agosto 2023 | Amazônia, Climate change, Direitos indígenas, Indigenous rights
*Por Toya Manchineri
Se estamos juntos nessa luta, é preciso que todos façam a sua parte, o quanto antes. E isso inclui não só assumir – e cumprir – compromissos ambientais e climáticos, como a responsabilidade por financiar um movimento global por justiça climática. Queremos participar das decisões que dizem respeito a nós, ao Brasil e o resto do mundo, e queremos autonomia. Nossa experiência, a Ciência e a História nos dão aval para tanto. Quantas COPs mais teremos que esperar para que todos façam a sua parte? A contagem regressiva para o abismo não para. Se a Amazônia for destruída, a distância não irá protegê-los. É hora de união e ação!
Cada violência praticada contra nós é mais um passo que a Humanidade dá para o seu fim. Quem diz isso é a Ciência: não só os países amazônicos correm o risco de virar cinza; o planeta inteiro vai queimar caso a floresta deixe de existir. E não haverá Amazônia sem nós, indígenas; porque nós somos a Amazônia. Sua terra e biodiversidade são nossos corpos, seus rios correm em nossas veias. Nossos ancestrais não só a preservaram por milênios, como ajudaram a cultivá-la. Vivemos nela e por ela. Dona da maior reserva de água doce do planeta, ela é, também, uma barreira natural contra o avanço das mudanças climáticas.
Representantes de Brasil, Venezuela, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Guiana e Suriname, que formam a Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA), se reuniram em Belém para discutir o futuro da floresta na Cúpula da Amazônia. Temas como preservação, economia e transição ecológica estiveram na pauta. Ou seja, tudo o que praticamos muito antes de o colonizador nos impor fronteiras e conceitos. Só que muita coisa importante ficou de fora da Declaração de Belém, sua carta de intenções. Entre elas, dois pontos fundamentais: o compromisso de desmatamento zero até 2030, uma sugestão brasileira; e o fim da exploração de petróleo na região, que partiu do governo colombiano.
Pelo jeito, o Brasil ainda não desistiu de perfurar a foz do Rio Amazonas em busca de petróleo. Nós, Manchineri, acreditamos que cada rio, montanha, animal, espírito, planta ou ser humano é um mundo próprio ligado ao todo. Este pensamento é comum à maioria dos povos originários. Por isso, mesmo que eu pertença a um povo que vive no Acre, me preocupo com o que acontece a milhares de quilômetros de distância de minha casa, na fronteira do Amapá com o Pará.
Nós, povos indígenas, somos a transição ecológica natural. Somamos 5% da população do planeta e protegemos 80% de sua biodiversidade. A despeito dos alertas do IPCC da ONU, cada Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) parece patinar no mesmo lugar. Pensando nisso, também nos reunimos em Belém, na Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia, para criar uma estratégia de comunicação e elaborar uma pauta comum de reivindicações e sugestões concretas, que será apresentada na próxima COP, em Dubai.
Foram cerca de 1.500 representantes de povos – do Brasil e países vizinhos –, que vivem na Bacia Amazônica. Elaboramos um documento listando nossas reivindicações mais urgentes, que o leitor pode conhecer em sua totalidade aqui. Posso assegurar que é do seu interesse também. Entre nós, a unanimidade é que nossos direitos territoriais sejam definitivamente assegurados.
A ganância tem imaginação ilimitada. O “marco temporal” é apenas sua última invenção; já, já, inventam outra. E este foi outro assunto que ficou de fora das discussões da Cúpula da Amazônia. Nossas terras são as principais barreiras ao desmatamento – só 1% da vegetação nativa foi derrubada dentro delas nos últimos 30 anos no Brasil – e somos os primeiros a sofrer com os efeitos a injustiça climática: municípios indígenas na Amazônia são os mais afetados por enchentes, secas e deslizamento de terra. Mas as consequências estão chegando a todo mundo, indistintamente.
Se querem sobreviver, não deixem que nos matem. Não morremos apenas quando nossas almas deixam nossos corpos, mas também quando somos arrancados de nossas terras. Trazemos impressos em nossos corpos e almas as marcas da violência diária e secular. Se quiserem usar nossas terras, respeitem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT): consultem-nos e peçam nossa permissão antes. Nossa decisão estará sempre embasada na garantia do bem-comum, não em nossos interesses pessoais. Nossos ancestrais e nossa consciência nos guiam.
A Terra é a casa de todos os povos; logo, defendê-la não é exclusividade nossa. É preciso, por exemplo, que os europeus entendam que é preciso proteger a Amazônia de dentro de suas fronteiras também. Boa parte do ouro extraído de nossa casa ilegalmente, que envenena nossos rios, e da madeira contrabandeada tem a União Europeia como destino.
Os maiores poluidores do planeta são China e EUA; por quanto tempo eles vão continuar adiando suas ações? Se estamos juntos nessa luta, é preciso que todos façam a sua parte, o quanto antes. E isso inclui não só assumir – e cumprir – compromissos ambientais e climáticos, como a responsabilidade por financiar um movimento global por justiça climática. Queremos participar das decisões que dizem respeito a nós, ao Brasil e o resto do mundo, e queremos autonomia. Nossa experiência, a Ciência e a História nos dão aval para tanto. Quantas COPs mais teremos que esperar para que todos façam a sua parte? A contagem regressiva para o abismo não para. Se a Amazônia for destruída, a distância não irá protegê-los. É hora de união e ação!
*Toya Manchineri é Coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
julho 2023 | Uncategorized
Quando as caravelas de Cabral chegaram aqui, em 1500, já tinha gente morando há pelo menos 10.500 anos. Agorinha, em maio, foi descoberto um fóssil humano em Serranópolis, no sul de Goiás, com cerca de 12 mil anos; e tem uns e outros que têm o descaramento de exigir dos povos originários que provem que ocupavam suas terras ancestrais em 5 de outubro de 1988. Longe de nós passar pano para o colonizador escravagista e genocida ou para ditadores sanguinários, mas até os portugueses e os militares reconheciam a posse dos indígenas de suas terras, e criaram leis para garanti-la – se as cumpriam ou não, é outro papo. Logo, é vergonhoso que justamente no período mais democrático de nossa História, em pleno século XXI, quando até os animais dito irracionais conquistaram os seus direitos, tenha gente exigindo comprovante de residência deles.
No Congresso Nacional, exumaram este ano – já que o seu autor, um ex-deputado e ex-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, morreu em 2013 – o Projeto de Lei (PL) 490, de 2007, que, entre outras barbaridades, estabelece o tal de “marco temporal”, que obriga os indígenas a provarem que ocupavam seu território ancestral na data da promulgação da atual Constituição. Se foram expulsos de lá na base da bordoada, o problema é deles; uma inversão do Código Penal, que diz que cabe ao requerente – leia-se invasor – o ônus da prova. O fato de que, até aquela data, esses povos eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar com ações na Justiça, é um mero inconveniente. O PL foi aprovado na Câmara Federal com a velocidade do RBR de Max Verstappen, bicampeão da Fórmula-1. Enquanto isso, o julgamento sobre a tese jurídica do marco temporal segue em marcha lenta no Supremo Tribunal Federal (STF).
Hora da aula de História: quiçá entusiasmado por ter sido durante o seu reinado que Portugal se livrou do jugo espanhol, D. Afonso VI, vulgo O Vitorioso, editou, em 1º de abril de 1680, o Alvará Régio, que reconheceu os indígenas como “primários e naturais senhores” de suas terras, além de proibir sua remoção involuntária. Naquele ano, também nasceu o temível pirata Edward Teach, cognome Barba Negra. Assim como o corsário inglês, os deputados que votaram a favor do PL 490 não demonstraram o menor respeito pela propriedade alheia; em vez de perna, têm cara-de-pau e olho grande, não de vidro.
O Regimento das Missões foi baixado em 1686 por D. Pedro II, irmão e sucessor d’O Vitorioso. Ele era um golpista nato, pois depôs Afonso, mas manteve e ampliou sua política em relação aos povos originários: garantiu-lhes o direito de se recusarem a deixar suas terras e o seu uso exclusivo, proibindo que homens “brancos e mestiços”, exceto missionários, morassem nas aldeias. Ok, ele queria submetê-los ao cristianismo; porém, os primeiros invasores que tomaram o Brasil em nome da coroa portuguesa não deixaram de registar no papel as posses de seus habitantes originais. Dados a golpes como D. Pedro II, os parlamentares da bancada ruralista acreditam que têm um rei na barriga, e que não devem satisfação a ninguém, por considerarem o povo, a quem deveriam servir, seus súditos.
Eminência parda do Reino de Portugal de 1750 a 1777, o Marquês de Pombal também foi o maior representante do Iluminismo português. Enquanto foi Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino (o equivalente hoje ao cargo de Primeiro-Ministro) editou duas leis que garantiam os direitos dos povos originários. A de 1755 determinava que eles tinham “inteiro domínio e pacífica posse das terras (…) para gozarem delas per si e todos os seus herdeiros” – que estão aí até hoje – e o Diretório Pombalino do Maranhão e Grão-Pará, de 1758, determinou que “o direito dos índios nas povoações elevadas a vilas prevalece sobre o de outros moradores”, pois eles “são os primários e naturais senhores das mesmas terras”. Sebastião José de Carvalho e Melo, seu nome de batismo, tinha outras intenções, é verdade: também queria civilizar (sic) os indígenas; mas essa é outra história.
Fala-se muito que o PL 490, que hoje tramita no Senado sob o número 2.903, tem como objetivo-mor a chamada “segurança jurídica”, que traria paz ao campo. Porém, pouco antes de D. Pedro I dar o Grito do Ipiranga, a Resolução 76 da Mesa de Desembargo do Paço, editada em 17 de julho de 1822, aboliu o regime de sesmarias – que destinava terras à agricultura, inclusive as que já tinham dono – responsável por um sem-número de conflitos entre indígenas e colonos. Menos de duas décadas depois, já durante o Brasil Império, D. Pedro II, baixou, em 1850, a Lei das Terras n.601, que determinava que, em relação aos territórios de ocupação originária, “não há posse a legitimar, há domínio a reconhecer”. Simples assim. O Decreto 1.318, editado quatro anos depois, ainda garantia a posse dos indígenas às aldeias estabelecidas fora de suas terras tradicionais, com direito a títulos de propriedade. Mesmo que fosse da boca pra fora, já fomos um pouco melhores, né?
Na infância da República, em 1910, durante o governo de Nilo Peçanha, foi aprovado o Decreto 8.072, que criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, depois Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Além disso, determinou a restituição das terras roubadas dos indígenas. A partir de nossa terceira Constituição, em 1934, todas as seguintes procuravam resguardar os direitos dos povos originários, das mais diversas formas. Mesmo a infame Carta Magna de 1967, que nos foi imposta por ditadores golpistas e extinguiu o SPI, no seu artigo 198, determinava a anulação de ações na Justiça que tivessem “por objeto o domínio, a posse ou a ocupação” das terras indígenas, sem direito a indenização para os ocupantes.
Em 1973, ainda nos anos de chumbo, foi criada a Lei 6.001, conhecida como Estatuto do Índio, que estipulou regras para demarcações e determinou que todas as terras dos indígenas estivessem demarcadas até 1978 – o que, como sabemos, não aconteceu. É verdade que a ditadura assassinou cerca de 8 mil deles, segundo a Comissão da Verdade; mas em plena democracia testemunhamos o massacre Yanomami e as mortes de mais de mil indígenas por Covid-19, devido à omissão criminosa do governo anterior – aquele que não demarcou nem um centímetro de terra para eles.
A Constituição de 1988 trouxe grandes avanços para a causa dos indígenas. Além de passar a considerá-los cidadãos brasileiros como outros quaisquer, ela também garantiu – ou deveria ter garantido – definitivamente seus direitos territoriais. Mas, assim como aconteceu com o Estatuto do Índio, o prazo determinado pelo Artigo 67 dos seus Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz que “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”, não foi cumprido. E isso abriu um flanco perigoso, que agora pode ser usado contra eles. Imagine se criassem uma lei para lhe fazer Justiça e ela se tornasse sua maior desgraça?
Congressistas dizem que há “muita terra para pouco índio” e que eles são “um entrave para o desenvolvimento do país”. Não fazem isso por falta de informação: latifundiários que invadiram terras indígenas doaram R$ 3,6 milhões para membros da bancada ruralista. Hoje, os Guarani ocupam uma área total de 2.250 km² no Mato Grosso do Sul, o que dá uma densidade demográfica de 27,2 habitantes por quilômetro quadrado, quatro vezes maior que a do estado, que é de 6,8, segundo o IBGE. Outro dado: entre 2000 e 2014, o agronegócio cresceu 41%, enquanto, no mesmo período, foram homologadas 137 terras indígenas, 141 declaradas e 162 identificadas. Os números não mentem, já os políticos…
A gente poderia, mais uma vez, apelar para a racionalidade, falando novamente da importância da preservação do meio ambiente para todos os habitantes deste planeta e do papel fundamental dos povos originários para que isso aconteça; ou simplesmente relembrar que o “marco temporal” é inconstitucional – pode esmiuçar a Constituição de 1988 à vontade que você não vai encontrar nenhuma menção a ele. Mas preferimos apelar para a sua consciência: é uma questão de humanidade, amor ao próximo e Justiça.
julho 2023 | Direitos humanos, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Povos Tradicionais, Protected areas, Quilombola, Quilombolas
O Senado Federal retoma as atividades no dia 1º de agosto com a ameaça de votar o PL 2903, que propõe transformar a tese do “marco temporal” em lei. Um precedente para outras armadilhas, como o PL 1942/2022, considerado uma bomba-relógio plantada no Congresso contra os quilombolas.
Por Biko Rodrigues*
No mês passado, a chamada Abolição da Escravatura completou 135 anos, mas ainda há os que não se conformam com nossa autonomia.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) votou contra a adoção de um “marco temporal” em relação aos territórios quilombolas. “As comunidades quilombolas chegaram ao Brasil em um processo da escravidão. Remeter essa luta histórica a 1988 é deslegitimar todo o processo histórico do país”, declarou, na época, o ministro Luís Roberto Barroso. Além de considerar a tese inconstitucional, a decisão ainda foi ratificada dois anos depois pelo mesmo STF.
Acreditávamos ter exorcizado essa assombração naquela ocasião, mas o Congresso está tentando trazê-la de volta do Além. A bancada ruralista tenta passar um trator chamado projeto de lei (PL) 490/2007 por cima dos direitos de nossos irmãos indígenas —e sabemos que depois tentarão nos atingir.
Se os povos originários, os primeiros habitantes do Brasil, poderão ser obrigados a provar que estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988, imaginem nós, cujos ancestrais só chegaram depois de 1500? Os africanos escravizados vieram para cá contra sua vontade, mas também criaram raízes neste solo, os quilombos.
Há uma bomba-relógio plantada no Congresso contra nós. O PL 1942/2022 determina que só terá a posse definitiva da terra as comunidades quilombolas que a estavam ocupando na data da promulgação da atual Constituição. Detalhe: o autor do projeto tem como prenome Coronel, é do Partido Liberal, do ex-presidente que nos pesa em arrobas, e deputado por Santa Catarina, que só tem menos quilombos reconhecidos (19) que os estados de Rondônia, Roraima, Distrito Federal e Acre —onde o colonizador não se estabeleceu. Em nome de quem ele legisla?
Dizem que o tempo é o senhor da razão, mas “senhor” é uma palavra que causava arrepios em nossos ancestrais, e o tempo corre contra nós.
Existe um precedente perigoso. Da mesma forma que votaram o PL 490 em regime de urgência, podem fazer o mesmo com o 1942. Enquanto isso, os processos de titulação patinam no Incra: desde que conquistamos nossos direitos, há 34 anos, menos de 200 das 6.000 comunidades foram tituladas. Nesse ritmo, só daqui a cerca de 2.000 anos as 1.896 ações em andamento serão concluídas; e ainda há mais 4.000 que sequer iniciaram esse processo.
O que está acontecendo conosco tem nome e sobrenome: racismo fundiário. O marco temporal inverte a lógica judicial; exige de quem é acusado de não ser dono de sua terra comprovar que estava ali, quando o ônus da prova cabe ao acusador. Nos anos 1970/80, a grilagem prosperou como nunca no país, com indígenas e quilombolas sendo expulsos de suas terras sob a mira de armas. Nossas terras também foram comidas pelas beiradas, encolhendo aos poucos. Um exemplo disso é Brasília: a capital federal foi erguida em áreas que pertenciam ao Quilombo de Mesquita.
O PL 1942 ainda prevê a titulação individual dos territórios, não coletiva, como é hoje. Os quilombos são coletivos justamente para resguardar os direitos da coletividade. São inalienáveis, não podem ser vendidos, passam de geração para geração; quando a posse é individual, passa a seguir uma lógica mercadológica da terra. O Brasil precisa se aquilombar.
O país tem compromissos ambientais com o resto do mundo. Hoje, temos 148 quilombos titulados na Amazônia Legal; nos últimos 13 anos, o desmatamento neles foi zero. Quilombos são barreiras de proteção ao verde e ajudam a validar nossa carteira de potência ambiental.
*Biko Rodrigues é coordenador-executivo da Conaq – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
julho 2023 | Climate change, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Mudanças Climáticas
Um bom termômetro para saber se uma festa está acabando é olhar quanto gelo ainda sobrou no freezer. É hora de acender as luzes e tirar a música no planeta Terra: nada menos que quatro recordes seguidos de temperatura média global foram quebrados na semana passada. O ponto alto aconteceu na última quinta-feira (6/7), com 17,23ºC, o dia mais quente já registrado. Esse calorão vem reduzindo o estoque de gelo do planeta – e, consequentemente, fazendo com que ele esquente mais e mais. Em fevereiro, a Antártida derreteu como nunca; e no mês passado, chegou ao nível mais baixo para um mês de junho, início de inverno. Como se tivessem desligado o congelador no meio da farra.
O Continente Antártico havia perdido quase uma Argentina de gelo – 2,5 milhões km² – no fim do mês passado, em relação à superfície média de 1991 a 2020. Em 16 de fevereiro, a camada de gelo sobre o mar tinha sido reduzida a 2,06 milhões km², a menor área registrada desde o início do monitoramento por satélite, há 45 anos. A recuperação tem sido bem lenta, chegando a 11,5 km², 17% abaixo do normal. O mais preocupante é que, até bem pouco tempo, as mudanças climáticas vinham poupando a Antártida: foram 35 anos de estabilidade e, em setembro de 2014, chegou a atingir a maior extensão coberta desde 1979: 20 milhões de km². A partir de 2015, a queda foi constante e a falta de gelo não só contribui com o aquecimento do planeta, como pode levar espécies à extinção.
Se não faz frio o suficiente no inverno do Hemisfério Sul, o verão no Norte promete ferver. Um estudo publicado na revista científica “Nature Medicine” calcula que até 94 mil pessoas podem morrer por causa do calor na Europa em 2040, caso nenhuma providência seja tomada. O ano de 2022 foi o mais quente registrado no continente e matou 61.672 pessoas. Na Itália, uma forte onda de calor, causada por um anticiclone chamado Cerberus, vai fazer a temperatura passar dos 40ºC na maior parte do país e chegar a até 48ºC na Sicília e na Sardenha. Os italianos enfrentaram inundações e tempestades na primavera, e Alemanha, Espanha, França e Polônia também devem ser bastante castigadas pelo sol nos próximos dias. É o mesmo disco arranhado tocando sem parar desde 2015.
Uma boa nova vem da Amazônia: o desmatamento está em queda constante. No primeiro semestre, diminuiu 34% em relação ao mesmo período do ano passado; em junho, a queda foi de 41%, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Mas ainda não há o que festejar: o El Niño ronda ameaçadoramente a maior floresta tropical do mundo. É um círculo vicioso, a derrubada da mata alimenta o aquecimento global, que põe fogo no verde. Os focos de calor cresceram 10,7% nos primeiros seis meses do ano, chegando a 8.344, e atingem o maior número desde 2019 – quando foram 10.606. E se o desmatamento diminui na Amazônia, ele vem crescendo vertiginosamente no bioma vizinho. O Cerrado já perdeu 4.408 km², 21% a mais que no primeiro semestre de 2022, o que dá quase quatro cidades do Rio de Janeiro.
O clima pode ser de fim de festa, mas não é hora de tocar a marcha fúnebre. Nada de desânimo, todos nós podemos colaborar para mudar esse quadro preocupante. Uma dica: o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima abriu um canal para consulta popular, onde é possível votar nas iniciativas do Programa Plurianual Participativo (PPA) do governo federal, como o projeto de Combate à Emergência Climática, por exemplo. Além disso, também é possível mandar propostas. Mas não dá pra esperar a festa acabar: as votações estão abertas até 14 de julho, é preciso agir logo. Só temos este planeta, brindemos à sua saúde e cuidemos dela!
Saiba mais:
Brasil Participativo Enfrentamento da Emergência Climática
https://brasilparticipativo.presidencia.gov.br/processes/programas/f/1/proposals/50
Camada de gelo no mar da Antártica chega ao nível mais baixo já registrado em um mês de junho
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/07/10/camada-de-gelo-no-mar-da-antartica-chega-ao-nivel-mais-baixo-ja-registrado-em-um-mes-de-junho.ghtml
Gelo da Antártida enfrenta dificuldade para se recompor após derretimento recorde
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/07/gelo-da-antartida-enfrenta-dificuldade-para-se-recompor-apos-derretimento-recorde.shtml
Planeta registra o mês de junho mais quente da história, diz observatório europeu
https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/07/06/planeta-registra-o-mes-de-junho-mais-quente-da-historia-diz-observatorio-europeu.ghtml
Mais de 61 mil pessoas morreram de calor na Europa no verão de 2022, diz estudo
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/07/10/mais-de-61-000-pessoas-morreram-de-calor-na-europa-no-verao-de-2022.ghtml
Onda de calor na Itália pode gerar temperatura recorde na Europa
https://veja.abril.com.br/mundo/onda-de-calor-na-italia-pode-gerar-temperatura-recorde-na-europa
Entenda os fatores que causam os recordes de temperatura no planeta Terra
https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/07/05/entenda-os-fatores-que-causam-os-recordes-de-temperatura-seguidos-no-planeta-terra.ghtml
As medidas para evitar que El Niño provoque ‘hecatombe’ na Amazônia
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx05w4kee92o
julho 2023 | Biodiversidade, Cerrado, Deforestation, Desmatamento, Extinção de espécies, Extinction of species, Floresta, Mata Atlântica, Política
Uma das primeiras coisas que a gente aprende nas aulas de História é que o nosso país foi batizado por causa de uma árvore; mas por um triz, só a conheceríamos pelos livros. O pau-brasil – em tupi-guarani, ibirapitanga, “árvore vermelha” – foi explorado sem dó nem replantio entre 1502 e 1875. No início do século XX já o consideravam extinto, até que em 1928 o estudante de agronomia João Vasconcelos Sobrinho e o professor de botânica Bento Pickel encontraram um exemplar, onde hoje fica a Estação Ecológica da Tapacurá, administrada pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. “Nunca tantos deveram tanto a tão poucos”.
O pau-brasil renasceu, foi declarado patrimônio nacional em 1978, mas ainda corre o risco de desaparecer. E não só ele, como mostram dois importantes levantamentos do IBGE e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro – o último lançou a plataforma CNCFLora, onde podemos acompanhar novas descobertas – divulgados nos últimos meses. De acordo com o primeiro, entre 2014 e 2022, a porcentagem de espécies ameaçadas aumentou 57,3%, passando de 2.039 para 3.207. Os estudos também mostram que estamos concentrando atenção e esforços na Amazônia, enquanto negligenciamos três biomas igualmente importantes: segundo o IBGE, os que hoje têm mais plantas e árvores em perigo são a Mata Atlântica, o Cerrado e a Caatinga.
A primeira é justamente o berço do pau-brasil. Quando os portugueses chegaram aqui, a árvore cobria uma área que ia do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Norte. A destruição da Mata Atlântica vinha decaindo, mas voltou a aumentar nos últimos quatro anos. O IBGE, seguindo os critérios da Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), chegou aos seguintes números: o bioma tem hoje 457 espécies consideradas criticamente em perigo, 1.231 em perigo, 423 vulneráveis e 337 quase ameaçadas. E a situação ainda pode piorar: em 24 de maio, a Câmara aprovou a Medida Provisória 1150, de autoria do ex-presidente Jair Bolsonaro, que alterava a Lei da Mata Atlântica. No Dia do Meio Ambiente, 5 de junho, Lula vetou trechos que enfraqueciam o combate ao desmatamento, mas ela voltará ao Congresso para nova votação.
O Cerrado está ferrado. Há anos sua taxa de desmatamento, causado, sobretudo, pela monocultura da soja, é maior que o da Amazônia; para o seu azar, ele é vizinho de porta do bioma mais famoso, que atrai todos os olhares, com suas árvores que podem chegar a 80 metros de altura. Apesar de bem menos exuberante, por se tratar de uma savana, a importância do Cerrado é vital, pois é a nossa principal caixa d’água: oito das 12 maiores bacias hidrográficas do país nascem lá. É como uma floresta de cabeça para baixo; as raízes são bem maiores do que os troncos e copas. E é justamente por causa dessa característica que ele estoca tanta água. E, entre as 169 plantas criticamente em perigo no Cerrado, está a brasiliana. Definitivamente, desmatadores não gostam do Brasil.
O grande Alceu Valença pode ficar sem “o beijo travoso de umbu-cajá” de sua “morena tropicana”. Faça isso, não, seu moço. A árvore frutífera é uma das 146 espécies em perigo da Caatinga, segundo o relatório do Jardim Botânico/ CNCFLora. O bioma é o único que só existe no Brasil, mas é tratado desde sempre como o seu patinho feio. Entretanto, sua aparente aridez esconde uma biodiversidade espantosa. Além do umbu-cajá, podem sumir a aroeira do sertão e a baraúna. Essas plantas são verdadeiros condomínios: elas fornecem comida e abrigo para répteis, aves, mamíferos e insetos, e suas flores fazem a festa das abelhas, fundamentais para a reprodução de outras espécies vegetais. São acolhedoras como as casas nordestinas.
Até agora, o CNCFLora identificou 683 plantas criticamente em perigo. Se a Terra é um grande organismo, seus biomas são suas células e, as plantas, organelas (aparelhos de golgi, mitocôndrias, lisossomas, ribossomas etc.), cada qual com sua função. O desaparecimento de uma única espécie pode desencadear uma reação em cadeia capaz de desequilibrar ecossistemas inteiros. A lógica da natureza funciona assim: cada um no seu quadrado. Se temos mesmo o cérebro mais desenvolvido do planeta, nossa função deveria ser cuidar para manter esse equilíbrio em ordem. Sejamos seus jardineiros.
Saiba mais:
Jardim Botânico mapeia plantas ameaçadas em biomas do Brasil
CNCFLora
Caatinga tem mais de 400 espécies ameaçadas de extinção, diz estudo do IBGE
Caatinga: flora e fauna ameaçadas de extinção
De lobo-guará a pau-brasil, mata atlântica tem 2.845 espécies ameaçadas de extinção
IBGE atualiza estatísticas das espécies ameaçadas de extinção nos biomas brasileiros
Mata Atlântica tem maior número de espécies ameaçadas, diz pesquisa
Tabela do IBGE de espécies ameaçadas da Mata Atlântica
Lula veta ataques à Lei da Mata Atlântica
Mata Atlântica concentra 24% das espécies ameaçadas no Brasil
Uma em cada 4 espécies da mata atlântica corre risco de extinção, diz IBGE
Expedição encontra três plantas ameaçadas de extinção, uma delas pela primeira vez desde 1995
IBGE atualiza estatísticas das espécies ameaçadas de extinção nos biomas brasileiros