

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Esticando a corda

Esticando a corda

Há mais de uma forma de cometer genocídio; às vezes, nem é questão de matar: basta não deixar nascer. “A gente não quer ter mais filhos, porque temos mercúrio no sangue. Nós estamos contaminadas”, lamentou na última sexta-feira a cineasta indígena Aldira Akai Munduruku. A invasão de balsas no Rio Madeira na semana passada é uma imagem impactante, mas somente a ponta do iceberg. O garimpo em terras indígenas (TIs), por exemplo, aumentou 500% em dez anos. E, segundo estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), todos os moradores da TI Sawré Muybu, no Pará, foram afetados, sendo que 60% deles têm taxas do metal no organismo acima do limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O mercúrio passa de mãe para filho e pode levar à malformação do feto ou até à morte. Um extermínio sem violência aparente. Lento, invisível, doloroso, cruel.

O garimpo ilegal na TI Yanomami também vem aumentando em velocidade assustadora desde o início de 2021. Só no primeiro trimestre o desmatamento foi o equivalente a cerca de 10% de toda a destruição da última década. A continuar nessa batida, este ano pode vir abaixo o correspondente à metade de toda área desmatada até 2019. No mês passado, duas crianças morreram, sugadas por uma draga de mineração. Um estudo realizado pela Fiocruz constatou presença de mercúrio em 56% das mulheres e crianças Yanomami da região de Maturacá, no Amazonas. A fundação foi proibida pela Funai de fazer uma nova pesquisa este mês.

A Constituição tem bem mais que quatro linhas e quais o governo atual escolheu respeitar é um grande mistério. Só de ações de inconstitucionalidade ajuizadas por partidos políticos no Supremo Tribunal Federal (STF), Jair Bolsonaro já passou dos 180 em dois anos de mandato — deixando na poeira seus antecessores, Michel Temer , Dilma Rousseff  e Luiz Inácio Lula da Silva que, juntos, responderam por 144. Com seus 250 artigos, a Cidadã é a segunda maior do mundo, perdendo apenas para a indiana. O que o presidente não tenta mudar, por meio de medidas provisórias e decretos, ele simplesmente ignora. Os direitos específicos dos povos originários mereceram um capítulo à parte (“Dos Índios”), que ocupa pouco mais de dez linhas.

É negligência que chama?

Não vamos esquecer que foi preciso que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrasse com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF para que o governo ao menos simulasse proteger os povos originários durante a pandemia de Covid-19. Tá lá na Constituição, no Decreto 3.156, de 27 de agosto de 1998: “a atenção à saúde indígena é dever da União”. Mesmo sob a ameaça do novo coronavírus, o orçamento para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) despencou, passando de R$ 1,1 milhão em 2018 para R$ 494 mil em 2019 e para R$ 200 mil no ano passado. É negligência que chama?

Enquanto tenta passar no Congresso o Projeto de Lei 191/20, que regulamentaria a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em TIs, Bolsonaro faz vista grossa para o artigo 231, que diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Por sua vez, as ações e omissões do governo atraem para as terras indígenas toda sorte de aventureiro — até mesmo a milícia e o narcotráfico podem estar envolvidos. Todos os males das grandes cidades parecem estar migrando para a floresta. ​​ Até quando vão continuar a esticar a corda do negacionismo? Além de milhares de satélites no espaço, existe uma coisa chamada Lei de Acesso à Informação. Será que depois do vexame da COP o governo brasileiro ainda não se tocou que não há mais como esconder cadáveres no armário?

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Sitiados

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Dizem que o mundo está menor. De fato, a tecnologia aproximou as pessoas e encurtou as distâncias. Mas será que todo mundo quer fazer parte dessa aldeia global? E quando essa impressão de encolhimento se torna realidade? O mundo dos últimos Piripkura está diminuindo a olhos vistos. Isso não é uma metáfora: Baita e Tamandua, tio e sobrinho que vivem isolados na Amazônia mato-grossense, viram invasores avançarem mais de 10 quilômetros para dentro de seu território nos últimos dois anos. Depois que o último Piripkura se for, terá deixado o derradeiro rastro de seu povo, perseguido até o fim, no planeta. Que seja em seu solo ancestral. É o mínimo. Mas até esse direito pode lhe ser negado. Além da questão humanitária, a Terra Indígena (TI) Piripkura fica na entrada da Amazônia. Sem ela, escancara-se mais uma porteira para a aniquilação da floresta.

A Terra Indígena (TI) Piripkura ainda não foi homologada e está protegida somente por uma portaria da Funai, que vence em março de 2022. Baita e Tamandua não lutam sozinhos. O tema da redação do Enem deste ano, “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, pode ser desenvolvido a partir das conquistas do movimento indígena nas últimas três décadas. Ao garantirem os mesmos direitos e deveres que qualquer cidadão brasileiro, na Constituição de 1988, os povos originários se apropriaram e estão fazendo bom uso deles — sem deixarem de afirmar sua origem e cultura, muito pelo contrário. Sua união vem dando um novo significado à palavra cidadania. Assim como uma parcela da população indígena assimilou as novas tecnologias, usando-as para se organizar e ampliar o alcance e a pluralidade de suas vozes, e defender inclusive aqueles que optaram por se manter isolados. Não fossem elas, dificilmente ficaríamos sabendo do drama dos últimos Piripkura.

Quantos povos, como os Piripkura, foram extintos sem que soubéssemos? Quantas tragédias parecidas ainda podemos evitar? No Brasil, há referência de pelo menos 114 grupos isolados, de acordo com a Funai. Outras TIs com presença de isolados também terão sua proteção expirada em breve: a Pirititi, em Roraima, (em 5 de dezembro), a Jacareúba/Katawixi, no Amazonas (8 de dezembro) e a Ituna/Itatá, no Pará, (9 de janeiro de 2022). E o pior é que eles são os que mais inspiram cuidados no momento, mas os indígenas como um todo estão sob ataque cerrado. Segundo o recém-lançado “Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2020”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), números preocupantes dispararam entre 2019 e o ano passado: os assassinatos aumentaram em 61% (182 e 113); as invasões, de 256 para 263 e conflitos relativos a direitos territoriais aumentaram 174%.

Essa investida vem se intensificando. Nas últimas semanas, houve casos que envolveram até mesmo forças do Estado. A mais grave aconteceu no último dia 16, quando pelo menos seis indígenas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, foram feridos durante uma ação da Polícia Militar e do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope). Por ordem da Justiça estadual, os policiais estiveram na aldeia Tabatinga para destruir postos de vigilância construídos pelos indígenas para monitorar seu território. O pedido partiu da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima, entidade que defende a abertura das TIs para a mineração. Dois agravantes: a PM não tinha mandato e só a Polícia Federal pode atuar em terras demarcadas.

Os últimos dados sobre o desmatamento na Amazônia e a desconfiança de que já eram conhecidos pelo Ministério do Meio Ambiente e foram omitidos na COP26 minaram ainda mais boa fé internacional no governo brasileiro. Não à toa, as lideranças indígenas estiveram o evento inteiro sob os holofotes, enquanto o ministro Joaquim Leite cometia gafes dignas de seu antecessor, Ricardo Salles. Essa visibilidade acabou gerando reações violentas: após chamar atenção ao fazer um forte discurso na abertura da conferência, Txai Suruí e seus pais, que vivem em Rondônia, foram ameaçados de morte. No Pará, Alessandra Munduruku teve a casa invadida — não é a primeira vez que a liderança, que ganhou o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, sofre um atentado do gênero. E Glicélia Tupinambá denunciou duas situações de risco após voltar para a sua região, na Serra do Padeiro (BA). É a reação inconformada e covarde de uma parcela da sociedade que pensa pequeno, porque não respeita direitos adquiridos pela Constituição e acaba jogando contra o país. Sejamos grandes como o oceano.

 

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Epidemia de daltonismo

Epidemia de daltonismo

Estão acusando o Reino Unido de querer reescrever o Acordo de Paris. Argumentam que o país quer sair bem na foto da COP26 enquanto os outros queimam seus filmes. Motivações políticas à parte, não era essa a ideia? Rever os números do tratado criado em 2015, diante dos números estarrecedores do último relatório do IPCC? Então por que os líderes globais continuaram agindo como se pudessem resolver problemas os empurrando com a barriga borda do planeta afora? Ou numa fé cega de que a ciência poderá adiar o fim indefinidamente? — fala-se de máquinas fantásticas que poderiam sugar o CO₂ da atmosfera e até de ressuscitar a ideia de construir mais usinas nucleares. Não é terraplanismo. Eles conhecem as causas e as consequências.

O IPCC alertou que a meta acordada para cortar pela metade as emissões globais de gases de efeito estufa até 2030 não só eram insuficientes, como as aumentariam em 16%. Ou seja, precisávamos reduzi-las drasticamente. Porém, as novas metas divulgadas em Glasgow as aumentarão em 13,7%, conforme adverte a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC). Ou seja, mesmo que sejam cumpridas, só vão fazer o problema crescer um tiquinho a menos. Não faz cosquinha nem na consciência.

O grupo de pesquisa Climate Action Tracker (CAT, na sigla em inglês) já havia alertado que se todos os planos para 2030 saíssem do papel, a temperatura subiria mais 2,4°C até 2100. Como não saíram até agora, estamos a caminho dos 2,7ºC – mas pode chamar de fim do mundo, como o conhecemos. Caso os termômetros ultrapassem o 1,5°C , o número de pessoas submetidas a estresse térmico extremo – uma mistura de calor e umidade que pode levar à morte – pode aumentar até 15 vezes. Cerca de 1 bilhão será severamente impactado pelo calor caso a temperatura média suba mais 2ºC. O Brasil será um dos países mais afetados.

Mudou o titular, mas o Ministério do Meio Ambiente ainda acredita que a COP é festa do peão de boiadeiro. No pavilhão oficial do país, Joaquim Leite recebia delegações estrangeiras sob as bênçãos da Confederação Nacional da Agricultura, que pautou uma vasta programação de seminários sobre o tema. “A agricultura brasileira com certeza será parte da solução”, dizia o ministro. Para o seu azar, um estudo internacional divulgado no evento, com base em dados de 2019 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mostrou que a pegada de carbono da atividade cresceu 17% nos últimos 30 anos e que, no quesito, o Brasil só fica atrás de China e Índia – países com populações quase sete vezes maiores que a nossa.

A agropecuária responde por 31% das emissões globais. A causa principal é o desmatamento – para abertura de pasto e lavoura. O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 877 km² sob alerta, um aumento de 5% em relação a 2020 e o recorde para o mês de outubro. “Onde existe muita floresta também existe muita pobreza”, disse o ministro Joaquim Leite, parecendo querer competir com as frases infelizes de seu antecessor no cargo. Diversos estudos desmentem sua afirmação: são justamente as áreas desmatadas que concentram os maiores bolsões de miséria. “Onde existe floresta, existe riqueza. Sem a Amazônia, o regime de chuva no Brasil teria acabado. É da floresta que você pode tirar frutos, fármacos, cosméticos, uma indústria de tecnologia, de pesquisa”, disse o secretário-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini.

“Nos envergonha muito um ministro de Estado compreender a Amazônia deste jeito, principalmente perante à Conferência da ONU sobre o clima. O ministro Joaquim Leite precisa conhecer a Amazônia brasileira, seus valores e suas riquezas, ele está no lugar errado para tratar de um bem tão precioso para o mundo e para a vida”, indignou-se Francisco Piyãko, coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ).

É tão óbvio que dá até para acreditar que vivemos numa epidemia de daltonismo.

 

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